O brasilianista Thomas Skidmore prevê estado de emergência para o presidente retomar condições de governabilidade e sugere Delfim no lugar de Malan

O historiador Thomas Skidmore ganhou o título de brasilianista depois de estudar durante vários anos a história política e social do País. "Cheguei aqui pela primeira vez em 1961, durante a ressaca da renúncia de Jânio Quadros", lembra o respeitado professor da Brown University. Desde então, Skidmore debruçou-se sobre o legado de 16 governos brasileiros, que lhe renderam dois best sellers da literatura acadêmica do País (Brasil: de Getúlio a Castello e Brasil: de Castello a Tancredo). Se toda essa experiência lhe deu conhecimento suficiente para prever, de maneira correta, o futuro político do País, o presidente Fernando Henrique Cardoso tem muito com que se preocupar. Aos 67 anos, Skidmore evita meias palavras e diz com todas as letras que FHC poderá decretar um estado de emergência no País, suspendendo direitos constitucionais para recuperar condições de governabilidade. "Daqui a um ano, com o déficit fiscal maior, como é que o governo vai cortar os gastos se o Congresso não cooperar? Seria impossível. Além disso, é uma solução democrática porque está na Constituição", afirma o professor americano, lançando uma tese, no mínimo, polêmica. A outra saída, segundo ele, não parece ser menos agradável ao presidente. "ACM vai ser o cacife de Fernando Henrique", imagina Skidmore, referindo-se ao presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). "ACM gosta de dizer ‘não’, ao contrário do presidente", justifica o historiador, que está no Brasil para participar de um simpósio sobre relações raciais, que ocorrerá no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, entre os dias 1º e 3 de setembro. Antes, porém, passou por Brasília para ver seus amigos da capital. Entre um encontro e outro, deu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – Depois de estudar a história de tantos presidentes brasileiros, como o sr. avalia a atual situação de Fernando Henrique Cardoso?
Thomas Skidmore

Obviamente, é uma situação muito difícil. A fragmentação dos partidos deixa o governo numa posição muito frágil. E mesmo o partido do presidente está sofrendo baixas. Além disso, falta ao Brasil experiência com o processo democrático. A democracia renasceu em 1985, mas isso foi há muito pouco tempo.
 

ISTOÉ – E qual é a responsabilidade do presidente nesta crise?
Thomas Skidmore

 Conheço o Fernando Henrique bastante bem há 30 anos. Ele é um ótimo professor, mas como político cometeu um grave erro quando resolveu continuar seu governo num segundo mandato. Ele perdeu a oportunidade de fazer as reformas para conseguir a reeleição. Confiava no Plano Real, quando ele já estava se extinguindo por causa da sobrevalorização. E agora, como homem e como político, decepcionou o povo. Ele tentou ganhar duas eleições com o real e isso foi um erro.
 

ISTOÉ – A desvalorização do real piorou esse quadro?
Thomas Skidmore

Com a desvalorização, a imagem dele se distorceu muito. Além disso, mostrou que ele não é diferente dos outros políticos. A meu ver, o papel histórico dele seria o de presidente da entressafra, fazendo a estabilização. Ele não tinha idéias para a ponte (entre a estabilização e o crescimento econômico). E agora Fernando Henrique Cardoso está perdido. Depois de quatro anos, está de novo com o problema da estabilização. E sem possibilidades de crescer.
 

ISTOÉ – Não há chance para um plano alternativo?
Thomas Skidmore

 Acho que o governo não tem planos para que o Brasil possa tomar conta de seu futuro. Só fica reagindo aos problemas, no dia-a-dia. Eu entendo que isso possa ser natural, mas mostra uma falta de liderança política.
 

ISTOÉ – O presidente deixou de ser uma liderança?
Thomas Skidmore

Isso é consequência da personalidade dele. Ele não gosta de confronto. Não é um ACM (Antônio Carlos Magalhães, presidente do Senado). Fernando Henrique prefere falar, negociar… Mas reformar o sistema partidário é uma coisa dura. Alguém vai perder. E ele não gosta disso. O Brasil desperdiçou cinco anos por causa disso.
 

ISTOÉ – Esse perfil mais complacente não pode ser influência da longa experiência acadêmica do presidente?
Thomas Skidmore

 Não. Isso é personalidade. É coisa de brasileiro. Tenho amigos brasileiros que nunca pronunciaram a palavra "não". Dizem: "quem sabe amanhã, vamos ver…" Nunca dizem "não". Agora temos duas décadas perdidas: 80 e 90. Falta um pouco de imaginação ao governo brasileiro para pensar uma nova estratégia.

ISTOÉ – E isso se reflete automaticamente na falta de popularidade do presidente.
Thomas Skidmore

É, o povo está desanimado. A meu ver o brasileiro oscila entre duas emoções. A primeira é o ufanismo: "O Brasil é o melhor do mundo." E a outra, o derrotismo: "O Brasil não vale nada, ou o Brasil não dá." Portanto, é bem possível que a popularidade do Fernando Henrique possa voltar a subir. Afinal, não há escândalos envolvendo o Palácio do Planalto.

ISTOÉ – Mas os movimentos populares e da oposição estão mais insistentes…
Thomas Skidmore

 Isso é saudável. Isso é que é democracia, com a sociedade civil reagindo. Ainda que o presidente não goste.
 

ISTOÉ – A situação de Fernando Henrique pode ser comparada à de outros presidentes brasileiros?
Thomas Skidmore

Ele está parecido com José Sarney, que viveu um momento muito difícil no final do governo. Talvez, agora, fosse até o momento de Delfim Netto (deputado federal pelo PPB de São Paulo) voltar ao governo. Talvez o Brasil precise de alguém tão louco como o Delfim para reaquecer a economia.
 

ISTOÉ – O sr. acha que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, está precisando de substituto?
Thomas Skidmore

Malan é o filho leal. Ele passou anos e anos negociando a dívida externa brasileira. Teve de falar com aqueles banqueiros arrogantes como um suplicante brasileiro pedindo um pouco mais. Ele é muito inteligente, é bom economista, mas para meu gosto é internacional demais. Ele está pensando mais na aprovação de Washington do que na margem que o Brasil tem para manobras.
 

ISTOÉ – Mas o presidente não tem sensibilidade para isso? Ele não entende de economia?
Thomas Skidmore

 Não. No Ministério da Fazenda, ele tinha uma equipe muito boa. Ele não tem sensibilidade. Quem mandava era o Gustavo Franco. Pedro Malan, inclusive, é um tipo de Gustavo Franco light. O Franco é que estava em cima de tudo, apesar de ser um tipo desagradável.
 

ISTOÉ – A comunidade financeira internacional continua apoiando o ministro Pedro Malan?
Thomas Skidmore

 Em janeiro, com a crise, Fernando Henrique teve o momento certo para dispensar Pedro Malan e Gustavo Franco. Eram os homens identificados com a política desastrosa. Mas Fernando Henrique quis continuar com a mesma política, o que foi outro erro. Agora, o povo não pode mais ter confiança no Malan, que era o homem que estava dirigindo a economia antes da crise. Isso seria a lógica política que Fernando Henrique não quis aceitar. Malan é refém da política e ele é estóico, um homem muito leal. Não vai dar uma punhalada pelas costas de FH. Admiro-o, mas ele apostou e perdeu.

ISTOÉ – O sr. vê alguma comparação entre Malan e Domingo Cavallo, ex-ministro da Economia da Argentina?
Thomas Skidmore

 Malan é muito diferente. Ele é muito menos rígido do que o Cavallo, que é louco e paranóico. O Pedro não é assim. Além disso, o Cavallo exagerou na política. Os argentinos sempre exageram… (risos) Imagine voltar para o padrão-ouro. É uma loucura. Isso escapa a qualquer controle. Além disso, o Cavallo gostaria de ser presidente. Acho que o Pedro não. Ele está cumprindo o papel dele.
 

ISTOÉ – Há uma impressão de fim de governo?
Thomas Skidmore

 Já existe sim e isso é perigoso. Os ratos estão saindo do barco, abandonando o governo. Essa fragmentação dos partidos é perigosa e colabora para piorar a situação. É bem possível que o Brasil tenha um déficit público maior no ano que vem. E o déficit da Previdência é uma coisa louca. Isso é um monstro que está crescendo. A perspectiva não é das melhores.
 

ISTOÉ – O sr. não vê luz no fim do túnel?
Thomas Skidmore

 Uma solução seria congelar os pagamentos da Previdência, ou pagar metade e prometer outra metade para o futuro. Mas, politicamente, isso seria horrível. Há uma situação muito difícil. É bem possível que Fernando Henrique possa precisar de um estado de emergência, alguma coisa assim.

ISTOÉ – Algo tão grave?
Thomas Skidmore

Pense daqui a um ano, com o déficit fiscal maior, como é que o governo vai cortar os gastos se o Congresso não cooperar? Seria impossível.
 

ISTOÉ – Mas essa seria uma solução no limite da democracia.
Thomas Skidmore

É uma solução democrática porque está na Constituição. E isso com mais medidas provisórias, para passar pelo Congresso. Outra possibilidade seria o ACM aparecendo mais e mais e mais… Quem vai salvar o Fernando Henrique agora, com esses agricultores? O ACM! Saiu hoje no jornal. Ele vai cortar o projeto de refinanciamento no Senado.
 

ISTOÉ – ACM vai assumir a responsabilidade de dizer não.
Thomas Skidmore

 Ele gosta de dizer não. Ele gosta. Ele tem huevos (testículos), como dizem os mexicanos. ACM vai ser o cacife do Fernando Henrique.
 

ISTOÉ – O que seria uma ironia, para quem lutou contra a ditadura, ter como cacife um político que cresceu na ditadura.
Thomas Skidmore

 Completamente. Principalmente se houver uma piora da economia. Nesse ambiente, a solução clássica é o crescimento. Mas não existe essa saída, porque há problema com a inflação e com o balanço de pagamentos.
 

ISTOÉ – A recuperação da economia internacional, então, pode ser um trunfo.
Thomas Skidmore

 Não sei. Acho que o caso do Fernando Henrique é muito complicado. Também foi um erro dele viajar tanto para fora do País. Realmente o que ele gosta não é de aparecer no interior de Pernambuco, cumprimentando um peão. Isso é chato. Mas com a rainha da Inglaterra é outra coisa. E ele é ótimo para isso. Ele é muito inteligente, mas não sei até que ponto tem apoio popular. Psicologicamente, ele vendeu a idéia de que ia entregar estabilidade à população. E se não houver estabilidade, o que vai entregar? O que ele tem agora?
 

ISTOÉ – O rei está em xeque?
Thomas Skidmore

 Em certo sentido, sim. Mas o historiador é um mau profeta. Várias vezes eu já previ coisas que nunca aconteceram.
 

ISTOÉ – Por exemplo?
Thomas Skidmore

 No final do governo Sarney, quando a inflação era de 100% ao mês, achei que haveria a decretação de estado de emergência. Sarney também parecia perdido, mas ele conseguiu sobreviver. Agora é proprietário do Amapá.
 

ISTOÉ – E os militares, conseguiram sobreviver?
Thomas Skidmore

Isso é um problema. Mãos que não têm trabalho são perigosas. Acho que a melhor função para eles seria uma ação cívica, no interior do País. O Exército do Brasil jamais teve capacidade de defender suas fronteiras. Nem a Marinha. Isso é completamente impossível. Mas, curiosamente, há pouca preocupação fora das Forças Armadas para esse problema.
 

ISTOÉ – Como o sr. avalia as reformas neoliberais na América Latina?
Thomas Skidmore

Acho que num primeiro capítulo, o consenso de Washington recomenda que o país seja bonzinho, crie um banco central, siga as instruções do FMI, privatize e depois simplesmente espere os acontecimentos. Quem vai dar impulso à economia? Os empresários. Mas se não houver empresários dinâmicos… O Brasil, agora, vai depender completamente da decisão de investimentos estrangeiros. O controle da economia está sendo entregue para poderes estrangeiros. Mas não sabemos ainda o que poderá acontecer num segundo capítulo.
 

ISTOÉ – O sr. está otimista?
Thomas Skidmore

Não. Não estou.