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NEGÓCIO
De olho no lucrativo mercado audiovisual, membros do Procure Saber querem
participação financeira nos produtos, além de autorização prévia para as biografias

Enquanto no século XIX o poeta baiano Castro Alves (1847-1871) proclamava “Livros à mão cheia… E manda o povo pensar!”, no século XXI o direito de expressar o pensamento pode ter tabela de preço. Os debates recentes sobre a autonomia para se fazer biografias sem autorização de biografados ou herdeiros levantaram a discussão em torno da liberdade de expressão, mas deixaram em segundo plano um ponto igualmente importante: a questão dos royalties. A própria associação Procure Saber, presidida pela empresária Paula Lavigne e que reúne o primeiro time da MPB, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Roberto Carlos, assume que a prioridade do grupo é o pagamento obrigatório de direitos autorais sobre livros e possíveis filhotes, como filmes, vídeos, musicais e peças. Em artigos, tanto Caetano quanto Chico mencionaram preocupação com a questão financeira. Enquanto o País discute quem é dono de uma história pública, o pano de fundo é quanto vale uma história vivida. Afinal, as cifras podem alcançar centenas de milhares de reais quando estão em jogo produtos audiovisuais.

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Três das maiores bilheterias do cinema nacional nos últimos dez anos foram adaptações de biografias (leia quadro) de personalidades. O filme mais bem-sucedido, “Chico Xavier” (2010), baseado no livro “As Vidas de Chico Xavier”, do jornalista Marcel Souto Maior, teve 3,4 milhões de espectadores e arrecadou R$ 35,3 milhões em valores atualizados. As pessoas envolvidas costumam guardar a sete chaves os valores dessas negociações entre escritor e produtor. Uma das mais bem-sucedidas aconteceu com o livro “Chatô – O Rei do Brasil”, do jornalista Fernando Morais. Ele vendeu os direitos, em 1995, para o ator e diretor Guilherme Fontes por cerca de R$ 225 mil – quase R$ 700 mil em valores de hoje. Curiosamente, o filme nunca chegou às telas porque não foi finalizado. A diretora Sandra Werneck se prepara para rodar um filme que narra a trajetória da ex-senadora Marina Silva. Ela pagará R$ 100 mil à jornalista Marília de Camargo César, autora do livro “Marina: A Vida Por uma Causa”. A ex-senadora não recebeu nem receberá nada por isso.

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Não foi o que aconteceu com outros filmes baseados em biografias, como “Lamarca” (1994), sobre o guerrilheiro morto em 1971, e “Meu Nome Não É Johnny” (2008), com a história do ex-traficante João Guilherme Estrella. A produtora Mariza Leão admite que cedeu parte da bilheteria para a família de Lamarca e para Estrella. “Acho correto”, diz. Sandra defende um dos caminhos mais usados no meio cinematográfico brasileiro. “Os parentes dos biografados podem ser remunerados, desde que ajudem na produção”, afirma a cineasta. O produtor Joaquim Vaz de Carvalho, que trabalhou nos filmes sobre o Barão de Mauá (1813-1889) e sobre a estilista Zuzu Angel (1921-1976), lançou mão desse recurso. As filhas da estilista, Hildegard e Ana Cristina, participaram da elaboração do roteiro e da produção e receberam por seus trabalhos. “Se os parentes quisessem, poderiam ter impedido o Brasil de ver essas histórias no cinema, o que seria uma grande perda”, ressalta Carvalho. 

O produtor cinematográfico Luiz Carlos Barreto conta que já foi processado algumas vezes por pessoas que cobram direitos por conta de personagens de seus filmes – como a família do guerrilheiro Virgílio Gomes da Silva, que o teria associado ao personagem Jonas de “O Que É Isso Companheiro?” (1997). Também queria royalties uma das filhas adotadas pela paisagista Lota de Macedo Soares (1910-1967), vivida por Glória Pires em “Flores Raras”. “O filme estreou em Nova York e a família da poeta Elizabeth Bishop, retratada no longa, assistiu e nem cogitou cobrar. Mas no Brasil existe essa cultura do patrimonialismo”, critica Barreto, que é contra a exigência de autorização para a produção de qualquer tipo de obra. “Temos que ter compromisso com a verdade e ponto final. Se houve injúria, a Justiça pode ser acionada”, argumenta o produtor.

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O diretor Fernando Meirelles, que filmará a vida do milionário grego Aristóteles Onassis, também destaca o contraste entre a realidade brasileira e a liberdade de expressão existente no Exterior. “Nem a família Kennedy, que é retratada, foi consultada sobre o filme”, disse. O jornalista Peter Evans, autor de “Nemesis”, biografia que serve de base para o roteiro, recebeu seus direitos autorais, mas o valor não foi revelado. “Tudo na vida tem ônus e bônus. Se o ônus parece pesado para alguém, é melhor procurar uma atividade que não seja pública. Sinto muito, mas ninguém pode ser o rei Roberto Carlos impunemente”, afirma o diretor de “Cidade de Deus”. No caso do cantor, o dinheiro não parece ser a questão central, uma vez que Roberto teria recusado R$ 10 milhões da Rede Globo para autorizar uma produção sobre sua vida.

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A emissora vem investindo nesse filão de sucesso. “Maysa – Quando Fala o Coração”, de Manoel Carlos, dirigida pelo próprio filho da cantora, Jayme Monjandim, foi ao ar em 2009 e bateu recordes de audiência, com até 30 pontos no Ibope. Nos últimos anos, a Rede Globo realizou produções, com a autorização das famílias, sobre a vida de Juscelino Kubitschek, Dercy Gonçalves, Chico Xavier, Luiz Gonzaga e o casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Algumas viraram DVD.

Procurada por ISTOÉ, a presidenta do Procure Saber, Paula Lavigne, não retornou. Mas no programa “Saia Justa”, do canal GNT, ela deixou clara sua posição. Disse que não seria correto alguém realizar uma obra sobre o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido, morador da favela da Rocinha, e não remunerar a família. Não falou, porém, sobre o conteúdo. Para o advogado especializado em direitos autorais Marcelo Mazzola, sócio do Dannemann Siemsen Advogados, estão tentando precificar o direito à personalidade. “Tratam as pessoas como se fossem marcas. É algo inédito no direito mundial”, afirma o advogado.

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O pagamento de royalties aos biografados e suas famílias também pode comprometer o trabalho acadêmico. “Ninguém decide escrever uma biografia para ganhar dinheiro ou ficar famoso. Isso pode até ser consequência, mas não é o objetivo inicial”, diz a pesquisadora da Unicamp Vavy Pacheco Borges, autora de sete livros e que atualmente escreve a biografia do cineasta Ruy Guerra. A historiadora Mary del Priore, autora de “O Castelo de Papel”, livro sobre a princesa Isabel, diz desconhecer país onde exista política de remuneração. “Quem faz biografias são professores, estudantes, jornalistas, historiadores, gente que, na maior parte das vezes, trabalha duro, com paixão e sem remuneração que justifique pagar ‘dízimo’ a ninguém.” O professor de metodologia da história da USP Marcos Silva separa o livro dos outros produtos: “Eu não acho que o biografado ou a família deva receber pela obra literária, mas em adaptações para o cinema ou seriados, produções com maior retorno financeiro, eu sou a favor.” Em qualquer caso, o historiador é contra a autorização prévia.

A Câmara dos Deputados deve votar em breve um projeto de lei que libera as biografias, mas não aborda a questão financeira. O tema também irá a julgamento no Supremo Tribunal Federal. Enquanto isso, best-sellers vão se multiplicando em outros produtos. O destaque do momento é o livro “Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia”, do jornalista Nelson Mota. A biografia do cantor, autorizada após acordo financeiro com a família, já virou sucesso no teatro “Tim Maia – Vale Tudo, o Musical”. A produção está em cartaz há dois anos e foi vista por mais de 400 mil pessoas. Agora, se prepara para repetir a dose no cinema.

Colaborou Natália Mestre 
FOTOS: Eliária Andrade/Agência o Globo; Antônio Gaudério/Folhapress; Leticia Moreira/Folhapress
fotomontagem: rica ramos
Fonte: FilmeB