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JUNTOS, MAS NEM TANTO
Durante as 36 horas em que estiveram juntos, desde a pose para a foto no embarque no
Galeão até o retorno de Johannesburgo para Brasília, Dilma e os ex-presidentes da
República mantiveram um convívio educado, mas tenso, com pitadas de descontração

Em mais um bom motivo para Nelson Mandela ser reconhecido como  herói da humanidade, o funeral do líder africano permitiu ao Brasil assistir a um espetáculo raro na história do País. Durante 36 horas, desde o meio-dia da segunda-feira 9, quando o Airbus presidencial deixou a base aérea do Galeão, no Rio, rumo a Johannesburgo, até 1h30 da madrugada da quarta-feira 11, quando a nave pousou de volta em Brasília, Dilma Rousseff e quatro ex-presidentes – José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva – passaram por uma experiência que não deve se repetir tão cedo.

Acomodados numa área reservada, com algumas dezenas de metros  quadrados, no interior do Airbus presidencial, ou nas arquibancadas do Soccer City, local das homenagens a Mandela, aqueles rostos, gestos e biografias que comandaram o País desde a democratização – a única ausência foi Itamar Franco, falecido em 2011 – mantiveram um convívio educado, mas tenso, segundo relatos dos ilustres passageiros a bordo. Coube ao ex-presidente Lula a tarefa de tentar quebrar o gelo, logo no início do voo. Em uma de suas primeiras intervenções, em tom de brincadeira, o petista definiu o regulamento do bom convívio. “Aqui ninguém pode tratar de assuntos controversos, porque estão todos representados”, brincou. Revigorado no retorno a Brasília, José Sarney descreveu o clima do ambiente: “Algumas pessoas liam livros, outras pegavam uma revista. Só de vez em quando conversavam”, disse à ISTOÉ.

A descrição ilustra uma delegação que, a pedido da tripulação do Airbus, até se reuniu para  uma foto sinceramente emocionada,  na hora do embarque, no Galeão, mas que formou um grupo cuja maior identidade consiste na passagem pelo terceiro andar do Palácio do Planalto,  onde cada um deixou uma herança diversa.

Quando entraram no Airbus, dirigindo-se àquele compartimento reservado, exclusivo para a presidenta e convidados, foi possível detectar a formação de alianças fugazes no espaço aéreo que, muito naturalmente, refletiam as opções duradouras na terra firme de todos os dias. Lula e Fernando Henrique Cardoso evitaram excessivos contatos diretos. Mas, nos momentos em que conversaram, relatou FHC, os dois compuseram a dupla que mais tinha “memória em comum”. Perguntaram sobre o destino de antigos colegas e falaram sobre as greves de São Bernardo do Campo. Lula viajou sentado ao lado de Sarney, aliado profundo desde que enfrentou o risco de impeachment. Companheiros em 1989, quando Fernando Collor sonhou em levá-lo para o ministério, Fernando Henrique fez companhia – mais  educada do que simpática – ao presidente afastado no impeachment de 1992. Collor, segundo FHC, era o mais formal entre todos.

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Dilma não usou a cabine privativa do avião, como usualmente faz. Sentou-se no corredor, como os demais. Segundo FHC, a presidenta esteve sempre muito à vontade, falante, contadora de causos. “Longe da imagem de “rabugenta” que é apresentada ao público”, afirmou FHC, que classificou a viagem de “mais bem organizada” do que a primeira, que levou ex-presidentes ao funeral do papa João Paulo II, em 2005. Depois da partida, a presidenta chamou os convidados para mostrar o plano de voo, com todas as turbulências atlânticas reais, imaginárias e eventuais que poderiam encontrar pela frente. Quando chegaram em terra firme e perguntaram a Fernando Henrique como havia sido a viagem, ele não perdeu a chance de fazer uma levíssima ironia, referindo-se aos conhecimentos “de especialista” da presidenta. Durante as oito horas de viagem, os passageiros a bordo só fizeram uma refeição: risoto e peixe com camarões.

No Soccer City, a união de 90 chefes de Estado e centenas de milhares de cidadãos causou confusões e atropelos. Em meio ao trânsito infernal, muitas autoridades – inclusive brasileiras – desceram do carro para percorrer um longo trecho, a pé, para não perder a hora. No momento de ir embora – em acordo multipresidencial, todos concluíram que não havia necessidade de permanecer na África do Sul após o discurso de Dilma – ocorreu outra dificuldade. O céu estava um aguaceiro e era preciso, de novo, caminhar até os automóveis. Numa delegação que incluía dois octogenários, Sarney, com 83 anos, e Fernando Henrique, com 82, forçados a subir três andares de escada antes de se acomodar na cerimônia, era um exercício preocupante. Na correria, Dilma dividiu o guarda-chuva com FHC. Internado recentemente em São Paulo, Sarney chegou a deixar integrantes da delegação com receio, mas completou bem a travessia.

No esforço para assegurar tratamento igualitário a cada antecessor, Dilma chegou a revezar os acompanhantes no carro presidencial. Deu carona a Fernando Henrique ainda no Rio de Janeiro, quando os dois saíram juntos do seminário na presença de Bill Clinton para tomar o helicóptero rumo ao Galeão. Lula entrou em seu carro num deslocamento já em Johannesburgo e deu lugar a Sarney em outro, o que só não ocorreu com Fernando Collor por falta de oportunidade.

Exibindo gentileza, autocontrole e até um relativo espírito fraterno formado em várias décadas de atividade – a carreira dos quatro antecessores de Dilma soma cerca de 180 anos de dedicação contínua e permanente à política –, a viagem foi acertada no mesmo dia em que o governo sul-africano confirmou a morte de Mandela. A presença de todos explica-se por uma razão  nobre, já que nas últimas décadas o Brasil cumpriu um papel positivo no resgate do continente africano. Sarney apoiou sanções econômicas contra o apartheid quando o regime racista sul-africano era defendido por Estados Unidos e Inglaterra. Empossados na Presidência de seus países no mesmo ano, Fernando Henrique e Nelson Mandela mantiveram um diálogo enquanto a saúde do líder africano permitiu. Capaz de transformar a África em prioridade diplomática, entre 2003 e 2010, Lula esteve quatro vezes na África do Sul. Voltou mais duas já fora do cargo. Em dezembro de 2012, quando Mandela se encontrava adoentado, sua mulher, Graça Machel, agora viúva, reuniu a família para homenagear Lula e a delegação num jantar em sua casa.

Dilma não usou a cabine privativa do avião, como
usualmente faz. Esteve sempre muito à vontade, falante,
contadora de causos. Depois da partida, a presidenta
chamou os convidadospara mostrar o plano de voo

A viagem a Johannesburgo tinha muito sentido, como se vê. Mas o encontro de cinco presidentes teve algo semelhante ao aperto de mãos de Barack Obama e Raul Castro, nas escadarias do Soccer City. Foi uma imagem que poucos esquecerão e que gerou comentários positivos em vários lugares. Da mesma forma, a viagem presidencial mostrou uma força institucional acumulada pelo País. Mas, dez meses antes da eleição presidencial de 2014,  não é necessário confundir seu significado.

“Foi um evento institucional, uma afirmação da democracia brasileira,” afirma-se na assessoria da presidenta Dilma Rousseff. “Mas foi um parêntese. Ninguém deixou de ser quem é, nem trocou de programa em Johannesburgo.” Somando as duas travessias do Atlântico, em menos de 48 horas  os presidentes passaram 20 horas e 30 minutos a bordo. Nenhum abandonou a vigília para dormir nem mesmo na viagem de volta, depois de uma noite com menos de cinco horas de descanso num hotel em Johannesburgo, o que ilustra uma situação de tensão maior ou menor, mas sempre permanente. No esforço de relaxamento, o máximo que eles se permitiram eram curtas caminhadas pelo avião, fazendo exercícios desengonçados de esticar a musculatura em pleno uso de trajes formais e até sapato social. 

foto: REUTERS/Babu
fotos: REUTERS/Babu; Roberto Stuckert Filho/PR; AFP PHOTO/SABC


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