Foi uma audiência digna de jogo da Seleção Brasileira em Copa do Mundo. Milhões de telespectadores assistiram na noite da sexta-feira 10 uma guinada no jornalismo da Rede Globo, que alcançou 42 pontos no ibope. Mais gente acompanhou a bombástica entrevista ao Globo Repórter de Nicéa Pitta, ex-mulher do prefeito de São Paulo, Celso Pitta, do que à popular Terra nostra. Depois de assistir a sua novela preferida, o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), que estava em seu apartamento de Salvador, assistiu incrédulo às denúncias de dona Nicéa, retransmitidas pela TV Bahia de sua propriedade. Ficou furioso com a “traição” da Globo, que acabava de provocar o maior abalo político em seu meio século de vida pública. Durante décadas, ACM exibiu como trunfos políticos a ligação com o empresário Roberto Marinho e a forte influência no jornalismo das Organizações Globo. Isso acabou. A ordem agora no jornalismo da Rede Globo é que Antônio Carlos seja tratado como uma autoridade e não mais como uma autoridade especial. A mudança começou com o afastamento de Roberto Marinho do comando das empresas e a ascensão de seus filhos Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto. Antônio Carlos, porém, não percebeu os novos tempos globais. Pouco antes da exibição do Globo Repórter, o senador foi informado de que seria acusado por Nicéa Pitta. Simplesmente não acreditou que a Globo colocaria isso no ar. Após a entrevista, telefonou para João Roberto, atacou a direção de jornalismo da emissora e cobrou os muitos favores que prestou a Roberto Marinho, inclusive segurando vários pedidos de criação de CPIs contra a Globo. Repetiu a queixa três dias depois, em um fax de duas páginas, em papel timbrado da Presidência do Senado, que enviou na tarde da última segunda-feira aos irmãos Marinho. “Foi uma reclamação natural, como inúmeras outras que recebemos, e nosso relacionamento com o senador continua ótimo”, afirmou João Roberto Marinho a ISTOÉ, demonstrando dar pouca importância ao chororô do cacique baiano.

O comando da Globo também não deu muita bola para a acusação de ACM de que teria tido um comportamento antiético por não tê-lo ouvido antes da exibição do programa. “Nada tenho a comentar sobre isso. A não ser que o direito de crítica e de reclamação está embutido no direito constitucional de manifestação”, disse a ISTOÉ o diretor de jornalismo da Rede Globo, Evandro Carlos de Andrade. Mesmo depois de conversar com João Roberto Marinho, que lhe disse não ter visto a edição da matéria com Nicéa Pitta antes de ela ir ao ar, ACM continuou remoendo sua mágoa contra os irmãos Marinho. No domingo 12, ele embarcou num jatinho em Salvador e foi até Porto Seguro, onde passou o dia na casa do professor João Carlos Di Gênio. De lá, instruiu por telefone o assessor Fernando César Mesquita a preparar a carta que remeteria aos Marinho. Essa primeira versão foi amenizada na manhã do dia seguinte, quando foi concluída a redação do fax. Na última quarta-feira, o jornal Correio Braziliense publicou que ACM tratava na carta do escândalo da NEC (leia quadro). O senador não gostou. “Perdem tempo os que desejam fazer intrigas entre amigos que se prezam e sempre se respeitaram, não obstante a grande intimidade que os une. Chega de intrigas torpes e que não levam a nada”, reagiu Antônio Carlos, em nota distribuída à imprensa, preocupado em não piorar seu relacionamento com a poderosa família global. Os três filhos de Roberto Marinho responderam à carta de ACM com um fax no qual afirmam, de maneira bastante educada, que não estão dispostos a abrir mão da independência do jornalismo para atender às conveniências do senador.

Virada de mesa – O jogo começou a virar há cinco anos. O jornal O Globo publicou à época um editorial em sua primeira página com críticas ao comportamento de Antônio Carlos por ter imposto ao presidente Fernando Henrique Cardoso uma solução para a intervenção do Banco Econômico. Nada comparável à pancada que levou agora da Rede Globo, que teve um sabor especial para a nova geração dos Marinho. Apesar de não admitirem publicamente, eles sempre consideraram excessiva a ingerência de ACM nas Organizações Globo, chegando até a pedir a cabeça de jornalistas. A exemplo do que vem acontecendo com FHC, a cada dia mais empenhado em desfazer a imagem adquirida em seu primeiro mandato de que Antônio Carlos manda no governo, os irmãos Marinho também querem sepultar alguns velhos fantasmas. Até hoje eles se sentem incomodados com a edição manipulada do debate entre Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da eleição presidencial em 1989. A estreita vinculação da Globo com o regime militar também é uma lembrança desagradável. Por causa disso, a direção da emissora tem buscado fazer uma autocrítica na prática, mostrando em retrospectivas e minisséries a verdadeira realidade dos anos negros da ditadura.

Apesar das ameaças veladas em seu fax, ACM procura manter as aparências e faz juras públicas de amor aos Marinho. Na nota em que confirmou a existência do fax, o senador é todo ternura. “Realmente, eu enviei um fax de modo fraterno, carinhoso e sincero, como é minha amizade com Roberto Marinho e seus filhos, que honram a tradição paterna”. Nas conversas reservadas, porém, continua magoado e abatido com o comportamento global. Está também convencido de que tem dedo do alto tucanato na decisão da Globo de divulgar a denúncia contra ele. O Palácio do Planalto e a cúpula do PSDB negam qualquer participação no episódio, embora não escondam a satisfação de ver o senador em maus lençóis. Os conselheiros políticos de Fernando Henrique avaliam que chegou ao fim o ruidoso reinado de ACM. Seu mandato como presidente do Senado só acaba em fevereiro de 2002, mas, por causa das eleições municipais, as atividades no Congresso serão mínimas no segundo semestre deste ano. Até lá, o senador promete provocar alguns estragos.
ACM ainda acredita que dispõe de forças suficientes para criar embaraços a Fernando Henrique e ao tucanato: ele tem dito a interlocutores que vai criar uma CPI para investigar a venda das empresas do sistema Telebrás, um escândalo que resultou na queda do ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, André Lara Rezende. Nem mesmo os dirigentes do PFL acreditam nisso. A convicção na cúpula do partido de ACM é que, tendo caído em desgraça com Fernando Henrique e o comando da Globo, ele agora não tem a menor chance de arregimentar no Congresso apoio suficiente para uma ação dessa envergadura. Além de se desvincular do babalorixá baiano, o carnaval que a Globo vem fazendo com as denúncias de Nicéa Pitta também tem outro propósito. A emissora está se preparando para enfrentar uma nova e forte concorrência jornalística do SBT de Silvio Santos. Há 15 dias, Silvio Santos promoveu uma reunião com centenas de representantes de grandes empresas para anunciar investimentos pesados na área de jornalismo e a disposição de partir para uma disputa agressiva com a Rede Globo, inclusive pela preferência do público classe A.

 

Nec: O grande negócio

Sônia Filgueiras

A história da transferência da NEC, poderosa fabricante de equipamentos de telecomunicações, para o empresário Roberto Marinho ficou marcada pelas suspeitas de troca de favores entre as Organizações Globo e o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). Uma CPI no Congresso chegou a investigar a denúncia de que o rentável contrato de retransmissão da programação da Rede Globo pela TV Bahia, de propriedade da família de ACM, foi uma compensação por serviços prestados pelo senador à Globo quando foi ministro das Comunicações, no governo José Sarney. A novela da NEC começou em 1986, quando o empresário Mário Garnero, dono da Brasilinvest Informática e Telecomunicações (BIT), passou a ser pressionado para ceder seus 51% do capital acionário na NEC para Roberto Marinho. ACM se juntou aos sócios japoneses de Garnero, donos da NEC Corporation, para forçar o empresário a abrir mão do negócio, que à época ostentava um faturamento anual de US$ 300 milhões. Garnero passava por dificuldades desde a execução extrajudicial do seu banco, o Brasilinvest, mas partiu de ACM a canetada fatal que consumou a asfixia financeira do empresário e, na sequência, a transferencia milionária. Usando o poder de ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães suspendeu o pagamento de uma dívida de US$ 30 milhões da Telebrás com a NEC. Tratava-se de um contrato de fornecimento de equipamentos já entregues pela NEC à Telebrás.

Coincidentemente, a partir de janeiro de 1987 a TV Bahia, inaugurada como afiliada da Manchete, passou a exercer o precioso direito de botar no ar a programação da Rede Globo. No relatório preliminar da CPI da NEC, o então deputado Luiz Carlos Santos (PFL-SP) – na época no PMDB – concluiu que ACM “ultrapassara os limites de sua autoridade, os limites da lei e os termos contratuais” ao suspender os pagamentos. ACM atuou como principal defensor de Roberto Marinho na CPI e depois de muito esforço político, a bancada do PFL, capitaneada por seu filho, Luís Eduardo Magalhães (BA), conseguiu excluir do relatório os trechos em que o envolvimento de ACM no caso era citado.

Questão de ética

Na semana em que viu seu nome envolvido nas denúncias de corrupção da Prefeitura de São Paulo, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) tomou conhecimento que chegou ao Conselho de Ética do Senado uma representação contra ele. O sargento reformado do Exército, Abílio Teixeira Filho, o mesmo que levou ao Conselho o nome dos senadores Teotônio Vilela (PSDB-AL) e Luís Otávio (sem partido-PA), pediu a cassação do mandato de ACM por quebra de decoro parlamentar. A representação do militar é baseada no fax que o senador enviou ao jornalista Tales Faria, chefe da sucursal de ISTOÉ em Brasília, em dezembro do ano passado. Em papel timbrado da presidência do Senado, ACM xinga o jornalista de “filho da ….”. O presidente do Conselho de Ética, Ramez Tebet (PMDB-MS), já designou o senador Osmar Dias (PSDB-PR) para relatar o processo.

Fax de ACM para os filhos de Roberto Marinho

Meus queridos amigos,
Roberto Irineu Marinho, vice-presidente da Rede Globo de Televisão
João Roberto Marinho, vice-presidente do Infoglobo
José Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo

O programa “Globo Repórter” da última sexta-feira veiculou declarações mentirosas e levianas da senhora Nicéa Pitta, sem
me dar oportunidade de defesa. Conceder o direito de defesa
é sagrado até para inimigos, quanto mais aos amigos. Não se esperava um comportamento assim com um amigo. Essa atitude
fere o código de ética da emissora.

Tenho uma amizade desinteressada com o pai de vocês.
Seu pai me considera seu maior amigo. Sou leal e discreto confidente há 40 anos, inclusive em assuntos íntimos familiares. Fui convidado pelo pai de vocês para ser sócio em quatro empreendimentos. Não aceitei, o que mostra como minha amizade era e é desinteressada.

Somos afiliados da TV Globo e cumprimos rigorosamente
o manual da emissora. A TV Bahia dá um dos maiores retornos
de audiência e rendimentos do sistema.

Vocês devem imaginar o quanto sofri para fazer justiça
ao pai de vocês na decisão da NEC. Paguei um preço por isso. Mas
agi de acordo com minha consciência. Fizeram até uma CPI
e nada comprovaram de errado. Meu filho, o deputado Luís Eduardo Magalhães, sempre foi amigo de vocês, que diversas vezes
o convidaram para palestras nas Organizações Globo. Nos projetos relacionados a interesses da emissora no Congresso, meu filho se empenhou pessoalmente para que sempre houvesse uma decisão.
Desconheço as razões obscuras que levaram a essa reportagem, mas vou descobrir.

Peço desculpas por enviar essa carta por fax, mas a urgência dos acontecimentos me obrigou a fazer isso.

Abraço afetuoso
Antônio Carlos Magalhães