Decidi escrever minha autobiografia – não autorizada. Entediado com essa eterna discussão se o biógrafo precisa ou não das bênçãos do biografado, lembrei-me que estamos em pleno século XXI e na minha opinião fica entre o anacrônico e o absurdo essa perda de tempo em se discutir ainda a censura, seja ela pré ou pós – censura não tem de existir, e ponto final. Resolvi então lançar-me à aventura de minha autobiografia não autorizada, mas, como não dei a mim mesmo autorização, não sei o que sairá – até porque me é impossível descobrir qual parte minha vai escrever sobre a outra parte, minha também. E que todos nós temos no mínimo uma face para as ruas e outra para o travesseiro, isso todos nós temos! Admito, não sem constrangimento, que tive calafrios noturnos receando que eu não goste de algumas coisas que eu mesmo revelarei a meu respeito e decida recorrer à censura. Eu me mostro publicamente liberal e democrata, é desse olhar de admiração pública que meu ego se alimenta, mas, gente… como fica a minha situação se eu recorrer à censura para me autocensurar? E se um lado meu quiser contar intimidades do outro, sigilos meus de sauna ou de alcova… pior ainda, planos de ser político? Já imaginaram, a partir daí, uma fração do meu eu contando que outra fração do meu eu é censora?

Acometido por profunda crise de ansiedade nessa cisão, decidi falar com uma advogada civilista. Disse-me ela: “Relaxa, faça como Machado de Assis que escreveu sobre si com a ‘pena da galhofa’. Jamais advogarei para o teu lado censor, defenderei sempre a liberdade do teu lado escritor, e assim estarei defendendo o Estado Democrático”. Engraçado, ela falou de Machado, eu me lembrei de Noel Rosa, o mais genial de todos e que possuía o humor e a inteligência de fazer tudo com seriedade. mas sem se levar a sério. Dizia o poeta da Vila Isabel, “falem mal mas falem de mim”. E passei a lembrar de outros pontos. Foi numa biografia mais do que autorizada, por exemplo, que se deu a Winston Churchill a paternidade da frase “sangue, suor e lágrimas” referente ao sacrifício dos ingleses na Segunda Guerra Mundial. Na verdade, antes de Churchill essa frase foi utilizada pelo poeta Byron, que, por sua vez, a surrupiou do também poeta John Donne.

Ficou cristalizado numa biografia, essa não autorizada, que o humorista Groucho Marx foi quem criou a frase “eu jamais ingressaria num clube que me aceitasse como sócio”. O certo é que a frase é do sisudo Sigmund Freud. Aliás, falando em Freud, a definição da psicanálise como “a cura pela palavra” não é dele como consta de muitos relatos sobre a sua vida, autorizados ou não – é de Anna O., uma de suas mais famosas pacientes. E Cleópatra, que entrou para a história como egípcia, meu Deus, ela era grega! E a glória dada pelos biógrafos a Júlio César que “atravessou o Rubicão”? Hoje se sabe que o Rubicão era um laguinho tão raso que dava para sapatear.

O mundo continua a ser o mundo, com suas perfeições e imperfeições, apesar de tudo de certo e de errado que entrou para a história nas biografias autorizadas ou não. Os parlamentares pátrios vão votar na semana que vem a questão das biografias e da censura, e há até a proposta de que casos de ofensas sejam resolvidos em ritos sumários – também me dá calafrios, esses noturnos e diurnos, cada vez que ouço falar em ritos sumários (descobrimos a cada dia planetas fora do sistema solar que eventualmente podem ter vida e por aqui ainda discutimos a censura). Tomei um Lexotan, abri o computador e relaxei mesmo: deixei os meus dedos à vontade para digitarem o que bem quiserem sobre o seu dono – que, obviamente, sou eu. E, daqui para a frente, quando tocarem nesse assunto, vou recorrer mesmo ao teclado da galhofa.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias