Quando era adolescente, Rafael começou a ouvir vozes. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma insuportável mania de perseguição. Passou a ter crises. Aos 16 anos, entrou pela primeira vez num hospício. Ao todo, foram mais de 50 internações. Levou muitos eletrochoques até parar no Espaço Aberto ao Tempo (EAT), no Hospital Psiquiátrico Pedro II, na zona norte do Rio. Hoje, aos 42 anos, Rafael passa o dia no hospital e dorme em sua casa, em Quintino, onde vive com a mulher. Começou a pintar e se revelou um talentoso artista, que já expôs no Museu Nacional de Belas Artes. “Depois que descobri aqui nunca mais tive crises. É a evolução da psiquiatria”, avalia, com lucidez. Onde hoje funciona o EAT havia no passado uma enfermaria entulhada de doentes. De dez anos para cá, existem no local oficinas, como a de arte e a de paladar. Uma das mestres-cucas é Nilsa, uma senhora de 46 anos. Aos 21, ela sofreu uma depressão muito forte, que resultou em várias internações. Está no atendimento diário do Pedro II há cinco anos “Sou feliz aqui”, resume, com um olhar que não a deixa mentir.

Nilsa e Rafael são exemplos do processo que está sendo retomado no Hospital Pedro II, municipalizado em janeiro. Embora a consagrada experiência do hospital-dia seja adotada em diversos centros psiquiátricos, na instituição a prática tem um significado simbólico. Foi ali que a psiquiatra Nise da Silveira (leia quadro à pág. 56) revolucionou o tratamento da saúde mental. Por isso, a atual equipe quer rebatizá-lo de Hospital Psiquiátrico Nise da Silveira. Ao mesmo tempo, o centro volta à vanguarda da psiquiatria.

Quem está à frente dessa retomada é o psiquiatra Edmar Oliveira, 48 anos. Mas sua tarefa não é fácil. Apesar de sua proposta ser a de acabar com o hospício, muitos dos que estão no hospital-dia não têm dinheiro sequer para as passagens de ônibus para voltar para casa. Muitos resolvem seu problema com o que produzem nas oficinas, como Nilsa, que ganha dinheiro com as quentinhas que vende. Além disso, há 160 pacientes internados nas enfermarias que não têm condições de reatar seus laços familiares. Para eles, a solução seria viver lá como se estivessem em suas casas. Por enquanto, porém, existem apenas duas casas que poderiam ser usadas como moradia, além de outras 12, ocupadas por funcionários. Existem ainda 127 pacientes internados em crise, que serão tratados e enviados ao hospital-dia.

As experiências alternativas do Pedro II ganham força. Há um centro comunitário onde são desenvolvidas atividades, como bailes, que misturam os pacientes à comunidade. Um passo à frente, em contraste com os folhetos de venda de um luxuoso condomínio que indicam a estação de trem, a drogaria e a confeitaria do bairro, mas nem sequer mencionam a vizinhança com o hospital psiquiátrico.

Na contramão desse tipo de exclusão, a aposentada Valda Leite, 67 anos, era uma das mais animadas na festa de Carnaval no centro comunitário. Há três anos ela convive com os doentes. “Nunca tive preconceito. Eles são muito legais”, garante. Tão animada quanto Valda, Francisca, 74 anos, fantasiada de onça, é uma paciente do hospital-dia que dorme na casa de sua comadre, no Engenho de Dentro. Quem entrasse na festa custaria a acreditar que 80% dos idosos vão parar no Pedro II por depressão.

Ao lado do centro comunitário funciona a rádio comunitária Revolução 105,5 FM, com o slogan “a rádio que é louca por você”. Na parede, uma imagem de Che Guevara. O diretor técnico, Fábio ACM, 23 anos, confessa que antes de chegar ali tinha preconceito. “Quando comecei, não dava para saber quem era paciente e quem não era”, diz. Entre os “loucutores”, está Renato Decarvas, 69 anos, que já trabalhou na rádio Nacional e foi ator. Fez O ébrio, com Vicente Celestino. Quando a idade reduziu suas chances profissionais, caiu em depressão. “Há dois anos trouxe um amigo e resolvi ficar”, conta ele, paciente do hospital-dia.
Os familiares dos pacientes do hospital-dia também passam por terapia, na qual recebem esclarecimentos sobre como lidar com a doença mental. Todas as terças-feiras, às 14h, se reúnem na Casa D’Engenho representantes de 20 famílias. A costureira aposentada J., 60 anos, por exemplo, não entendeu quando seu filho, 30 anos, começou a ficar cada dia mais triste. “Um dia ele me pediu: mãe, me ajuda, estou no escuro.” O rapaz chegou a ser internado para exames, melhorou mas voltou a ter crises. A costureira alimenta um sonho: “Não vejo o dia de meu filho ficar bom e não ter que voltar mais aqui”, murmura, com lágrimas nos olhos. É um sofrimento que pode ser aliviado pelo carinho dos familiares e por técnicas mais humanas de tratamento, como vem sendo feito no hospital.

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