Os ventos estavam contra no início de tarde na bela Suape, em Pernambuco. Percy Blanco, 52 anos, puxa o barco de apoio para dentro do Galileo, um veleiro de aço com 38 pés (cerca de 12,5 metros), mastro de 15 metros, uma vela, duas genoas (velas auxiliares), motor de 51 HP e capacidade homologada para seis pessoas. Dá boas-vindas, apresenta a mulher, Zilda, 52, e dispara uma frase, dita por uma amiga, Mara Blumer, também velejadora: “Quando o seu barco, há muito ancorado no porto, lhe dá a ilusão de ser uma casa, é chegada a hora de navegar”. Percy é engenheiro civil e Zilda, professora, mas hoje eles raramente se lembram disso. Naquela quarta-feira, após 21 dias ancorados, chegaram à conclusão de que o barco tomara ares de casa e voltaram a oferecer as velas ao mar para uma viagem de 105 milhas e 24 horas, até Maceió (AL). Era mais um pedaço da aventura iniciada no ano passado, após verem os dois filhos, Percy e Alexandre, matriculados na universidade. Depois de velejadas pelo litoral paulista nas duas últimas décadas, o casal resolveu fazer do lazer a rotina e da rotina, as férias. Desde o último dia 4 de julho de 1999, quando zarparam de Ubatuba (SP), os dois moram no Galileo. Gastam o tempo de porto em porto pelo litoral brasileiro. Visitaram 20 pontos da costa e marcaram encontro com amigos em Porto Seguro (BA), em abril, para os 500 anos do descobrimento. Em seguida, sempre com calma, sempre com muitas escalas, partirão de volta a São Paulo, “para ver os filhos e contaminar o corpo novamente”. A temporada paulista será breve, suficiente para deixar Galileo em condições de fazer uma viagem de pelo menos um ano ao Caribe. Se surgir um patrocínio, a terceira etapa poderá incluir um tour por mares europeus ou até uma volta ao mundo.
 

Pelos cálculos dos iates clubes, 20 mil pessoas vivem hoje em barcos espalhados pelas praias e baías do mundo. O casal Blanco faz parte de um grupo de pelo menos 200 corajosos brasileiros que vão de um lado para o outro, gastam em média 10% do tempo nas viagens e ficam de duas a três semanas no ponto escolhido, recuperando forças e curtindo paraísos naturais. Vivem a exemplo do que atesta Timoneiro, a letra de Hermínio Bello de Carvalho musicada por Paulinho da Viola em seu excelente Bebadosamba: Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar. “Nos chamam de malucos, mas de loucura não há nada”, explica Blanco. “Fizemos um longo planejamento. Somos normais. A única diferença é que trocamos a casinha que todo mundo sonha, na serra ou à beira-mar, pelo Galileo.” Percy teve, de fato, uma carreira planejada, como se espera de um engenheiro. Trabalhou em grandes empreiteiras e, em 1994, tornou-se sócio de uma construtora. No final de 1998, após arrematar Galileo, um barco avaliado em R$ 260 mil, chegou do escritório, segurou no braço da mulher e foi ao ponto: “Se eu deixar a empresa na mão do sócio, você largaria as aulas e viveria no Galileo comigo?” Zilda tomou um susto e não deu resposta. Na manhã seguinte, encaminhou o pedido de licença não-remunerada que viabilizou o sonho – melhor seria dizer o plano.
 

Mas enganam-se os que pensam que a vida a bordo é sempre uma moleza. Uma viagem de 24 horas, a mais de 100 quilômetros de distância do litoral, num barco de 12,5 metros de cumprimento, mistura momentos de intensa beleza e prazer, longos períodos de trabalho para manter o barco na rota, com sacolejos e crises aparentemente intermináveis de enjôo. Nas noites de viagem, Percy cochila por três horas, no máximo, em dois períodos. No restante do tempo, estica velas e genoas, verifica os rumos do barco em relação ao destino traçado no GPS e observa objetos e embarcações em possível rota de colisão com o Galileo. Zilda ajuda em todas as tarefas, assume o timão na hora das sonecas do marido e ainda cuida das refeições a bordo, num fogão equipado com garras para prender as panelas e fixado num eixo que o deixa com as chamas para o alto até nos momentos em que o veleiro aderna com violência. No jantar daquela quarta-feira, à luz da lua que invadia a popa, a proa, a mesa de comando e a cozinha, a estrela foi um elogiável frango ao molho de tomate e vinho branco, que se comportou muito bem no pequeno forno dançante do Galileo. De sobremesa, os salvadores comprimidos contra enjôo. Zilda também procura resolver quase tudo na cabine do veleiro. Os enjôos costumam chegar mais rápido naquele ponto, mas Zilda, sempre que possível, poupa o marido de incursões pela cabine durante as velejadas. “Percy tem mais recursos para emergência. Se ele passar mal por um longo tempo, isso pode influir na segurança. Melhor que eu corra este risco.” A chegada a Maceió, na manhã seguinte, foi comemorada com peixe e vinho branco. O casal vive bem com R$ 2 mil mensais, vindos de investimentos e de raras retiradas na empresa. “Comemos em lugares baratos, vivemos de bermuda e camiseta e eu cortei o cabelo com máquina três para evitar gastos com barbeiro”, brinca Percy.

Naufrágio – A história do casal nos mares nem sempre foi tranquila. O Akkar, primeiro veleiro da dupla, que custou R$ 60 mil, terminou em um naufrágio em 1996, em Ilha Comprida, no litoral sul de São Paulo, a caminho de Florianópolis. Os ventos de até 90 km/h fizeram o veleiro encalhar em um banco de areia, próximo a uma praia. O barco adernou totalmente e Percy, que estava acompanhado de Zilda, o irmão e a cunhada, teve os ligamentos de um dos ombros rompidos. “Era uma gritaria generalizada. Na cabine, as mulheres estavam deitadas ao lado de panelas e instrumentos, que boiavam numa mistura de óleo diesel, vômito e a água que vinha do mar. Foram sete horas de agonia. Em uma das jogadas, fui lançado ao mar, sem colete e com o ombro machucado. Achei que iria morrer”, conta o comandante. Todos se salvaram, mas a história assume contornos mais assustadores quando ele revela que, até hoje, Zilda não sabe nadar.
Imprevistos como esse não servem para esfriar os ânimos dos determinados. O administrador de empresas paulistano Eduardo La Regina de Andrade, 31 anos, vive desde 1996 a bordo de seu Cavalo Marinho, um veleiro de 45 pés. Depois de cinco meses pela costa brasileira, conheceu Tobago, Trinidad, o sul do Caribe e a Venezuela. Em seguida, voltou de avião para uma pequena temporada no Brasil. De volta ao Cavalo Marinho, segue numa viagem pelo mundo. “Eu e mais dois colegas, Fábio e Felipe, formávamos a tripulação inicial. Foram menos de seis meses entre a idéia e o início da viagem, porque, além das namoradas, pouco tínhamos a perder se largássemos tudo”, conta Eduardo. Os diários de bordo do Cavalo Marinho estão na Internet (www.nautinet.com.br).
A companhia de Percy e Zilda no litoral nordestino é o trio de veleiros MaraCatu, Taai-Fung II e Yagan, que espera o final do ano para seguir rumo ao Caribe. Os três barcos, que custaram entre US$ 40 mil e US$ 70 mil, fazem parte do Sindicato Ajuricaba, como ficou conhecido o grupo de oito casais que se reuniu no Rio, em 1988, para construir oito veleiros em mutirão. Após a jornada caribenha, eles pretendem arrumar recursos para uma volta ao mundo de quatro a cinco anos, que poderá incluir o Mar Mediterrâneo. “Eu e Hélio tínhamos uma renda mensal de R$ 8 mil e não sobrava quase nada. Hoje, vivemos com R$ 2 mil no máximo. Descobrimos que trabalhávamos para pagar contas, e não para viver”, diz a analista de sistemas Mara Blumer, do MaraCatu. O primeiro trecho do diário de bordo da dupla, escrito por ela, é emocionante. “No dia 3 de junho, depois de três meses preparando o barco, colocando fim aos anos de trabalho na Fundação Getúlio Vargas, vendendo o carro e tentando abrigar os quarenta e poucos anos de vida que estavam em nosso apartamento no MaraCatu, conseguimos zarpar. Mesmo com vento favorável, mar calmo e lua minguante, continuava ansiosa, com o coração apertado. Algum tempo depois, sozinha na proa, disse para mim mesma: ‘Calma! A liberdade, inicialmente, assusta’.