Embora não tenha sido vitimada por nenhuma inundação na última semana, a cidade de São Paulo está fedendo. E nada indica que a podridão revolvida pela ex-primeira-dama Nicéa Pitta deixe de espalhar odores por mais tempo. Ao denunciar o mar de lama que alaga a prefeitura e emporcalha políticos locais e nacionais, Nicéa deflagrou um processo sobre o qual não tem mais controle. Politicamente, suas revelações agitam a sucessão de seu ex-marido, o prefeito Celso Pitta. Juridicamente, ao contrário do que fora alardeado por aliados do prefeito, o material apresentado por Nicéa relaciona fortes indícios de maracutaia, inclusive na gestão de Paulo Maluf. Ela sabe, porém, que as reações a atitudes como essas nem sempre transitam no campo da civilidade. Não é à toa que passou a usar um colete à prova de balas.

No Ministério Público (MP), a avaliação inicial é de que as acusações são confusas e carecem de provas. Mas, na verdade, a ex-primeira-dama deixou com os promotores uma relação de medicamentos que diz terem sido superfaturados, em março do ano passado. ISTOÉ teve acesso à relação e confrontou seus dados com as compras feitas no mesmo período pelos hospitais do Estado. Um comprimido de ácido folínico de 15 mg custou R$ 0,47 para o Estado e R$ 3,98 para a prefeitura (leia outros casos no quadro da pág. 27). “Não há prova de que a lista entregue por dona Nicéa seja da prefeitura”, esquiva-se Pitta. “O secretário Jorge Pagura (Saúde) me informou que aquele documento jamais esteve na secretaria.” Para investigar essa questão basta que o MP faça um levantamento dos pagamentos. Com o mesmo tiro, os promotores poderão matar dois coelhos. Quinta-feira 16, o vereador Carlos Neder (PT) recebeu notas fiscais de compras efetuadas pelo módulo 15 do PAS, que, segundo ele, mostram um superfaturamento de até 800% na compra de medicamentos. “Aquele módulo tinha um interventor nomeado pelo secretário”, diz Neder. “Fizemos a intervenção justamente para coibir a corrupção que estava instalada no PAS desde o governo anterior”, defende-se Pitta.

A ex-primeira-dama também acerta pesado em Flávio Maluf, filho do ex-prefeito. Ele seria o articulador de uma milionária fraude na receita do estacionamento do Anhembi. Quem verificar os registros irá comprovar que Nicéa pode ter razão. Nos meses de janeiro de 1997, 1998 e 1999, o estacionamento rendeu cerca de R$ 300 mil. Em janeiro deste ano, depois de Pitta mudar a direção do Anhembi e afastar os afilhados de Flávio, o mesmo estacionamento rendeu R$ 700 mil. Outra necessária investigação está no fluxo dos pagamentos da prefeitura a empreiteiras, que costumam financiar as campanhas malufistas. Nicéa diz que o ex-senador Gilberto Miranda, em nome do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), teria pressionado Pitta a liberar recursos para a OAS, empresa do ex-genro de ACM. “Miranda jamais falou comigo sobre a OAS”, afirma Pitta. Documentos da prefeitura indicam, porém, que R$ 110 milhões dos R$ 324 milhões emprestados pelo Banco do Brasil ao município de São Paulo em dezembro de 1997 foram pagos ao consórcio que construiu a avenida Águas Espraiadas, a mais superfaturada obra de Maluf. No consórcio está a OAS.

O que independe de maiores investigações são as repercussões políticas do desabafo de Nicéa. Em Brasília, os tucanos passaram a semana sorrindo enquanto ACM se explicava. “Ele está indignado. ACM pôs na cabeça que Covas está por trás dessa história. O senador não vai ficar quieto”, avisa um malufista. “Não houve interferência do PSDB. Foi uma absoluta coincidência”, reage Walter Feldman, coordenador da campanha do vice-governador Geraldo Alckmin à sucessão de Pitta. Os tucanos acreditam que as denúncias de Nicéa podem fazer o milagre de emplacar a candidatura do insosso vice-governador.

Erundina surpreende – Quem ficou ao relento com o furacão Nicéa foi Maluf. Encurralado pelas denúncias, se não lançar sua candidatura, vai apanhar calado durante toda a campanha. “Maluf acabará tendo de entrar nessa disputa, o que não desejava”, diz o presidente estadual do PPB, Adhemar de Barros Filho, que quer ver a continuidade da sigla. Uma pesquisa do Datafolha, divulgada sexta-feira 17, mostra que Maluf vai ter muito trabalho. O ex-prefeito despenca de 23% para 12%. O curioso é que Alckmin não saiu do lugar, continuou com os mesmos 2% que tinha em fevereiro. A grande beneficiada foi a deputada Luiza Erundina (PSB), que passou de 12% para 22%. Aparentemente, os votos do malufismo se transferiram para a ex-prefeita, já que Marta Suplicy, do PT, ficou no mesmo lugar. Tinha 30%, agora tem 29%. No frigir dos ovos, o que menos interessa aos partidos é que Pitta deixe o cargo antes das eleições. Seu afastamento poderia fazer emergir uma nova candidatura, a do vice, Régis de Oliveira, filiado ao inexpressivo PMN. Conhecedor dessas variantes, Pitta trabalha com a hipótese de que a maior ameaça esteja no Tribunal de Justiça, que na quinta-feira 16 confirmou um terceiro voto favorável à sua condenação na questão dos precatórios. Pitta ainda pode recorrer, mas, se o recurso não for acolhido, perderá os direitos políticos por oito anos.

Queima de arquivo – Quando Nicéa declarou usar colete à prova de balas, Pitta ironizou: “Isso não faz sentido.” Não é o que dizem os fatos. Desde que a máfia dos fiscais foi revelada, três testemunhas foram mortas e outras duas sofreram atentados. A última vítima foi Gilberto Monteiro da Silva, presidente da Associação dos Ambulantes de São Paulo. Há um ano, ele denunciou que o deputado Hanna Garib (PPB) se beneficiaria das propinas tomadas por fiscais da regional da Sé. O deputado acabou cassado. Às 9h30 da quinta-feira 16, Gilberto levou sete tiros pelas costas quando descia de um carro no Centro. Correu para se refugiar no banheiro de um bar e ali recebeu mais oito disparos no rosto. “Ele tinha um dossiê completo”, avisa o camelô José da Silva, conhecido como Alemão. Tanto no MP como na polícia, ninguém duvida de que tenha sido uma queima de arquivo.
Recados para que Nicéa se proteja têm chegado até do Além. Amira Lépore, a vidente brasileira que faz sucesso nos EUA, previu, em novembro, que Pitta e Nicéa iriam romper e a briga se transformaria em escândalo. Na última semana, ela disse que Nicéa sofrerá um atentado. O mesmo recado foi transmitido por fax, no domingo 12, à ex-primeira-dama pela médium Adelaide Scritori, da Fundação Cacique Cobra Coral. Em maio de 99, ela aconselhou Pitta a renunciar, pois “documentos viriam à tona, deixando-o em situação insustentável.”

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Gosto pelo poder

Quem conhece Nicéa Pitta garante que ela foi tomada pela síndrome de poder. Descrita como temperamental, instável e ardilosa, a mulher de 53 anos que dominou por uma semana os noticiários do País pouco lembra a garota de família simples, nascida na interiorana São Carlos, com ambições contidas. Desde que seu ex assumiu a prefeitura, ela apaixonou-se pelo papel de primeira-dama. Mas somente o título não supria os desejos da capricorniana que já sobreviveu como corretora de imóveis. Ela queria mandar. Mesmo à revelia dos coordenadores da campanha de Pitta, montou um comitê com a ajuda de amigas. Percorria a periferia e prometia mundos e fundos. Foi o início de uma série de participações intempestivas na administração pública que, além de problemas políticos, detonou escândalos como o Frangogate (Nicéa teria vendido frangos superfaturados para a Prefeitura).

Enquanto seus repentes e intromissões afastavam secretários, funcionários de uma autarquia por ela administrada registravam os desmandos que hoje chamam de “total descontrole emocional”. Instabilidade essa agravada pelo consumismo desenfreado e pela embriaguez de poder, simbolizada por sua obsessão em conhecer a “colega” Hillary Clinton. À época em que presidia o Centro de Apoio e Atendimento Social (Casa), trocou de sofá oito vezes em uma semana, relata uma assessora que trabalhou com Nicéa por três anos. “Tive de pegar dinheiro com uma figurona para bancar essa loucura.” Em outro episódio, Nicéa, aos gritos, exigia que a mesma assessora trocasse a cadeira que acabara de comprar. “Ela berrava que aquilo, uma cadeira pomposa, giratória, último modelo, não servia para ela. Tinha de ser um trono.” O “trono” foi comprado, só não se sabe quem pagou a conta.

Se no emprego “de manhã ela era uma, à tarde, outra”, como conta a funcionária, o mesmo ocorria na vida pessoal. A briga com Pitta – iniciada com a declaração de que votara em Covas para governador em 1998 – prosseguiu até com sucessivas mudanças de opinião. “Pelo Pitta ponho a mão no fogo; eu o amo”, disse no fim do ano passado. Nos fins de 1999, ela chamou Jorge Yunes, hoje acusado por ela de ladrão, de verdadeiro amigo. Disse na televisão que o casal era pobre e, no dia seguinte, acusou o marido de milionário. Contradições que se transformaram em ponto central da defesa de seus alvos.

"Ajoelha, nego safado"
O último – e inesquecível – encontro entre Nicéa e Celso Pitta aconteceu no sábado de Carnaval. Irada, ela foi até o flat alugado pelo prefeito e lá teria protagonizado uma das mais degradantes cenas de seu casamento. “Ela gritava: ajoelha, nego safado, e me pede perdão. Quero muito dinheiro para reformar minha casa”, contou a passadeira Maria Fernanda, que é negra e presta serviços há mais de três anos para os Pitta. A violência também marcou a união entre Pitta e Nicéa. Dias antes do Natal, Nicéa, com ciúme, jogou um castiçal no marido, que executa o terceiro maior orçamento do País. Pitta conseguiu se desviar do objeto. Maria Fernanda, que foi autorizada pelo patrão a falar, fez questão de frisar que só trabalhou “com gente fina” como Adhemar de Barros Filho, Renata Mellão e Isabel Maluf, tia do ex-prefeito Paulo Maluf. Dizendo-se cansada do temperamento de Nicéa, deixou o apartamento do casal nos Jardins e preferiu acompanhar o patrão. Sua colega Maria José, que trabalhou para o casal durante um ano, confirmou as humilhações que Pitta sofreu e saiu em defesa do patrão: “Ela é que mandava, ele não mandava em nada.”

ISTOÉ – Como era o relacionamento entre Nicéa e Pitta?


Maria Fernanda
– Ele é um amor de pessoa, está sofrendo muito. Ela é uma fera. Jogava a roupa que eu passava no chão e pisoteava. Me demitiu várias vezes. Se não fosse o prefeito, não tinha o que comer.

Maria José
– De manhã ela era uma, meia hora depois era outra. Dona Nicéa nunca ouvia o que ele dizia ou pedia. Ela é que mandava. Ele não mandava em nada.

ISTOÉ – Qual a razão das denúncias de Nicéa? Vocês presenciaram alguma coisa dentro do apartamento?


Maria Fernanda
– Nunca vi nada disso de propina. O problema é que ela tem ciúme até da alma do doutor. Ele tem culpa de ser bonito? Eu até aconselhei o prefeito a trocar de mulher.

Maria José
– A dona Nicéa até colocou o nome da minha irmã para prestar depoimentos (no Ministério Público), mas a gente não sabe de nada. O motivo de tudo isso eu não sei. O que sei é que ela era muito gastona, dava dinheiro para a família dela.

Ele prefere as loiras

Ele sempre foi infiel”, disparou Nicéa. E Pitta não desmentiu. Na quarta-feira, ele falava orgulhoso de uma matéria publicada no Diário Popular cujo título era “Um prefeito sedutor”. Entre elogios e elogios à sua elegância e cavalheirismo com as mulheres, a reportagem insinuava que Pitta mantém uma série de casos extraconjugais, um deles com uma funcionária da prefeitura. Mas a referida moça é morena e, ao que tudo indica, parece que o gosto do prefeito não é bem esse. Os boatos dão conta de que ele prefere mesmo as louras. A socialite Marina Renaux de Sabrit, casada, e a secretária particular de Pitta, Marlene Betegheli, solteira, duas louras quarentonas, sofreram com a boataria. Marina, que teria sido vista almoçando com Pitta, num restaurante em Paris, não esconde que admira a cordialidade do prefeito. “É um homem gentil e educado.” Há duas semanas, os dois almoçaram juntos em São Paulo. “Não sou a loura que vocês procuram.” E completa: “Já fui muito fogosa, mas estou calma.”

 



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