O público só faltou aplaudir em praça pública o romance entre os personagens Francesco (Raul Cortez) e Paola (Maria Fernanda Cândido) em Terra nostra, novela das oito da Globo. Até aí, nada de mais se Francesco não fosse casado há mais de 25 anos com Janete (Angela Vieira). O telespectador pode até achar que a traição do marido veio como castigo para a maquiavélica Janete. Mas não é bem assim. O público não se irritou ou bateu pé. Ao contrário, a platéia parece torcer para a formação de triângulos amorosos.
Claro que amores impossíveis fazem parte da tradição de um folhetim mas, exageros à parte, como se sabe, novela no Brasil ainda é uma espécie de termômetro. Se ninguém atirou a primeira pedra nos personagens, tudo indica que traição já não choca. Não é mais tabu. Pelo menos na ficção. Na vida real, porém, a reação ainda é contraditória e envolve dor. Todos aqueles que mantém um relacionamento amoroso vivem às voltas com o fantasma da infidelidade. Mas os casais estão aprendendo a conviver com a possibilidade da traição e avaliando suas consequências antes mesmo de ela se consumar.
 

A grande novidade nesse terreno espinhoso é que, pela primeira vez, a prática foi mapeada no Brasil. A antropóloga Míriam Goldenberg, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, preparou durante um ano a pesquisa Sexualidade e infidelidade na cultura brasileira, que deve virar livro pela editora Record. De acordo com o trabalho, os homens traem mais do que as mulheres – ou pelo menos admitem com mais facilidade. São levados ao ato por desejo e atração, enquanto as mulheres justificam problemas com os parceiros. A maioria, no entanto, reage da mesma maneira ao se deparar com a pulada de cerca do parceiro: coloca um ponto final no relacionamento. Eles confessam a infidelidade de maneira mais aberta e, em alguns casos, ainda se orgulham do feito nas rodas de amigos. Do total de 1.300 entrevistados, 68% dos homens e 43% das mulheres afirmam terem sido infiéis. As razões que levam uma pessoa a buscar um relacionamento extraconjugal variam. “Os homens são mais disponíveis para a traição, é quase uma compulsão, não tem nada a ver com o casamento. Eles podem estar com suas companheiras e mesmo assim ter um caso.

Acham a traição divertida e não têm vergonha de falar sobre o assunto”, afirma Míriam. O analista de sistemas F.S., 26 anos, se enquadra na descrição. Até hoje, ele traiu todas as namoradas que teve. Paulistano, estava casado havia dois anos quando foi transferido para o Rio de Janeiro, há nove meses. A mulher iria se mudar em três meses. Ele mal tinha desembarcado na cidade quando arrumou uma namorada. Acabou se separando da mulher, mas ficam juntos quando ele vem a São Paulo. “Não existe explicação. Mesmo quando estou apaixonado fico com outras mulheres. Sexo e amor estão bem separados na minha cabeça”, afirma F.S.
 

O psicanalista paulistano Mauro Hezemberg contesta não apenas o depoimento de F.S. como a conclusão da pesquisadora. Para ele, tanto o homem como a mulher traem quando não estão felizes em casa com seus parceiros: “O macho ainda é ensinado a trair e talvez por isso se acha no direito de exercer a infidelidade. Mas é apenas uma fachada. Na realidade, ele procura outras mulheres quando não está feliz no casamento.” A experiência do chef de cozinha carioca Roberto Patrony, dono do Café Glória, 43 anos, exemplifica bem o pensamento de Mauro. O cozinheiro teve vários relacionamentos extraconjugais no final do seu primeiro casamento alegando que a relação não ia bem. “Não estávamos legal e achava que ela me traía. Hoje já não acredito em casamento, é difícil manter o tesão. Procurava o que minha mulher não tinha, uma pessoa que pudesse me completar, mas acho que isso não existe”, conta Patrony, hoje separado de sua segunda mulher.
 

O psicanalista Mauro vai além. Acha que a mulher quer seguir o exemplo masculino porque acredita que eles traem por puro prazer. Quer ter a mesma desenvoltura para conseguir um amante, sem culpa, medos ou desculpas como a infelicidade conjugal. Só que não consegue colocar esse desejo na prática, não por falta de oportunidade, mas por falta de um sentimento maior. Nesse ponto, Mauro e Míriam concordam: elas só traem quando se envolvem emocionalmente com outro homem. “E usam como justificativa a insatisfação com o casamento”, salienta a pesquisadora Míriam.

Aconteceu assim com a advogada paulista K.S., 26 anos, que vivia uma relação turbulenta de dois anos. O namorado sofria de um ciúme doentio e achava que todos os amigos em comum davam em cima dela. Pior: a paquera era correspondida. “Gostava muito dele, mas a situação foi ficando insustentável e eu não tinha coragem de terminar”, conta. Até que, em uma viagem ao Nordeste, ela conheceu um italiano e se apaixonou. “Não chegou a rolar sexo, mas percebi que poderia me interessar por outra pessoa. Voltei de viagem e terminei o namoro sem piscar”, conta. “Sempre condenei a traição e não recomendo para ninguém, mas não me arrependo do que fiz.” A terapeuta corporal Rita Aurora, 56 anos, confessa que traiu porque precisava sentir-se desejada. Com 29 anos e casada há oito, ela se julgava rejeitada pelo marido. A relação com o amante durou quatro anos. “Ele me dava muita força, mas a gente se via só de vez em quando. Foi a maneira que encontrei para não ficar maluca naquele casamento, que durou 14 anos”, diz. “Nos dois casamentos seguintes, não senti essa necessidade, pois já estava mais madura e havia mais diálogo.”
 

Apesar de a maioria das mulheres justificar a infidelidade alegando problemas no relacionamento, Míriam Goldenberg coloca a questão em xeque. “Na verdade, os homens são menos hipócritas, pois não culpam as parceiras por suas traições. As mulheres não assumem, jogam a responsabilidade para os maridos quando talvez o motivo da traição seja mesmo apenas atração.” A psicoterapeuta Noely Monte, professora da Pontifícia Universidade Católica, também não acredita no subterfúgio feminino. “Desejo não obedece regras. É errado dizer que só se tem desejo quando a relação já não está bem. Isso é mentira, desculpa. O tesão faz parte. O negócio é atender a esse desejo ou não”, afirma.
 

No passado, a traição, principalmente a da mulher, era considerada uma ofensa à honra e muitas vezes lavada a sangue. Hoje, crimes passionais movidos por vingança não são mais tão frequentes e ganham as manchetes dos jornais quando ocorrem. No âmbito jurídico, são ainda considerados crimes a bigamia, com pena de dois a seis anos, e o adultério, com reclusão de 15 dias a seis meses. Mas na prática nenhum juiz ou mesmo advogado considera o adultério crime. “Ninguém leva mais em consideração o adultério como um delito grave. Não vale nada nem mesmo num divórcio litigioso”, afirma o advogado carioca Luciano Bandeiras. Esses dois delitos podem acabar, se for aprovada uma reformulação da Comissão de Reforma do Código Penal. O anteprojeto ainda não tem data para ser votado. “Esses crimes estão ultrapassados, já que as relações hoje são menos formais do que no passado. Em 25 anos de carreira, testemunhei apenas um processo por bigamia”, afirma a advogada Iara Abud de Faria, da comissão.
 

Mesmo sendo discutido cada vez mais abertamente, o tema da infidelidade ainda causa sofrimento. É difícil perdoar. Nesse ponto, homens e mulheres de todas as idades parecem concordar. Em geral, terminam o relacionamento ao saber que foram passados para trás. A atriz carioca Cristiana Oliveira, 36 anos, representa na novela global Vila Madalena a personagem Pilar, que tem um caso com o ex-companheiro de cela do namorado. O coração de Pilar está dividido entre os dois moços. Mais uma vez, a platéia faz suas apostas, sem se importar se ela está “traindo” alguém nessa dúvida emocional. “Traição é uma palavra horrível”, afirma Mauro Hesemberg. “Parece que a pessoa está cometendo algo grave demais!” Se a palavra está ultrapassada ou não, o certo é que o ato ainda traz muito sofrimento. Cristiana Oliveira já viveu o papel oposto, o de mulher traída, e não gostou nem um pouco. “Nunca fui infiel, mas já fui traída duas vezes e sei a dor que isso representa.” A primeira vez ocorreu quando ela tinha 25 anos, por “circunstâncias idiotas”. Ele passou por uma tentação, não conseguiu resistir e Cristiana acabou descobrindo tudo. “Os homens são sempre tentados, a oferta é grande”, afirma. “A maioria deles curte a infidelidade. A outra pessoa que me traiu foi maravilhosa porque me contou depois. No início perdoei, mas a relação não se sustentou.” Casada há seis anos com um engenheiro gaúcho e vivendo na ponte aérea Rio–Porto Alegre, a estrela afirma haver uma total confiança de ambas as partes. “A distância só aproxima porque morremos de saudades um do outro. É normal que sinta atração por um homem bonito, mas tenho uma história pessoal que me faz pensar duas vezes ”, diz Cristiana.

Discussão – Ainda que não leve a união ao fim, o adultério costuma balançar a relação. Mauro nunca testemunhou um final feliz. “Na primeira briga do casal, o caso extraconjugal volta à tona”, conta o médico. A feminista Rose Marie Muraro, 69 anos, autora de uma pesquisa sobre a sexualidade da mulher brasileira, é mais dura na questão. Acredita que o único amor do homem é por si mesmo. “O cara se casa com uma empregada de luxo que faz sexo. Quando está frustrado, arruma uma mulher erótica na rua para suportar o mau humor da esposa”, afirma. Mas se rebela com o que considera ser o histórico papel passivo da mulher. “Sou separada há 25 anos e traí meu marido”, confessa. “Era a única saída que encontrei. Estava desequilibrada e precisava de algum prazer para sobreviver. Foi a minha salvação. Caso contrário, poderia adquirir uma doença e morrer. Agora, trair por pura vaidade é uma grande bobagem.”
 

Também pela decorrência do tema, o próprio conceito de traição está em discussão. Hoje, os sentimentos parecem importar mais do que a carne. “Talvez conseguisse perdoar meu namorado por ele ter transado com uma qualquer, movido sei lá por quais desejos. Mas jamais conviveria com a possibilidade de ele estar gostando também de outra mulher”, diz a jornalista Janaína Matoso, 25 anos. A cineasta Sandra Werneck, autora do filme Pequeno dicionário amoroso, está envolvida com o assunto até o pescoço. No momento, ela dirige o filme Amores possíveis, protagonizado pelos atores Murilo Benício e Carolina Ferraz. Os dois estrelam na tela um casal que se vê às voltas com pequenas traições. Na vida real, Murilo e Carolina viveram algo semelhante. Ela se separou do publicitário Mário Cohen, diretor de comunicação da Globo com quem era casada havia 13 anos e por um bom tempo escondeu o motivo: seu namoro com Murilo. Os dois interpretaram tão bem aquela velha frase “somos apenas bons amigos” que até hoje pairam dúvidas no ar. Tanto faz. Mais importante do que a veracidade da história, era a especulação sobre quem estava traindo quem, num jogo hipocritamente divertido que quase sempre envolve pessoas famosas. De qualquer forma, a diretora do filme jura que escolheu os dois apenas pelo talento da dupla. Quanto ao tema escolhido, Sandra Werneck abre o coração: “A traição, tal como acontece nos romances, tem um peso enorme e faz contraponto com o ciúmes. Hoje não faz mais sentido. Tudo vale, desde que haja sinceridade para si e para o outro e que seja limpo e aberto. Já me aconteceu de ter relações paralelas em meus dois casamentos, cada uma de uma maneira, ambas abertas. Nenhum dos casamentos acabou por isso. Também já fui traída. Não acredito que uma pessoa que tenha uma vida afetiva nunca tenha passado por isso.”
 

A sexóloga carioca Regina Navarro Lins discorre sobre o tema em um capítulo de seu livro A cama na varanda. “É uma pretensão infantil dizer que ‘ele só tem olhos para mim’. Mudanças no mundo acontecem. Dá para repensar a traição. Será que ela tem de gerar tanto sofrimento assim? Será que a fidelidade é prova de amor? Existem pessoas que sabem equilibrar a balança e ser felizes sem magoar o parceiro nem o terceiro na relação”, complementa.
 

A empresária Analu Pires, 50 anos, casada pela terceira vez, pensa como Regina e vai adiante: acha mais importante o respeito pelo companheiro que a infidelidade em si. “Ninguém, muito menos o seu parceiro, precisa saber da existência de uma terceira pessoa. Ter um amante ou uma amante é um problema que não diz respeito a ninguém. É como sair com as amigas e fofocar. Mulher alguma, pelo menos a inteligente, conta para os homens, ou o seu homem, o que andou falando com as colegas. Ter um amante deveria ser considerado tão íntimo quanto ir ao dentista. Nem as amigas precisam saber se você têm cárie! Muito menos você precisa saber se o seu marido tem outra. É uma questão de respeito e até de sobrevivência para o casamento.” Analu admite que essa postura ainda é uma ilusão para a grande maioria dos relacionamentos. Nem aposta que seja a correta.

Mauro Hezemberg vê com reticências tal visão. Para ele, mulher alguma consegue esconder um segredo desses. Até porque ela precisa conversar com alguém sobre algo que divide seus sentimentos. “O homem e a mulher deveriam conversar a respeito e decidirem o que é melhor para ambos. Mas isso na prática não acontece muito”, conta Mauro. “Os dois precisam estabelecer suas próprias regras e códigos. Mas quase sempre é algo mais dissimulado, indireto”. Alguma coisa como uma cena assim: o casal assiste à novela Terra nostra e discute o romance entre Francesco e Paola. A mulher finge revolta e avisa: “Eu te mato se você fizer isso comigo.” Ou então, o marido faz algum comentário do tipo “eu aceitaria uma fraqueza de minha mulher”. Pronto. O tal código de ética do casal está estabelecido. “Ainda é assim mesmo, os dois fazem uma brincadeira em frente à tevê embora saibam que não estão brincando. O ideal seria um diálogo aberto e franco”, diz o psicanalista. Já a pesquisadora Míriam tem certeza de que esse diálogo já existe: “O que significa um bom sinal, um grande avanço para uma relação menos hipócrita num casamento.”