“Tin… nhin… nhin… nhin… e eu tentando me manter acordado. Aquela coisa de concerto: de repente, tchan! A gente toma um susto e a música acelera. Em outra hora, vai beeem devagar. Vinte minutos depois, aplausos, o som para. E eu fico sabendo que acontecerão várias outras sessões iguais a essa!” Numa sala do escritório de sua assessoria, em São Paulo, Luiz Felipe Scolari descreve sua primeira vez numa audição de música clássica, em novembro, no Rio de Janeiro. Enquanto isso, a meia dúzia de pessoas à sua frente se dobra de rir com a saborosa narrativa, iniciada com uma confissão: Felipão reconhece o valor, mas não gosta desse estilo musical. Prefere um bom pagode. Em poucos minutos, a pequena plateia está seduzida. Mas o atual técnico da Seleção Brasileira de futebol tem sido capaz de arrebatar públicos bem maiores. Reconquistou o torcedor em junho, quando venceu a Copa das Confederações com um incontestável 3×0 sobre a campeã mundial Espanha, no Maracanã. Mais do que isso, ao reassumir o posto, deixado em 2002 após a conquista do penta, resgatou a alegria e a vibração do futebol brasileiro, que andava sisudo e acanhado nos últimos anos. Agora, tem pela frente sua maior missão em 31 anos de carreira como técnico: comandar a Seleção na Copa do Mundo do Brasil no ano que vem.

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COMEMORAÇÃO ANTECIPADA
O técnico cravou após a goleada contra Honduras,
no mês passado: "O Brasil vai ser campeão"

É vencer ou vencer. E Felipão, 64 anos, sabe disso. Sabe, também, que não haverá, em 2014, cargo sob mais holofotes do que o dele. Por esses motivos, foi escolhido por ISTOÉ o Brasileiro do Ano nos Esportes. “Nem eu aceito o vice-campeonato no Mundial do Brasil”, diz Felipão, que está tão focado no hexa em 2014 que diz sentir menos pressão do que em 2002, quando teve de atravessar as eliminatórias. “Agora eu não tenho escolha, só posso ganhar, então é muito mais tranquilo”, raciocina, em sua lógica própria. É certo que a personalidade solar desse gaúcho de Passo Fundo, que reconhece só pensar depois de já ter falado, é um fator decisivo para o sucesso dessa Seleção. Felipão é um técnico ousado, que usa a intuição. E isso faz toda a diferença no seu trabalho. O comentarista e ex-jogador Tostão usa como exemplo as substituições que Scolari faz. “Muitas vezes não são as que todo mundo espera, e, mesmo assim, dão muito certo”, diz.

O atual técnico da Seleção está longe de ser apenas a figura bonachona e folclórica, que faz caretas impagáveis a cada erro do juiz ou falta do adversário. É também um profissional pragmático e observador – e criativo. Essa boa mistura, entre o emocional e o objetivo, tem rendido muitos títulos. É certo que ele passou por uma entressafra antes de assumir o comando do Brasil, a ponto de ser chamado de ultrapassado. Havia acabado de sair de um Palmeiras moribundo, às portas da Série B do Campeonato Brasileiro no ano passado (fato que se concretizou). Sua atual performance calou as críticas e ele rapidamente voltou a ser unanimidade. Mais do que isso, Scolari tem se mostrado um técnico atento. Assiste ao maior número de jogos possível, de campeonatos nacionais e internacionais. Foi assim que encontrou alternativas para a ausência de Fred, seu atacante titular, atualmente contundido. Inspirado no moderno Barcelona, da Espanha, que não atua com um centroavante fixo, Felipão tem lançado mão de três atacantes. “Ele está provando que sabe usar muito bem os jogadores disponíveis para fazer com que a Seleção funcione”, diz Túlio Velho Barreto, vice-coordenador do núcleo de sociologia do futebol da Fundação Joaquim Nabuco e Universidade Federal de Pernambuco, no Recife.

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CARREIRA
Felipão levanta a taça de melhor jogador quando atuou pelo Caxias, nos anos 1970

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Uma coisa é certa: o estilo Scolari funciona em seleções. Sua fisionomia forte, de patriarca confiável, reflete uma figura carismática. Esse é o Felipão do senso comum, que cria empatia com a população. O jeito simples de falar desse gaúcho devoto de Nossa Senhora de Caravaggio estabelece um canal direto com o interlocutor. “Os torcedores se identificam com o Felipão”, afirma Barreto. “Ele trouxe de volta a alegria ao time e conseguiu resgatar a Seleção Brasileira como um dos símbolos nacionais.” Acrescentando-se a porção pragmática do treinador, que o torna um especialista na disputa de torneios de tiros curtos, tem-se uma receita de sucesso. Vide a quantidade de Copas do Brasil (quatro) ganhas por ele.

Bastam poucos minutos com Luiz Felipe Scolari para ver cair o mito sobre sua decantada rabugice. Longe dos holofotes, Felipão é, antes de tudo, uma pessoa doce. Trata a todos com extrema atenção e delicadeza. É paciente, calmo, solícito, sorridente… A mesma simplicidade que o faz confessar preferir um bom samba à música clássica pauta sua vida.

Felipão reconquistou o torcedor brasileiro ao vencer a Copa
das Confederações com um incontestável 3×0 sobre a Espanha

Na noite de 30 de junho, logo depois de se sagrar campeão da Copa das Confederações, Felipão só tinha uma preocupação: queria voltar para casa, em São Paulo. Na falta de voo disponível, conseguiu um ônibus e embarcou com parte da comissão técnica. Scolari segue uma rotina regrada. Todas as quintas-feiras, vai ao mercado com dona Olga, com quem completará 40 anos de união em 29 de dezembro. A companheira, porém, reclama da companhia nas compras. “Ela fica brava com

o assédio, diz que a atrapalha, então manda deixá-la e voltar em duas horas”, conta, resignado. É com a mulher também que Felipão caminha, nos fins de semana, num dos mais movimentados parques paulistanos. Costuma ir à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), no Rio de Janeiro, semanalmente. Mas sobra tempo para, no fim da tarde, tomar uma caipirinha com os amigos, geralmente ex-jogadores, perto de sua casa. Também aprecia um bom vinho, gosto aprimorado nos anos em Portugal.

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ESTILO
Treinando a Seleção Brasileira e, à esq., com dona Olga,
com quem completa 40 anos de casado em 29 de dezembro

O gaúcho também valoriza as relações de amizade, como a construída com Flávio Murtosa, auxiliar técnico da Seleção e companheiro de trabalho há 30 anos. “Luiz Felipe é um irmão. Ultrapassamos muitos momentos difíceis juntos”, afirma Murtosa, 62, que conta um episódio para demonstrar a fidelidade do parceiro. Felipão, diz ele, sempre sonhou trabalhar na Seleção. Até que, em 2000, foi convidado para substituir Wanderley Luxemburgo no comando do time. Scolari não aceitou porque a CBF não o deixou levar seu fiel escudeiro. “Ele disse: ou vamos todos ou não vai ninguém”, relata Murtosa. É esse espírito de grupo que o técnico consegue imprimir em suas seleções. A atual, em especial, formada por jogadores jovens, precisa mais do que nunca do Felipão “paizão”. E por que aceitar o desafio de comandar a Seleção Brasileira, e viver sob as intempéries das críticas baseadas em resultados, tendo um currículo já tão vitorioso? “A Seleção é a casa onde todo mundo quer estar”, afirma. “E eu ia esperar outra oportunidade dessas, aos 63 anos?” Definitivamente, Felipão está no lugar certo, na hora certa.

Fotos: João Castellano/Ag. Istoé; Ailton de Freitas/Ag. o Globo; Luis Ávila/ag. Rbs; REUTERS/Claudia Daut; AFP PHOTO / VANDERLEI ALMEIDA