Desde o impeachment do presidente Fernando Collor os brasileiros têm a sensação de que o Brasil passa por um interminável processo de limpeza moral. Quase toda semana, autoridades de diversos escalões são pilhadas metendo a mão no dinheiro público. Os maiores responsáveis por essa faxina cívica não usam armas na cintura nem andam fardados. São jovens, em geral na faixa dos 30 anos, com formação universitária e aprovados em um dos mais rigorosos concursos públicos do País. Carregam o título de procuradores da República, ganham acima de R$ 6 mil e estão espalhados por todos os Estados. Para que se tenha uma idéia mais precisa da força desse pessoal, basta recordar que o responsável pelas investigações sobre as denúncias contra Collor, o procurador Odin Ferreira, tinha à época apenas 25 anos. É verdade que contava integralmente com o apoio do então procurador-geral, Aristides Junqueira, o primeiro integrante do Ministério Público a conquistar fama nacional. O trabalho desses procuradores tem recebido aplausos e críticas. A sociedade estimula as apurações, mas os investigados, não. Daí, a proposta de limitar a ação do MP, que ganhou independência funcional com a Constituição de 1988, já está sendo chamada de "Lei da Algema", pois pretende colocar uma camisa-de-força nos procuradores.

A tarefa de moralizar implica colecionar inimigos. Personagens como o ministro dos Esportes, Rafael Greca, suspeito de envolvimento com a máfia dos bingos, não têm razão alguma para apreciar a ação dos procuradores. Greca teme ter o mesmo destino do ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes e dos banqueiros Salvatore Cacciola e Luiz Antônio Gonçalves, processados por corrupção e já condenados pela opinião pública. Mesmo caminho, aliás, que começa a ser trilhado pelo senador Luiz Estevão (PMDB-DF) e seu parceiro, o juiz Nicolau dos Santos Neto, envolvidos no superfaturado do prédio que deveria abrigar o Fórum da Justiça do Trabalho em São Paulo. Não importa o cargo nem o nível de poder, os procuradores têm efetivamente mostrado que estão dispostos a fazer valer a lei. Até o poderoso senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), presidente do Senado, já se viu em apuros. A subprocuradora Ela Wieko de Castilho não se intimidou e o investigou no chamado caso da Pasta Rosa, revelado por ISTOÉ, sobre as contribuições irregulares do Banco Econômico para campanhas políticas. Antes de o caso chegar ao final, o inquérito foi para o procurador-geral, Geraldo Brindeiro, a quem cabe trabalhar os processos que envolvem senadores e o presidente da República. Brindeiro, no entanto, arquivou a investigação.

"É claro que sofremos pressões. Sabíamos disso quando optamos por essa carreira, mas o importante é que temos conseguido cumprir nossa missão", avalia o procurador Ronaldo Albo, um dos principais responsáveis pelo ataque ao crime organizado no Espírito Santo. Não é apenas pelo sistemático combate à bandidagem que os procuradores incomodam. "Hoje, são muitos os procuradores preocupados com o meio ambiente e que não toleram atos de corrupção", afirma o procurador Felício Pontes Júnior, de Belém (PA).

Arbítrio
Essa disposição de mexer em vespeiros está incomodando, e muito, todas as esferas do poder. E a reação começou. Na Câmara, a independência dos procuradores foi alvejada por um instrumento digno dos piores tempos do regime militar: a proibição de procuradores, promotores e poli-ciais darem qualquer informação à imprensa sobre investigações e processos em andamento. Chamada adequadamente de Lei da Mordaça, a pérola de arbítrio foi incluída na Reforma do Judiciário pela relatora, deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP). "Sem a imprensa, as pressões para abafar casos envolvendo poderosos serão enormes e o trabalho do Ministério Público ficará extremamente vulnerável", ataca Carlos Frederico Santos, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. A vontade de ver os procuradores quietos e calados não se limitou à Câmara. No Senado, o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), apresentou proposta semelhante. Tem mais. No meio do monte de artigos da reforma do Judiciário, um deles estabelece a prerrogativa de foro e função nos processos da Lei Civil Pública. Isto aprovado, os procuradores não poderão mais investigar casos em que estejam envolvidos um governador, um deputado ou um senador. A artimanha legal remeteria esses casos direto para o procurador-geral, ao STJ e ao STF. Na prática, significaria que investigações como as obras superfaturadas do governador do Acre, Orleir Cameli, e do grampo no BNDES, sobre o tráfico de influência durante a privatização da Telebrás, dificilmente teriam acontecido.

A criatividade dos parlamentares e do governo, quando se trata de bolar formas de autoproteção ou impedir investigações de suas falcatruas, não tem limite. Outra pérola aprovada na Câmara é uma camisa-de-força: limita em seis meses toda e qualquer investigação em ação civil pública sobre roubalheiras oficiais. A investigação do superfaturamento nas obras da Justiça do Trabalho em São Paulo começou em 1997 e continua até agora. "E, neste caso, a mobilização da opinião pública foi fundamental para que as próprias autoridades do Tribunal de Justiça tomassem algumas providências", diz a procuradora Maria Luisa Duarte, que pegou o caso em 1997 e desvendou a tramóia que desviou US$ 170 milhões de verbas públicas. Se estivesse em vigor esse prazo de seis meses, o juiz Nicolau e o senador Estevão estariam prosseguindo com sua parceria danosa à União. "Nem a ditadura chegou a tal ponto de coibir o trabalho dos procuradores", critica o subprocurador Cláudio Fontelles, um dos mais experientes membros do Ministério Público. Não satisfeito, o governo quer ainda mais: pegando carona na emenda constitu-cional que altera os salários dos Três Poderes, pretende retirar dos procuradores a equivalência funcional com o Judiciário. Assim, os procuradores acabariam subordinados ao Executivo.

Apesar de tudo isso, o MP conseguiu algumas vitórias. A Câmara já decidiu que só procuradores de carreira poderão exercer a função de procurador-geral. Na batalha pela independência de seu trabalho, o maior aliado hoje dos procuradores é o senador Romeu Tuma (PFL-SP). Caberá a ele relatar a Lei da Mordaça no Senado. Tuma sabe que, no Brasil, é impossível concluir uma investigação em apenas seis meses. O senador, que sempre teve na imprensa um parceiro de suas atividades quando diretor da Polícia Federal, já afirmou: é radicalmente contra a mordaça. Melhor para os procuradores e para a sociedade.

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