Vista de cima, a pacata cidade interiorana retratada em Beleza americana (American beauty, Estados Unidos, 1999) – cartaz nacional a partir da sexta-feira 25 – parece saída de algum desenho atualizado de Norman Rockwell, o artista do sonho americano. A localidade sem nome exibe um traçado de ruas iguais, com árvores frondosas, bem cuidadas e casas brancas praticamente idênticas. Enquanto a câmera vai revelando uma panorâmica do ideal de conforto e felicidade, uma voz um tanto debochada se encarrega da narração. "Esta é a minha cidade, este é o meu bairro e esta é a minha rua. Tenho 42 anos e em menos de um ano estarei morto. Naturalmente, eu ainda não sei disto. Mas, de qualquer modo, já me encontro meio morto." Quem se apresenta assim é o entediado publicitário Lester Burnham, papel com o qual o ótimo Kevin Spacey concorre ao Oscar de melhor ator, no dia 26 de março. Numa de suas maiores atuações, Spacey, 40 anos e 23 longas-metragens no currículo, responde por grande parte do sucesso de Beleza americana, deliciosa tragicomédia do diretor estreante britânico Sam Mendes, que disparou como grande favorita ao ser indicada, na semana passada, a oito estatuetas, entre elas as de melhor filme, diretor e atriz.

Demolidor
A não ser que os votantes da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood resolvam se mostrar conservadores e premiar O informante (The informer, Estados Unidos, 1999), candidato a sete Oscar, também em cartaz nacional a partir da sexta-feira 25, tudo indica que este será o ano da produtora Dream-Works, de Steven Spielberg, que gastou apenas US$ 15 milhões na produção de Beleza americana. Mesmo porque, O informante – baseado na história real de Jeffrey Wigand (Russell Crowe), um cientista e ex-executivo do negócio de cigarros que denuncia a política suja da empresa – é um pesado drama jornalístico que não injeta sangue novo no cinema. Determinação que sobra em Beleza americana. Em Hollywood, sempre que um filme se inicia com o protagonista ou narrador já morto, fulminando assim a possibilidade de um happy end, pode-se apostar na ousadia do que vem pela frente. Beleza americana não nega a tradição e assume de cara sua visão demolidora, que incomodou até o presidente Bill Clinton.

Depois de se apresentar como um defunto, Lester Burnham é mostrado observando a mulher Carolyn (Annette Bening), loira histérica e vaidosa, a cuidar das rosas vermelhas, as "belezas americanas" do título. "Notaram como o cortador de flores combina com o seu sapato? Não é um acidente", comenta ele com aquele tom ácido que já virou marca registrada de Kevin Spacey. O casal em crise tem uma filha adolescente, Jane (Thora Birch), que usa batom preto e está na idade de achar tudo ridículo ao redor, inclusive o pai careta. Sentada à mesa impecavelmente arrumada, Jane costuma presenciar com ar de garota problema as reclamações de alcova que o casal Burnham atira mutuamente, entre as garfadas orquestradas pelo som brega de canções românticas dos anos 50. A vizinhança não é diferente. Na casa ao lado dos Burnham, um fascista oficial reformado da Marinha, casado com uma mulher oprimida e de olhar ausente, trata a porradas seu filho Ricky (Wes Bentley). O coitado é recém-saído de um hospício e passa o tempo filmando a intimidade dos outros com uma câmera de vídeo.

Rebelde
Dito desta forma, até parece que Beleza americana é um dramalhão difícil de engolir. Mas, na verdade, se ri do começo ao fim nesta história na qual todo mundo tem algo a esconder. A divertida confusão se inicia quando Burnham, que só via prazer na masturbação, se apaixona por uma lolita amiguinha de sua filha e resolve se tornar o adolescente rebelde que nunca foi. Larga o emprego, passa a ouvir rock, vai trabalhar num fast-food e começa a levantar peso para ficar em forma. Com aquele olhar característico de quem está se divertindo sem esboçar o menor sorriso, Kevin Spacey se mostra completamente à vontade no papel, fazendo até o espectador esquecer que ele vai se dar mal em sua tardia aventura teen.

A exemplo do que já vinha acontecendo em filmes como Los Angeles, cidade proibida (1997) – em que interpreta um detetive que arma flagrantes escandalosos de celebridades para um repórter sensacionalista – e Meia-noite no jardim do bem e do mal (1997) – no qual faz um homossexual rico e afetado de uma cidade do Sul dos Estados Unidos -, aos poucos Spacey vem se libertando dos papéis de vilão psicótico, serial killer inteligente e trambiqueiro amoral. Ele próprio, como declarou em entrevista recente, já estava cansado dos tipos famosos que encarnou em Seven – os sete pecados capitais (1995) e Os suspeitos (1995), que lhe deu o Oscar de melhor ator coadjuvante. "Comecei a perceber que deveria mudar minha imagem quando três papéis me foram oferecidos e eles eram absolutamente iguais, todos de vilão." Até porque seria um desperdício aprisioná-lo em estereótipos do gênero, como tem sido o caso de Al Pacino, em sua enésima encarnação de inconformado em O informante.

Ambíguo
Ao longo de 13 anos, Spacey foi reconhecido por mergulhar seus personagens naquele tipo ambíguo, que suscita várias nuanças psicológicas. Um ar de mistério que se misturou à sua vida real e que há dois anos levou a revista americana Esquire a publicar uma capa intitulada Kevin Spacey has a secret (Kevin Spacey tem um segredo), sugerindo que ele era gay. Apesar de detestar que falem da sua intimidade, como ótimo ator Spacey capitaliza as suspeitas. Quem primeiro notou seu talento para representar foi o célebre diretor de teatro Joseph Papp, para quem Spacey trabalhava nos anos 70 numa tarefa burocrática. Sabendo que o jovem estava lotado no circuito off-off Broadway, Papp foi vê-lo e no dia seguinte à sessão o demitiu. O sábio encenador sabia que ele estaria melhor nos palcos.

Fiel às origens e já tendo sido premiado com um Tony, o Oscar do teatro americano, Spacey considera o tablado "seu templo". O que explica seu desejo de trabalhar com Sam Mendes, 33 anos, um inglês de ascendência portuguesa e tobaguiana, que ele já admirava por recauchutar o musical Cabaret, em cartaz na Broadway, e por convencer Nicole Kidman a se despir em The blue room, peça que marcou o início da maturidade artística da mulher de Tom Cruise. Um dos primeiros a receber o roteiro de Beleza americana, Kevin Spacey agarrou logo o papel. "Era um filme que me dava a oportunidade de fazer tudo o que ainda não havia feito no passado." Levando em conta seu talento inquestionável, ele não deveria nem ter-se preocupado