O presidente Fernando Henrique Cardoso sacrificou mais um de seus amigos. Depois de Celso Lafer e Bresser Pereira, chegou a vez de Clóvis Carvalho, que durante quatro anos e meio exerceu uma espécie de gerência do Palácio do Planalto. Tido como íntimo de FHC, Clóvis era odiado pelas lideranças políticas e se mantinha no poder graças ao respaldo presidencial. Na última reforma do ministério, Clóvis Carvalho foi "promovido" a superministro do Desenvolvimento. Na pasta, iria comandar a retomada do crescimento, sendo uma espécie de Luiz Carlos Mendonça de Barros revivido. Era tudo que os tucanos queriam ouvir. Mas Clóvis desejava mais. Na quinta-feira, 2, ele resolveu avançar sobre a economia. Num discurso inspirado na apresentação do Plano Plurianual feita pelo presidente na terça-feira, 31, e que beirou a deselegância, Clóvis assinou sua sentença ao partir para cima de Pedro Malan. Ao seguir a trilha de tucanos de grande plumagem como Mário Covas e Tasso Jereissati, Clóvis mostrou que na política não passava de um amador, sem mandato, apesar da jogada ter sido ensaiada. Perto dele, Malan se mostrou, mais uma vez, ser um profissional capaz de atropelar quem aparece no seu caminho e permanecer dando as cartas na economia.

No começo da madrugada da quinta-feira 2, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, saiu cansado e satisfeito de uma reunião de quatro horas com a cúpula do PSDB. Foi dormir convencido de que havia selado uma trégua com os tucanos, principais críticos na base governista da condução da política econômica. Em troca da promessa de que até o final do ano adotará uma série de medidas como a redução das taxas de juros para os tomadores de empréstimos e programas de estímulos a setores como a construção civil e as pequenas e médias empresas, o tucanato prometeu baixar o fogaréu da fritura do ministro da Fazenda. Enquanto Malan pegava no sono, o ministro do Desenvolvimento, Clóvis Carvalho, acordava às quatro da manhã com a corda toda para dar os retoques finais num discurso inspirado em idéias do presidente Fernando Henrique Cardoso e estudos dos irmãos Luiz Carlos e José Roberto Mendonça de Barros. Cinco horas depois, um impaciente Clóvis esperou durante 20 minutos a chegada de Malan a um hotel de Brasília para participar do seminário "Desenvolvimento com Estabilidade", promovido pelo PSDB. "Vou fazer um discurso forte, mas completamente alinhado com a sua política econômica", antecipou Clóvis ao ministro da Fazenda, cuja presença exigira aos organizadores do evento. No melhor estilo do ex-ministro Sérgio Motta, Clóvis chutou o pau da barraca. Surpreendeu o colega Malan com um ataque frontal à política econômica. "Ajustes não podem ser entendidos como camisa-de-força para iniciativas voltadas ao desenvolvimento. Dá, sim, para ousar mais, arriscar mais. E o excesso de cautela, a essas alturas, será o outro nome para covardia", disparou. Ruía ali o roteiro cuidadosamente preparado pelo Palácio do Planalto para mostrar que FHC retomava o controle do governo e passava à ofensiva com o lançamento, na terça-feira 31, do "Avança, Brasil", um ambicioso plano de investimentos públicos e privados para os próximos quatro anos.

Bastou um dia de novas saraivadas de críticas da base aliada à falta de autoridade do presidente e, já no final da noite da sexta-feira 3, Clóvis Carvalho, foi ao Palácio da Alvorada entregar a carta de demissão. Horas antes, havia saído de Fortaleza num avião da FAB com plano de vôo para São Paulo. Recebeu um chamado de Brasília e mudou de rota. Foi recebido na Base Aérea pelo chefe da Casa Civil da Presidência, Pedro Parente, que o acompanhou até a sua residência, onde chegou pouco antes das oito da noite. No trajeto, Parente informou a Clóvis sobre a conclusão do presidente de que não havia mais clima para sua permanência no governo. Enquanto Clóvis, recolhido em casa com alguns assessores, redigia sua carta de demissão, Fernando Henrique promovia no Alvorada uma reunião com ministros, comandantes militares e oficiais generais. Coube ao ministro do Planejamento, Martus Tavares, fazer uma explanação sobre o Plano Plurianual e o Orçamento para as Forças Armadas. Depois da reunião, o presidente ofereceu um jantar que terminou pouco antes das 11 da noite. Quando os convidados saíram, Clóvis Carvalho foi chamado ao palácio para a conversa definitiva com FHC. Repetiu-se ali a velha receita do presidente, de explicar a um antigo amigo e auxiliar leal que não tinha mais condições de mantê-lo no cargo.

O presidente cuidou pessoalmente de aproximar o ministro da Fazenda da cúpula tucana. A ordem era evitar marolas para não ofuscar o brilho presidencial na semana de lançamento do Avança Brasil. Escalado pela direção do partido, o senador Paulo Hartung (ES) telefonou na segunda-feira 30 para o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, vice-presidente do PSDB para assuntos econômicos, e disse que sua presença seria inconveniente no jantar dos tucanos com Malan e no seminário partidário. Tudo correu de acordo com o script até o explosivo discurso de Clóvis. "A gente faz um esforço danado e vem o Clóvis e faz um estrago desses, isso é uma palhaçada", reclamou o líder do governo no Senado, José Roberto Arruda, ao secretário-geral da Presidência da República, ministro Aloysio Nunes Ferreira. Foi um corre-corre no Planalto. Enquanto Malan mais uma vez ameaça pedir o boné e cobrava de FHC a cabeça de Clóvis Carvalho, o ministro do Desenvolvimento não via motivos para o chilique de seu colega da Fazenda. "Estão vendo fantasmas. O que fiz foi repetir idéias do próprio presidente", tentava justificar Clóvis em conversa com Aloysio Nunes. Não colou.

 

Bangue-bangue – Em meio ao tiroteio, Fernando Henrique ficava cada vez mais irritado. Sentia que sua autoridade voltava a ser colocada em xeque pelos caciques aliados. "Acho que o presidente deve unificar a linguagem do seu governo. O problema não é do presidente do Senado e sim do outro presidente", alfinetou o senador Antônio Carlos Magalhães. "Essa briga é muito estranha. A política econômica tem de ser do presidente. Se não for, ele vira uma rainha da Inglaterra", reforçou o presidente do PMDB, senador Jader Barbalho. "A culpa disso é de Fernando Henrique, que é incompetente para decidir", atacou o presidenciável Ciro Gomes. No Planalto, FHC prometia uma ação dura para reafirmar a autoridade presidencial. Mas o porta-voz, Georges Lamazière, contemporizou: "O presidente qualificou de retóricas as diferenças de ênfase entre os ministros e reafirma que o ministro Malan tem seu apoio integral." A reação conciliadora repercutiu mal no Congresso. Na manhã da sexta-feira 3, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) foi à tribuna desancar o comportamento presidencial por causa das interpretações de que há impressão digital de FHC nas pancadas desferidas por Clóvis. "Não aceito, não admito uma acusação dessa natureza contra o presidente. Esse tipo de fritura é imoral", disse Simon. O senador, que já havia derrubado o ex-ministro Mendonça de Barros com um contundente discurso, voltou à carga em tons mais duros ainda: "Ou o ministro Malan é um covarde e, portanto, não pode permanecer no governo, ou o Clóvis Carvalho é um tremendo irresponsável e tem que ser demitido pelo presidente."

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O presidente estava vivendo um dilema. Foi ele quem instruiu Clóvis Carvalho a colocar pressão sobre Malan para afrouxar as amarras que impedem a retomada do crescimento econômico e mantêm a popularidade presidencial no fundo do poço. A crítica palaciana a Clóvis é mais pela forma do que pelo conteúdo de seu discurso. "As idéias até que estão bem amarradas, o problema foram os adjetivos", avaliou um ministro que está desempenhando papel de bombeiro na brigalhada na equipe econômica. O próprio Clóvis deu uma entrevista à imprensa na última sexta-feira para dizer que foi mal interpretado. "Estou chocado. Os analistas pinçaram três palavras e não leram o discurso inteiro. Eu e o Malan estamos juntos no projeto de fazer o País crescer 4% no próximo ano", recuou o ministro do Desenvolvimento, numa postura de morde e assopra adotada várias vezes por Serjão. Sempre que Sérgio Motta distribuía pancadas, a dúvida era se ele estava ou não falando por Fernando Henrique. No caso de Clóvis Carvalho, o presidente tomou conhecimento do teor do discurso depois que ele foi feito, apesar de um dos responsáveis pela redação ter sido o ex-secretário-geral da Presidência Eduardo Graef, que também redige os pronunciamentos presidenciais. Num primeiro momento, fez apenas pequenos reparos. Depois, acabou cedendo às cobranças da equipe econômica e assessores palacianos ao argumento de que o ataque de Clóvis arranhou a autoridade presidencial e resolveu demitir o ministro do Desenvolvimento. Em vez de seguir de Fortaleza para São Paulo, como estava previsto, Clóvis retornou no início da noite da última sexta-feira para Brasília, onde foi recebido na Base Aérea pelo chefe da Casa Civil, Pedro Parente, que lhe comunicou a decisão presidencial.

Na realidade, o que Clóvis fez em seu discurso foi tornar público um conflito que está agitando os bastidores do governo. Na segunda-feira 30, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento promoveu uma reunião para bater o martelo sobre o projeto que prorroga a vigência dos incentivos fiscais da Lei de Informática. Para irritação geral, a turma de Malan simplesmente vetou o projeto por ser contra a concessão de vantagens à indústria nacional. O tucanato não gostou e aproveitou o jantar na casa do senador Teotônio Vilela Filho para forçar um recuo do ministro da Fazenda. Não foi a única enquadrada em Malan. O ministro tentou convencer os tucanos de que medidas para revitalizar a economia poderiam ser adiadas para o ano que vem. "Temos até junho do próximo ano", disse Malan. O PSDB não topou esse prazo e exigiu uma ação imediata do governo. "Daqui a 60 dias, vamos nos reunir novamente com o ministro para fazer um balanço do que foi feito da agenda acertada", diz o líder do PSDB na Câmara, deputado Aécio Neves (MG).

 

Campanha – Há duas razões para a pressa tucana. O partido teme pagar nas eleições municipais o preço do desemprego e do comportamento medíocre da economia. Mas também quer mudar o cenário para tentar reverter a insatisfação popular com o governo que está dando gás às esquerdas e turbinando a candidatura presidencial de Ciro Gomes. O PMDB, porém, desconfia dos tucanos. Na quarta-feira 1, em um café da manhã na casa do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, os ministros peemedebistas e o comando do partido chegaram à conclusão de que os tucanos estão fazendo jogo duplo na sucessão presidencial. Estariam estimulando por baixo do pano, inclusive com ajuda financeira, o fortalecimento de Ciro numa preparação para a hipótese de Fernando Henrique não conseguir recuperar a popularidade perdida. "Em vez de procurar chifre em cabeça de cavalo, o PMDB deveria se preocupar é com seu esvaziamento. Muitos peemedebistas estão nos procurando para entrar no PPS", rebate o presidente do partido, senador Roberto Freire (PE). Com ou sem boas alternativas na corrida presidencial, os parceiros governistas prometem aumentar a pressão por uma correção de rumo na política econômica. Por enquanto, Malan tem dado sinais de que até topa se enquadrar e promover algumas mudanças para tentar se manter no cargo. Mas nada que entre em conflito com o receituário do FMI. Agora, com Clóvis fora do cargo, Malan está mais forte para resistir às pressões. Aproveitou uma reunião no Senado, na terça-feira 31, para dar seu recado a todos que pensem em encará-lo dentro do governo: "Para fazer bolha de crescimento, vão precisar de outro, um fazedor de bolhas."

Colaboraram: Mário Simas Filho (SP) e Sônia Filgueiras (DF)


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