No orçamento da corretora de imóveis Luciana Esnarriaga, 36 anos, não estão previstos gastos com a casa, como contas de luz e água, compra de supermercado ou tevê a cabo. Tudo que ela ganha é gasto com suas despesas pessoais, como celular e carro, além da diversão, que inclui as baladas nos fins de semana e as viagens, sua grande paixão. O sustento da moradia é bancado pelos pais, que proporcionam à moça, além do aconchego familiar, comida e roupa lavada. “Moro com os meus pais porque a gente se dá muito bem, é muito tranquilo e gostoso estar com eles”, diz Luciana. “Tenho a minha liberdade para trazer quem eu quiser em casa, como amigos e namorado. Não vejo sentido em morar sozinha no momento.” A corretora de imóveis que se formou em direito, mas resolveu trabalhar na imobiliária da família com a mãe, Angelita Esnarriaga, 64 anos, está longe de ser uma exceção entre a turma de mais de 30 que ainda não deixou o ninho. Pelo contrário, esse grupo, chamado pelos estudiosos do tema de “geração canguru”, só vem aumentando. Nos últimos dez anos, o número de adultos entre 25 e 30 anos morando com os pais cresceu mais de 40%, enquanto a idade média de os filhos saírem de casa passou dos 25 para os 35 anos.

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ECONOMIA
O corretor de imóveis Adriano Beccari, 36 anos, só estudou nos
EUA porque conseguiu juntar uma boa quantia vivendo com os pais

A constatação faz parte do trabalho de pesquisa da psicóloga Mariana Figueiredo, que deu origem ao livro “Geração Canguru Ninho Cheio – Filhos Adultos Morando na Casa dos Pais” (editora Versos, 192 págs.). Assim como a corretora Luciana, um time cada vez maior de trintões, até quarentões, já formados e inseridos no mercado de trabalho, prefere continuar sob a asa paterna a sair de casa e começar uma vida do zero, com muitos desafios e sem privilégios. “É um reflexo do novo modelo de sociedade, em que homens e mulheres passaram a priorizar as suas profissões, fazendo com que o casamento e a formação de família sejam cada vez mais tardios, somado a um contexto de grande liberdade sexual”, afirma Mariana, baseada em sua vasta experiência como terapeuta familiar no consultório, onde entrevistou dezenas de “famílias cangurus”, junto com anos de pesquisas sobre o tema na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Um dos pontos positivos dessa história é observar como as relações ganharam em qualidade nos últimos anos, passando a ser mais igualitárias. “Os pais estão dando maior liberdade aos filhos e isso permite estender suas estadias por mais tempo.”

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DO MEU JEITO
Daniel Dezontini, 37: ele arriscou abrir um negócio
próprio porque tinha respaldo financeiro dos pais

A construção de carreiras de sucesso é um outro aspecto positivo desses adultos que adiam a saída de casa. A segurança proporcionada pelos pais permite um investimento maior na carreira. É possível garantir um bom curso de línguas, uma pós-graduação ou MBA e cumprir as exigências do mercado. “Eu fiz pós-graduação em ortopedia, curso de pilates e outros investimentos fundamentais na minha área, que certamente não conseguiria se estivesse morando sozinha”, diz a fisioterapeuta Elaine César de Matos, 34 anos, que vive com a mãe em São Paulo. Já o corretor de imóveis Adriano Beccari, 36 anos, conta que só realizou o sonho de morar durante quatro meses nos Estados Unidos e aperfeiçoar o inglês porque conseguiu juntar uma boa quantia vivendo com os pais.

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PARCERIA
Luciana e Angelita Esnarriaga: aos 36 anos, a advogada
e corretora de imóveis trabalha e mora com a mãe

Os filhos cangurus encontram, ainda, o apoio de uma corrente de psicólogos britânicos que discutem a necessidade de estender a adolescência até os 25 anos, e não mais até os 18. Segundo eles, essa medida evitaria que os jovens se sentissem pressionados a atingir marcos importantes, como a entrada na faculdade, por exemplo, o que pode levar a um complexo de inferioridade caso não os alcancem. Mas nem todos os especialistas concordam com essa tese. “Os pais estão retardando o crescimento dos filhos e a entrada deles na vida adulta”, diz o terapeuta familiar Moises Groisman. “Isso é totalmente negativo.” Unido a ele, está um time que defende que o amadurecimento tardio traz impactos negativos a esses jovens que cresceram cercados de cuidados excessivos. “São pessoas que não toleram nenhuma frustração”, afirma a psicóloga Lídia Aratangy. O advogado Daniel Dezontini, 37, que mora com os pais em São Paulo, confessa que montou o próprio escritório aos 30 porque não conseguia se adaptar a nenhum emprego. “Ter o respaldo dos meus pais me deixou mais corajoso para arriscar e engolir menos sapo.”

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Mas uma coisa é certa: por trás de todo filho canguru, existe um pai canguru. Em suas pesquisas, Mariana percebeu que muitos possuíam um comportamento ambíguo, ora estimulando as crias a serem independentes, ora recuando e se tornando possessivos. “Existe também um medo grande dos pais de encararem a realidade do envelhecimento, da renovação do casamento, de uma relação que precisa ser reconstruída”, afirma Groisman. O discurso de dona Angelita, mãe da corretora Luciana, confirma a tese: “Eu até acho que a Luciana pode se acostumar mal, porque tem muita mordomia, mas, se um dia ela for embora, eu vou sentir demais a falta dela”, confessa.

Fotos: Rafael Hupsel, Pedro Dias – Ag. Istoé