Como se já não bastassem as confusões na política, o País ainda pegou fogo. Literalmente. Com a imagem arranhada pelos efeitos recessivos da política econômica e com a popularidade em queda, o governo ainda teve de se desdobrar para minorar os estragos do incêndio que se alastrou Brasil afora. O efeito foi devastador. Assolado pela poderosa estiagem, um país desolado assistiu a paisagens inteiras serem engolidas pelas chamas das queimadas que pipocaram pelos quatro cantos. Na terça-feira 31, a presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Marília Marreco, chegou a anunciar que nada menos que 80% do território nacional encontrava-se sob risco crítico de incêndio. Para alívio geral, Marília garantiu logo em seguida que a situação estava sob controle. Não era o que parecia. Enquanto prestava esclarecimentos à imprensa, as chamas ardiam na Serra das Araras (MT), na Serra da Bodoquena (MS), no Parque Estadual Rola Moça (MG), no Parque Nacional do Araguaia (TO), no Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ). Valioso exemplar da Mata Atlântica brasileira, o Parque da Serra dos Órgãos sofreu baixas irreparáveis. Mais de quatro dias de incêndio destruíram uma área superior em tamanho a 50 estádios do Maracanã. O fogo chegou mesmo a se aproximar do centro do parque, onde vivem diversas espécies ameaçadas de extinção.

A cena era infernal. As altas temperaturas e a fumaça fizeram com que as cobras saíssem das tocas, dificultando a ação dos bombeiros. Um dos focos chegou a pouco mais de 100 metros das pousadas Cabanas do Açu e Paraíso do Açu, em Corrêas, distrito da imperial Petrópolis. "Os vizinhos ajudaram a evitar que o incêndio destruísse nosso prédio. Os carros estacionados ficaram cobertos de cinzas", lembra Lígia Maciel, dona da Paraíso do Açu. As causas do fogo ainda estavam sendo investigadas. O mais provável são as queimadas promovidas por agricultores. Temperaturas mais brandas e elevação da umidade do ar fizeram com que o fogo diminuísse na quinta-feira 2. O socorro concentrava-se no Parque Nacional de Itatiaia. Dados do Centro de Operações do Corpo de Bombeiros fluminense mostraram aumento gritante do número de fogos em florestas do Estado: de 158 em janeiro para 1.004 até o final de agosto.

A extensão dos estragos causados pelas queimadas em todo o País ainda não pôde ser precisada pelo Centro de Pesquisa de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Isso porque os satélites que fazem o acompanhamento dos focos não acusam seu tamanho. "Um foco pode representar tanto a metade de um campo de futebol como uma área 50 vezes maior", explica Carlos Nobre, chefe do Cpetc. O controle do número de focos aponta, por enquanto, que as queimadas têm o mesmo número de anos anteriores. Em agosto de 1998, os satélites registraram 32.112 focos de calor. No mesmo período deste ano, foram 31.108.

Sabe-se, no entanto, que a região Sudeste do País não vive uma seca tão rigorosa desde 1975. "O Sudeste está comendo o pão que o diabo amassou", afirma Nobre. A baixa umidade do ar causou muito desconforto em grandes centros como São Paulo. No ABC paulista, a secura detonou a qualidade do ar, que registrou níveis de poluição acima do recomendável. A falta de chuva dificulta a dispersão da poluição. A Secretaria de Meio Ambiente de Cubatão decretou estado de atenção. Em alguns hospitais da região metropolitana de São Paulo as consultas de crianças até sete anos sofrendo de problemas respiratórios cresceram em 50%. Mas não é só a saúde que sofre. O Ministério das Minas e Energia relata que mês passado houve 40 desligamentos de redes de energia por conta das queimadas. O governo determinou às empresas geradoras e concessionárias de energia uma fiscalização especial nas linhas de transmissão para impedir interrupções no fornecimento.

E a situação ainda pode piorar. Não há previsão de chuva para os próximos dias. O Cpetc trabalha com antecedência de apenas seis dias. Carlos Nobre reconhece que o final da última semana foi feio, com os baixos níveis de umidade. Se não houver chuva em setembro, pode haver mais fogo do que no ano passado. "Não dá para saber o que acontecerá neste mês", diz. Em Minas Gerais, os incêndios estão causando prejuízo à biodiversidade das reservas florestais. Em dois dias, o Corpo de Bombeiros registrou 11 focos de incêndio somente na região metropolitana de Belo Horizonte.

Em Cambuquira, no Circuito das Águas, é desolador o cenário da Reserva Florestal Santa Clara. O incêndio, que acabou na quarta-feira 1º, atingiu nascentes e dois reservatórios que abastecem a população da cidade. Em todo o Estado, estima-se que cerca de cinco mil hectares de florestas – o equivalente a cinco mil campos de futebol – tenham sido devastados. Mas o Estado mais atingido foi o de Mato Grosso. Só em agosto foram mais de 15 mil focos de queimadas, de acordo com Eduardo Figueiredo Abreu, engenheiro do Ibama. Ele atribui o alastramento das queimadas no Estado à expansão da fronteira agrícola. "Nossas autoridades devem refletir melhor sobre este modelo de desenvolvimento agrícola. O custo ambiental a cada ano aumenta mais", critica.

 

Primitivo – Reflexo de uma agricultura atrasada e rudimentar, as queimadas recebem, claro, uma mãozinha do clima seco. Mas devem-se, em boa medida, à falta de mecanização do plantio. A queima é usada para preparar o solo para novo plantio depois da colheita e para limpeza de pastos, muitas vezes provocando o nascimento de capim novo. Isso ocorre à custa do empobrecimento e da salinização da terra. "Costumamos dizer que as queimadas são o trator destes agricultores", explica João Raposo, do Ibama, que na quinta-feira 2 monitorava a situação nas proximidades de Campo Grande. Eduardo Abreu também denuncia a falta de aparelhamento do Ibama como uma das causas da dificuldade em controlar as chamas. "As medidas preventivas dos órgãos ambientais são escassas."

O governo nega falta de investimentos. Só para garantir, o ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, aproveitou para pedir ao presidente Fernando Henrique Cardoso mais recursos para o Ibama. Preocupado, FHC liberou R$ 17 milhões para reforçar o combate a incêndios. O objetivo é aumentar a fiscalização aos desmatamentos e queimadas irregulares. Em reunião realizada no fim da semana, Sarney Filho, FHC e o ministro da Reforma Agrária, Raul Jungmann, discutiram estratégia comum para controlar o problema. Para responder a uma crítica do diretor executivo do Fundo Mundial para a Natureza (WWF), Garo Batmanian, que considerou a inércia do governo a maior responsável pelas queimadas, Sarney Filho prometeu apresentar, nos próximos 20 dias, a regulamentação da lei de crimes ambientais, que aumenta a multa de R$ 4,9 mil para R$ 50 milhões. A lei foi sancionada em fevereiro e não foi regulamentada até agora.

Colaboraram: Ana Carvalho (RR), Aziz Filho (MG), Eduardo Hollanda (DF), Francisco Alves Filho (RJ) e Thiago Lotufo (SP)