Os grandes mestres das artes sempre foram ávidos consumidores de novas tecnologias. Leonardo Da Vinci, Van Eyck e outros pintores da Renascença, por exemplo, só conseguiram imprimir noções de perspectiva em suas telas ao pincelar nuances de luz, cores e sombras com a ajuda da então novíssima tinta a óleo. Passados quase cinco séculos, experimentos com clonagem de animais como a ovelha Dolly viraram realidade nos laboratórios, motivando os artistas a avançar sobre os tubos de ensaio. É o que os mais renomados representantes da arte digital resolveram fazer. Dispensaram os dedos manchados de tinta em troca dos princípios de biotecnologia, informática e vida artificial para colocar em prática suas idéias. Quem achava o francês Marcel Duchamp maluco por transformar uma privada em obra-prima não sabe o que esse novo movimento estético lhe reserva. Um dos projetos mais polêmicos é o cachorro transgênico, no qual é enxertado um gene extraído de uma água-viva que habita o Oceano Pacífico. O resultado é um cão que emite luz fluorescente esverdeada quando exposto ao sol. Embora reservada apenas à Internet (em www.ekac.org/transgenic.html), a instalação canina pode tornar-se realidade um dia. "Esse tipo de experiência já é comum em ratos de laboratório, sem qualquer dano físico às cobaias", garante Eduardo Kac, artista brasileiro que aos 37 anos é um dos expoentes da arte transgênica.

Antes do projeto ganhar corpo e latido, Kac recebeu encomendas para produzir animais de estimação em outras cores. Rosa, para começar. "Por que não", pergunta Eduardo Kac. Afinal, outros artistas já usaram o computador como palco para todo tipo de manifestação artística, inclusive aquelas de gosto duvidoso. Inventor da droga alucinógena LSD, Timothy Leary registrou durante meses, pela Internet, cada momento de sua agonia provocada por um tumor maligno. Milhões de pessoas acompanharam sua prostração e assistiram ao vivo, online, ao momento de sua morte. Dentro dessa perspectiva, por que não ter um mascote colorido? De mais a mais, o papel do artista é perseguir o que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche definiu ser o dever da arte: "Antes de tudo, em primeiro lugar, embelezar a vida."

O projeto do carioca Eduardo Kac ainda esbarra em dificuldades técnicas e discussões éticas (como seria de se imaginar), mas ele não perde fôlego. Apresentou outro trabalho envolvendo seres vivos modificados geneticamente na Arts Electronica, principal exposição mundial de arte tecnológica, que acontece em Linz, na Áustria, até o dia 18 de setembro. Dessa vez, Kac realizou sua obra com a ajuda da Bíblia. Extraiu do livro do Gênesis um trecho para dar origem ao código genético das bactérias que compõem sua obra. Mais especificamente, o texto que trata do sexto dia da criação e da supremacia do homem sobre qualquer outra criatura viva que habite a Terra. A partir dessa frase em inglês, Kac traduziu cada letra em sinais do Código Morse para, em seguida, verter em informações genéticas injetadas na bactéria Escherichia coli. O resultado foi inusitado. Um grupo de bactérias com o "gene da Bíblia" emite cor azul sempre que iluminado por raios ultravioleta. No mesmo recipiente fica outra família de bactérias, essas amareladas. Cabe então ao visitante, seja na Áustria, seja aqui no Brasil, pela Internet (em www.ekac.org/genesis.html), acionar o botão eletrônico que liga a lâmpada ultravioleta posicionada sobre o vasilhame de bactérias. A cada apertão, a lâmpada acende por um minuto e meio, tempo suficiente para acelerar a reprodução das bactérias e produzir um caleidoscópio vivo. Cada interferência do observador gera uma ninhada de filhotes. Eles podem nascer azuis ou amarelos como os pais genéticos. Ou verdes, numa combinação entre as bactérias azuis, com o "gene da Bíblia", e as amarelas E. coli. "Nem eu sei o que vai acontecer com a obra", comemora Kac.

 

Nova perspectiva – Ao contrário da pintura convencional, em que o observador é mantido longe dos quadros, às vezes separado por redomas de vidro ou cordões de isolamento, na arte transgênica as obras não terminam em si. Sua existência depende da interferência do observador, que modifica plástica e concretamente as obras de arte. Na imensa maioria dos casos, elas podem ser acessadas a partir de uma página na Internet, como a experiência das bactérias na Áustria. "O que define essa arte não é apenas o nascimento e o crescimento de uma planta ou animal, mas a natureza das relações entre o artista, o público e o organismo transgênico", explica Kac, professor-assistente do Instituto de Artes de Chicago, nos EUA.

Mundos digitais – Na verdade, o que se pretende é usar o computador, em particular a Internet, como meio para inventar e dar vida a seres únicos, que só existem por fruto da imaginação. Nesse balaio há de tudo um pouco. Desde obras que existem apenas e somente na web, passando por aquelas que dão acesso a câmeras para interferir a distância numa obra exposta numa galeria, até chegar nas pesquisas puramente especulativas, que empregam tecnologias de ponta e beiram a invenção. Nesse último grupo estão os exercícios fronteiriços entre arte, ciência e tecnologia. Já que não possuem os meios para colocar em prática seus projetos de vidas artificiais, os artistas constroem mundos digitais e modelam suas idéias para habitar apenas os domínios do ciberespaço. Não é à toa que o maior evento de arte e tecnologia brasileiro, que aconteceu em São Paulo na última semana de agosto, recebeu o título Invenção. Dele participaram os principais nomes da arte digital.

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Um deles foi a bióloga Christa Sommerer, nascida na Bélgica e atualmente pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Avançada em Telecomunicações de Kyoto, no Japão. "Optamos por inventar seres virtuais para não esbarrar em questões morais", explica Christa. Junto de seu marido, o francês Laurent Mignonneau, ela criou um universo de criaturas eletrônicas que dançam sem parar num balé frenético. O trabalho, chamado LifeSpacies, também utiliza princípios de engenharia genética para produzir seres inexistentes na natureza. A instalação está no Museu de Intercomunicação de Tóquio e é composta de um cenário virtual em que o visitante parece nadar entre as criaturas.

Mas de permanente, a instalação não tem nada. As criaturas são geradas a partir do texto das mensagens enviadas por correio eletrônico aos artistas. A complexidade dos seres depende literalmente do corpo da mensagem. Para chegar ao código genético dos monstros flutuantes, Laurent desenvolveu um programa que traduz as letras dos e-mails em um algoritmo matemático que representa suas coordenadas no espaço. "Nesse momento, tanto o artista quanto a platéia, que está em qualquer canto do mundo na frente de um PC, lidam com as questões fundamentais da arte e da vida, que são o nascimento, a existência e a morte", analisa Christa. Em sua obra, o casal ainda explora a carga emocional que os visitantes, em particular os japoneses, devotam a bichinhos virtuais – como o Tamagochi – para ficar num único exemplo. Basta enviar uma mensagem pelo endereço www.ntticc.or.jp/~lifespacies e no prazo de 24 horas recebe-se também por e-mail uma foto da criatura gerada, seus dados de nascimento e constituição física. Quando o monstro morre, seu criador recebe um obituário.

Os visitantes reais, em Tóquio, alimentam essas criaturas com letras do alfabeto e interagem num ambiente de realidade virtual, "pegando no ar", com as mãos, a criatura mostrada na tela. Ao ser capturados, os monstros geram clones. Se um visitante real agarrar uma criatura no mesmo instante em que outro clicar sobre outro bicho pela Internet, nasce então outra linhagem de seres com a mistura genética das duas criaturas selecionadas no momento da gênese.

De qualquer forma, as obras e instalações trazem a possibilidade de o público participar ativamente do processo de criação. E, embora a interatividade não seja novidade no mundo das artes, ela mudou com a disseminação da microinformática. Como sempre dependeu da presença física do observador na sala de exposição, a interatividade estava limitada pelo espaço físico dos museus. Com o computador e a Internet, em particular, o que muda é a possibilidade de estender a experiência da interatividade a milhões de pessoas simultaneamente. "O papel do espectador nas obras mais recentes da arte eletrônica é tão fundamental quanto a participação do artista", explica Roy Ascott, um dos decanos da arte eletrônica e fundador do Centro de Pesquisa Avançada em Artes Interativas da Universidade do País de Gales, em Newport, Reino Unido.

Autor dos primeiros projetos artísticos de telemática no mundo, ainda na década de 60, Ascott agora cria obras interativas na Internet e cujo destino, ele sabe, é fugir completamente de seu controle. Dois anos atrás, com um computador a tiracolo, Ascott desembarcou em plena Floresta Amazônica para estudar os rituais de uma aldeia indígena no Xingu. Ascott chegou a incorporar em sua obra cibernética alguns princípios dos rituais xamânicos dos índios. Uma das obras inspiradas nesse princípio é a Xamantic Web, uma espécie de túnel de imagens, sons e sensações que mistura elementos de multimídia com conceitos sobre a natureza das relações entre o real e o virtual. A obra desse inglês alia conceitos de altíssima tecnologia a rituais mágicos de povos nativos e primitivos (seu trabalho está em https://caiia-star.newport.plymouth.ac.uk).

 

Conhecimento técnico – A mais importante consequência dessa interação entre arte e ciência é que os artistas estão cada vez mais técnicos, como nos tempos renascentistas. Isso porque precisam aprender a escrever seus próprios programas e operar computadores cada vez mais sofisticados. Foi o caso de Mignonneau, que escreveu cada linha do algoritmo matemático que transforma texto em formas tridimensionais. Essa geração de artistas digitais está cada vez mais vinculada a centros de pesquisa de alta tecnologia, os verdadeiros financiadores de seus projetos. Por uma única razão: ali estão os instrumentos de tecnologia que os artistas buscam em seu trabalho. "Somos o que se convencionou chamar de artistas pesquisadores", diz Christa.

Como os recursos necessários para transformar esse tipo de arte em realidade podem custar milhares de dólares, essa é uma alternativa para resolver um problema ancestral: a remuneração do artista. "Acontece com a biotecnologia o que ocorreu nos anos 70 com os computadores. Eles eram caros e inacessíveis, como são os laboratórios de hoje. Mas isso não impede que os artistas investiguem como seria o mundo com o uso poético e humano dessa tecnologia", diz Ascott.

Além disso, a Internet permite uma infinidade de reproduções e distorções das obras autênticas. Como são virtuais do início ao fim, os trabalhos eletrônicos também não possuem a chamada "aura" que, dizem os especialistas, envolve as obras originais. Seu valor não é negociado na forma tradicional, fruto de leilões e trocas entre museus, marchands e artistas. Por isso, a questão agora é descobrir como os artistas dessa nova escola podem ganhar dinheiro vivendo de sua arte.


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