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Esse movimento Procure Saber é uma palhaçada. Pessoas públicas se colocam na ribalta, no foco, na fogueira das vaidades. E, uma vez colocadas na fogueira das vaidades, é isso, paga-se o preço bom e o ruim, o do inferno e o do céu. Querem o quê? Somente docinhos, pãezinhos adoçados? Tem o preço do inferno também, faz parte. As pessoas querem ser retratadas como se fossem anjinhos? O que estão escondendo? Aqui nos Estados Unidos, onde eu moro, ou em qualquer parte do mundo, existem biografias não autorizadas. Esses livros podem dizer absurdos e que fique para sempre o mistério porque haverá outras biografias que dizem outras coisas. Que fique a dúvida. Isso faz parte do ser-mito. Se o retratado quiser, que escreva sua autobiografia.

Falo com a experiência de quem teve megaproblema. O escritor Ruy Castro escreveu absurdos sobre a minha família no livro “Ela é Carioca” em 1999. Minha família é judaica, perdemos várias pessoas em campos de concentração e ele colocou que minha avó era amiga de Hitler e de Goebels. Tudo o que minha avó fez foi escapar desses carrascos. Ele podia ter checado comigo, podia ter me ligado, eu estava no Brasil ensaiando uma peça naquela época, mas não o fez. Soube recentemente que ele escreveu outros absurdos, que minha família tinha imóveis no Rio e em São Paulo, quando na verdade morávamos num apartamento de fundos, de sala e dois quartos, em Ipanema, na rua Prudente de Moraes. Ele disse que eu torrei o patrimônio todo em teatro, uma mentira. Cheguei a ser prostituto aos 15 anos, aqui em Nova York. Optei por não tomar nenhuma medida judicial, apenas publiquei um artigo em um jornal e tive uma conversa com Luis Schwartz, dono da Companhia das Letras, que me pediu desculpas. Depois também falei com o Ruy por telefone que acusou o Ziraldo, meu ex-sogro, de ter dado essas informações a ele. E ficou por isso mesmo, não processei.

O Brasil é um país de analfabetos, pouquíssimas pessoas vão ler uma biografia. Os alfabetizados mal sabem ler jornal. Os que sabem ler estão colocando foto de pizza no Facebook e eles estão fazendo esse auê todo. Se a Paulinha Lavigne quer comparar o Brasil e os Estados Unidos, como fez na tevê, por que não aprende qual é o valor real de um país que cria todos os movimentos civis? Todo movimento de liberação, de contracultura, começou aqui. Se é para se mirar nos Estados Unidos, então voltem para os pais fundadores, tranquem-se num quarto na Pensilvânia, comecem a discutir os reais valores de uma sociedade e façam emendas à Constituição como as que existem aqui. A liberdade de expressão está garantida na primeira emenda à Constituição americana. Toda a minha questão de vida, toda a minha obra é em relação à liberdade de expressão. Se meu teatro e minha obra inteira forem reduzidos a alguma coisa é à defesa da liberdade de expressão. Esse é o valor máximo que uma sociedade deve ter. Pague-se o preço que for. Mas acho que um país que não passou por uma guerra verdadeira de independência, não viu sangue ser derramado, não sabe o valor real de lutar contra o colonizador, tem outros valores.
Aqui nos Estados Unidos as pessoas publicam o que querem e depois os advogados vão em cima. Se quiserem, podem fazer a mesma coisa no Brasil e passar o resto da vida perdendo tempo com advogados. Eu, simplesmente, ignoraria. Não entendo por que pessoas do porte de Chico Buarque e Caetano Veloso perdem tanto tempo preservando uma imagem. Qual imagem? A obra deles não fala mais alto? O que eles têm a perder? Eles são gênios, não deviam prestar atenção no que beltrano aqui ou fulano ali falam. Não tem a menor importância se um livrinho sai. No máximo, escreve um artigo rebatendo. Ler os artigos do Caetano tem sido constrangedor, ele está se enrolando cada vez mais.

Considero tudo um absurdo. Ganhar dinheiro em cima das biografias é um absurdo. São celebridades milionárias e o Brasil é um país de miseráveis. Será que o problema deles é falta de talento? Será que eles não estão conseguindo mais compor? Será que eles gostam da ditadura porque no regime militar eles compunham bem? Eu passei seis anos na Anistia Internacional em Londres defendendo presos políticos brasileiros, exilados e desaparecidos. Comparada com a ditadura de Pinochet, no Chile, ou de Videla, na Argentina, a brasileira não era nada, embora tenha sido duríssima. E, claro, produziu uma arte brasileira em que se falou por entrelinhas, em letras de músicas como “Cálice” (Pai/afasta de mim esse cálice) e “Sabiá” (Vou voltar/sei que ainda vou voltar), em alusão ao voto. Quando acabou a ditadura, cadê aquela genialidade toda? Abriram as gavetas e não tinha nada? É incrível como se compõe bem quando existe um grande inimigo comum. A arte escondida é uma arte genial.

É muito triste porque gosto imensamente deles, como pessoas e como artistas. Caetano Veloso é um dos maiores poetas do Brasil. Quando eu sentava com Samuel Beckett, em Paris, na década de 80, eu traduzia os poemas de Caetano para ele. Queria que ele entendesse quem era Caetano Veloso tal era o meu amor pela obra de Caetano. Dirigi show da Gal, “O Sorriso do Gato de Alice”, em 1994, no qual lidava com a obra de Caetano e de Gil o tempo todo. Degustava cada música 80 vezes por dia ensaiando a Gal e via mais brilhantismo ainda. “Nine out of ten”, “Vaca profana”, são lindíssimas. O tropicalismo é um grande movimento brasileiro, é uma das coisas mais importantes que aconteceram no País. Abasteceu o Brasil com brasileirismos maravilhosos. E agora vejo esse pessoal atrás de valores lavignianos? É nojento e triste. Essas pessoas, que eu achava que não tinham mais nada a perder, se defendem de uma forma puritana, boba, estúpida e imbecil não sei do que e mancham a própria biografia. 

Gerald Thomas é dramaturgo