Maria da Conceição Tavares afirma que Fernando Henrique virou rainha da Inglaterra e prevê um futuro muito difícil para a economia brasileira

Corre em Brasília uma piada que diz que se algum dia Deus vier a perdoar Fernando Henrique Cardoso pelo que ele está fazendo ao País seu castigo será reler tudo o que escreveu quando ainda não era presidente da República. Nestes escritos, o então sociólogo, que ocupou uma vaga no Senado, já alertava para os graves problemas que o Brasil eventualmente enfrentaria com a desnacionalização da economia. "Estamos indo para o buraco e o presidente da República tinha consciência de tudo isso", acusa a economista Maria da Conceição Tavares, ex-deputada e hoje assessora econômica do PT. Com seu temperamento explosivo, seu forte sotaque lusitano e sua língua ferina, Maria da Conceição faz uma análise pouco otimista do futuro próximo. Lamenta que tenha acertado em suas previsões, registradas no início do ano no livro Destruição não criadora – memórias de um mandato popular contra a recessão, o desemprego e a globalização subordinada. "Não sou Nostradamus, mas este livro já previa tudo que está acontecendo. Pena que a realidade acabou superando minhas piores expectativas."

De seu apartamento em Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro, Maria da Conceição se define como uma velha intelectual. Aos 69 anos, diz estar sem energia para tentar um novo mandato. "Vou me restringir a assessorar meu partido." Ácida nas críticas, entremeadas por sucessivos palavrões, a professora admite estar cansada e triste de ver seus ex-alunos, como o ministro Pedro Malan, cometerem atrocidades quando chegam ao poder.

Dividindo seu tempo entre a assessoria parlamentar, cursos e palestras em vários países, Maria da Conceição passou a última semana exercendo um dos papéis que cada vez gosta mais: o de avó. Chegou inclusive a desmarcar esta entrevista a ISTOÉ porque o horário não era compatível com suas obrigações caseiras. "Não dá para falar sobre macroeconomia preocupada com uniforme escolar e almoço." Seu neto Leon é tratado como um rei quando chega em casa. Foi só a campainha tocar anunciando sua chegada para que a entrevista fosse prontamente encerrada. O neto fica em sua casa nas próximas duas semanas enquanto os pais estão na Europa. Foi entre trabalhos escolares e brinquedos espalhados pela casa que Maria da Conceição falou sobre os problemas brasileiros e a crise de governabilidade.

ISTOÉ – Depois que a sra. escreveu Destruição não criadora, lançado no começo do ano, a situação do País piorou ou deu sinais de melhora?
Maria da Conceição Tavares

O que eu chamei de destruição não criadora foi exatamente esta política do governo de desmantelar tudo, desde o estatuto da Constituição até a privatização das estatais das áreas de telecomunicação, infra-estrutura e de serviços básicos. Do ponto de vista macroeconômico, simplesmente aconteceu tudo que eu previa no livro. Só que, infelizmente, a economia real ficou muito pior do que eu esperava. A realidade superou as minhas piores expectativas. Estamos numa situação de total desestruturação.
 

ISTOÉ – Já nos primeiros dias pós-reeleição ficou nítida a falta de popularidade do presidente Fernando Henrique Cardoso. De onde vem tanta impopularidade?
Maria da Conceição Tavares

O presidente ligou toda sua popularidade ao Real e apegou-se a este símbolo. Obviamente que aprovando um pacote fiscal atrás do outro, com o desemprego crescendo a olhos vistos e ainda desvalorizando a moeda na hora errada, sua popularidade despencou de vez. No caso do real, por exemplo, o presidente teve várias chances de desvalorizá-lo, mas ele acabou fazendo-o em meio a uma enorme crise internacional. Mas a maior asneira cometida pelo governo foi mesmo o modelo de privatização dos serviços públicos. Não existe exemplo no mundo de uma privatização à galega como foi feita a nossa. E o pior é que o setor de telecomunicações foi entregue para grupos que nem eficientes são. Aquilo que era de excelência, o governo não deveria ter desmantelado, como ocorreu com a Petrobras, Telebrás e Vale do Rio Doce. Estas eram nossas únicas empresas realmente de dimensão internacional. No lugar de mantê-las e capitalizá-las, como fizeram os espanhóis, o governo preferiu desmantelá-las. Tirando os dois primeiros anos de governo, quando eu era uma espécie de voz dissonante clamando no deserto, logo depois todos aderiram. No fim do primeiro ano de mandato, o doutor Delfim Netto, que é um homem de um outro ponto de vista ideológico, aderiu. No fim do terceiro ano de mandato, parte significativa dos tucanos também passou a criticar o governo.
 

ISTOÉ – Mas se as críticas começaram a partir de dentro do próprio PSDB, por que o governo não fez uma autocrítica?
Maria da Conceição Tavares

Quando eu estava no Congresso, costumava alertar aos meus companheiros tucanos: vocês precisam avisar ao presidente que a situação está ficando complicada. Invariavelmente eles concordavam com a professora, me aplaudiam nas sessões de discussão mais fechadas, mas na hora de votar acabavam fortalecendo as teses do governo. Se toda a política macroeconômica adotada aqui é conduzida diretamente de Washington, nos Estados Unidos, ou então por um grupo de economistas jovens que representa o establishment internacional, é óbvio que o País tinha de cair neste imenso buraco. A primeira geração das reformas foi simplesmente devastadora. O governo conseguiu desmantelar a Constituição inteira e ainda passou a governar com base nas MPs (medidas provisórias). A cada nova reforma, mais desemprego. A situação foi piorando e o governo manteve o mesmo discurso, sem mudar uma única linha.
 

ISTOÉ – Que exemplos práticos a sra. citaria para demonstrar que a situação está piorando?
Maria da Conceição Tavares

 O governo levou quatro anos para fazer uma destruição não criadora de todo o sistema produtivo. Ele quebrou as pequenas e médias empresas e desempregou milhões de trabalhadores. O endividamento do setor público pulou dos R$ 60 bilhões iniciais para a casa dos R$ 400 bilhões. Com esta taxa de juros selvagem que está aí a dívida explode. E o governo não consegue baixá-la para um nível civilizado porque os credores internacionais não permitem. A privatização do setor de telecomunicações, por exemplo, foi um fracasso. Nada funciona e, o pior, a privatização não aumentou as vendas da área de equipamentos. Simplesmente, as empresas preferem remeter seus lucros para o Exterior e importar equipamentos de suas matrizes ou associadas. No ano passado, o déficit comercial do setor de telecomunicações era de R$ 2 bilhões. A privatização não transformou o déficit do setor em superávit.
 

ISTOÉ – A nova política industrial que está em curso poderia mudar esta situação?
Maria da Conceição Tavares

Não me venha com bobagens. Esta nova política industrial nada mais é do que uma forma de mimetizar as fusões. Evidentemente que não temos condições de através de fusões criar empresas grandes como as americanas, alemãs ou mesmo japonesas. O modelo brasileiro de desenvolvimento não pode ser uma caricatura do americano. Cada empresa americana produz mais do que todo o Produto Interno Bruto nacional. É completamente ridículo acreditar que através de fusões e incorporações nós teremos condições de chegar a algum lugar. Somos um país continental que precisa, antes de mais nada, explorar seu mercado interno. Mas para isso precisamos ter emprego, salário e renda. O governo desmantelou todo o sistema produtivo nacional e agora diz que precisamos ser competitivos. Como isso é possível? O governo quer ser competitivo à custa da miséria do povo. Se miséria, pobreza e desemprego fossem fatores de competitividade, a África seria o continente mais competitivo do mundo.

ISTOÉ – O fato político criado pelo senador ACM empunhando a bandeira da pobreza é mais um complicador para o governo?
Maria da Conceição Tavares

 Estamos vivendo no reino da trapalhada. Em apenas uma semana, o governo promoveu uma reforma ministerial que é o mesmo que não ter feito nada. Foi a reforma do nós com nós e o governo ainda conseguiu deixar descontente toda a sua base de apoio. Como se não bastasse, o presidente perdeu a agenda política. Esta linguagem ACM de atacar e sair defendendo a pobreza é antiga. Isto é típico no Brasil. Quando os conservadores percebem que a frente de centro está quebrada, eles ocupam espaço. Não podemos chamar ACM de populista, porque este conceito só pode ser aplicado a quem tem tradição populista – o que não é o caso do senador. ACM nunca foi a favor do povo. Me lembro bem que durante a votação sobre a cobrança de impostos sobre as grandes fortunas, ACM e seu falecido filho, Luiz Eduardo, foram contrários à proposta. Está claro que ACM está em plena campanha eleitoral. É bom que fique claro que o senador está exprimindo a ansiedade das classes dominantes e não do povo. Ele ficou no poder durante anos e não fez nada pela pobreza nem pela baianada. A Bahia é um dos Estados mais pobres do Brasil. Se ele não fez nada quando era governador, não dá para acreditar agora que ele fará alguma coisa só porque está em campanha eleitoral.
 

ISTOÉ – Mas não é um pouco cedo para deflagrar a campanha para 2002?
Maria da Conceição Tavares

O problema é que a base política de sustentação de poder está totalmente fragmentada. Não adianta essa base ser majoritária, pelo simples motivo de que ela não é mais aliada. Seus membros estão mais preocupados com as próximas eleições do que com o sucesso do atual governo. Estamos vivendo hoje uma crise de governabilidade. Como esta base está em crise, provavelmente vamos viver nos próximos três anos e meio um período de muita instabilidade e de nenhuma ação. Só que como não se trata de um regime parlamentarista – onde simplesmente se decapita o primeiro-ministro, dissolve-se o Congresso e convocam-se eleições – e sim presidencialista, a situação é mais complicada. O presidente hoje está se comportando como se fosse a rainha da Inglaterra e seu primeiro-ministro, que supostamente é Pedro Malan, já começa a ser atacado pelos aliados. Todo mundo naquela Esplanada dos Ministérios fala mal do ministro da Fazenda. Não é à toa que o ACM veio a público, na semana passada, atacá-lo e o ex-ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros recentemente defendeu em São Paulo que o governo deveria assumir definitivamente o fracasso do Plano Real. Hoje, Malan anda às turras com ACM e com Mendonça de Barros. A campanha eleitoral foi deflagrada prematuramente e agora não é mais possível detê-la.
 

ISTOÉ – Mas esta trapalhada presidencial a que a sra. se referiu é fruto da incompetência ou o presidente está mal assessorado?
Maria da Conceição Tavares

 Nem uma coisa nem outra. O problema é que o presidente da República assumiu compromissos demais. FHC fez alianças com todos os grupos deste país. Ele prometeu mundos e fundos: desde aos grupos piranhas, que estão sempre querendo mais e mais, até a segmentos empresariais, banqueiros e agricultores. FHC prometeu demais e agora não está conseguindo cumprir as promessas e, o que é pior, não está conseguindo pagar a fatura. Todos têm hoje a sensação de que o tecido econômico está totalmente esgarçado. Temos um pacto de poder econômico insustentável e uma base de sustentação política que reflete esta instabilidade. A única coisa positiva no meio disso tudo é que o rei está nu. O problema é que estamos falando do presidente. E, o pior, de um presidente que acabou de ser reeleito.

ISTOÉ – E como fica a oposição no meio disso tudo?
Maria da Conceição Tavares

Um terço da população aproximadamente sabe que tudo isso é uma farsa. É bastante improvável que ACM convença os eleitores do Lula a acreditar na sua tese de contribuir pelo fim da pobreza. Mas ainda resta uma parcela da classe média ilustrada que, por mais de uma vez, se deixou deslumbrar pelos encantos do príncipe sociólogo. O PT até hoje não ganhou nenhuma disputa presidencial, mas em cada uma delas aumentou seu número de eleitores. Não há dúvidas de que a população tanto pode escolher um candidato do povo quanto pode continuar achando que a elite é quem sabe mandar. Se for assim, é claro que ACM tem grandes possibilidades. Não concordo com esta hipótese, pelo simples fato de que não há evidências de que nosso povo é politicamente analfabeto. Quando o povo votou pela primeira vez em Fernando Henrique, havia dois bons candidatos: ele e o Lula. Na reeleição, FHC só ganhou porque cerca de 40% do eleitorado preferiu abster-se. Não me sinto em condições de falar nas eleições presidenciais, sem antes saber o que vai acontecer com as prefeituras no próximo ano.
 

ISTOÉ – Na recente greve dos caminhoneiros, a oposição ficou fora da mobilização. Ela não acabou perdendo uma grande oportunidade de chamar a atenção da população para os problemas do País?
Maria da Conceição Tavares

 A oposição em lugar nenhum do mundo organizou greve de caminhoneiro. Aquela foi uma greve dos donos de caminhões. Podemos dizer, no máximo, que a oposição não está preparada para canalizar as forças descontentes de uma pequena burguesia e de uma classe média que é conservadora e está indignada. A esquerda em nenhum momento atacou a greve dos caminhoneiros, mas também não dá para cobrar que ela lidere este tipo de movimento. Isto é uma visão muito totalitária do movimento social. Esta greve era totalmente previsível. O governo privatizou as rodovias, aumentou o diesel e queria que os caminhoneiros ficassem calados.