É unânime entre os militares a tese de que a proteção da Amazônia é decisiva para a soberania nacional. Por enquanto, é a área mais exposta do território, com irrisórios 10% do efetivo do Exército cobrindo 65% da área do País. O ministro da Defesa, Geraldo Quintão, assumiu o cargo decretando prioridade para o assunto, mas a tese esbarra em uma realidade difícil de entender, a da concentração de tropas em centros urbanos, em especial no Rio de Janeiro. A cidade é uma das mais militarizadas do planeta, com um efetivo de cidadãos fardados comparável ao de Washington, capital da -maior potência mundial.

O Rio concentra 100 mil militares da ativa. Dos 55 mil homens da Marinha, 38,3 mil estão no Rio e só três mil na Amazônia. O Exército mantém na cidade 40 mil de seus 198 mil homens, o dobro do que destina à Amazônia inteira. Em nenhuma outra cidade a Aeronáutica mantém tantos militares e bases aéreas: são 18,4 mil fardados e três bases (Santa Cruz, Galeão e Afonsos). Um exagero. A capital americana tem uma.
A ocupação militar do Rio cria privilégios que contrastam com as carências das Forças Armadas. Nos domingos do verão, centenas de ônibus despejam multidões dos subúrbios nas praias da zona sul. Os espaços na areia são disputados por moradores da área, farofeiros e turistas. Entre Copacabana e Arpoador, um oásis de areias brancas é visto apenas do ar ou do mar. É a praia do Forte de Copacabana, do Exército, com valor incalculável. Foi lá que o presidente Fernando Henrique virou o ano, numa festa estragada pelos anfitriões fardados ao espancarem fotógrafos como se fossem soldados inimigos.

O Rio deixou de ser capital há 40 anos e há três décadas os fortes perderam a função que tinham na época dos canhões de 12 quilômetros de alcance. A concentração pode ser forçada pela carência de recursos para transferên-cias, mas a chamada "família militar" não tem motivos para reclamar da qualidade de vida no Rio. A Fortaleza de São João, na Urca, abriga a Escola Supe-rior de Guerra (ESG), duas escolas e um condomínio de oficiais com vista eterna para a Baía de Guanabara e, claro, duas praias exclusivas.

No extremo oeste da cidade fica o maior símbolo da militarização de áreas turísticas. A espetacular Restinga de Marambaia é fatiada pelas três forças, que mantêm os civis a distância. Os oficiais e o presidente, que se bronzeia lá de vez em quando, não são os únicos interessados no status atual da restinga. Para os ambientalistas, os campos de provas e experimentos tecnológicos militares protegem o ecossistema. "O poder público não poderia evitar a ocupação desordenada", diz o secretário estadual de Meio Ambiente, André Corrêa.

Sem privilégio
O paraíso dos fardados na restinga teria os dias contados se dependesse de Sérgio Almeida, presidente da Turis-Rio, a companhia estadual de turismo. Ele tem uma proposta para enlouquecer os ambientalistas: fazer da Marambaia uma espécie de Cancun, a península que era uma das regiões mais pobres do México e passou a ser uma das mais badaladas do mundo. No lugar de caranguejos e tatuís, são 20 mil leitos de hotéis, 200 restaurantes e 1,5 milhão de turistas por ano. Isso tudo em 11,3 quilômetros de extensão. A selvagem restinga carioca tem 42 quilômetros.

Para Almeida, as Forças Armadas deveriam arrendar ou vender suas unidades turísticas. Os fortes poderiam ser centros de convenções de porte médio, uma carência que estaria levando o Rio a perder uns R$ 150 milhões por ano. Almeida elogia as tímidas iniciativas do Exército e da Marinha de abrir alguns fortes e a Ilha Fiscal para a visitação turística, mas ressalta que "o setor turístico tem de ser privado".

Sem conversa – "Os fortes não têm mais sentido militar nenhum, mas os militares não vão ceder sua história para os empreendimentos turísticos de lucro fácil", reage o coronel Geraldo Cavagnari, pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. O coronel lembra que, nos anos 60, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, já tentava transformar em hotéis os fortes da cidade-estado. "Os militares nem permitiram a discussão."

Envie esta página para um amigoPara o capitão Luiz Fernando Palmer Fonseca, diretor de Relações Públicas da Marinha, "em princípio" a Marinha não admite a hipótese. Quanto à transformação da Marambaia numa Cancun, respondeu que "o assunto não é da competência da Marinha". O Centro de Comunicação Social do Exército foi taxativo: "O Exército não pretende vender ou arrendar qualquer dessas áreas." O chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, brigadeiro José Marconi dos Santos, negou qualquer plano para extinguir bases aéreas no Rio, mas admitiu que o assunto poderá entrar em pauta. Para o brigadeiro Cherubim Rosa Filho, assessor da Presidência do STM, é necessário extinguir bases como a do Galeão (Rio) para destinar mais recursos à Amazônia. O diretor do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), coronel Amerino Raposo, pondera que "seria intolerável entregar de bandeja a empresas imobiliárias os fortes que guardam a história do País". Como se pode notar, os militares resistirão à entrega de suas fortalezas e paraísos privados.