Espiões serem chamados para liderar o país não constitui propriamente uma novidade na Rússia. Em 1982, quase no final da era soviética, chegava ao poder Yuri Andropóv, o chefão do temido KGB. Já no pós-comunismo, os mais recentes primeiros-ministros do presidente Bóris Yeltsin – Yevgeni Primakóv e Serguei Stepashin – fizeram carreira ou passaram pelos corredores da Lubianka (a sede do KGB). Agora chegou a vez de Vladimir Putin, 46 anos, indicado por Yeltsin na segunda-feira 9 para liderar um novo gabinete – o quarto em apenas 18 meses. De expressão fria e sem carisma, Putin foi agente secreto na Alemanha durante o comunismo. Desde 1998, ele está à frente do Serviço de Segurança Federal, braço interno da espionagem russa e sucessor do KGB. O inusitado neste caso é que o presidente demitiu o premiê Serguei Stepashin menos de três meses depois de tê-lo nomeado, e no momento em que ele estava em missão no conflagrado Cáucaso. Mas o mais surpreendente é que Yeltsin fez do até agora pouco conhecido Putin seu candidato à sucessão nas eleições presidenciais do ano que vem. "Confio nele", disse o imprevisível presidente russo em discurso na tevê. "Mas também quero que todos aqueles que, em julho de 2000, forem aos locais de votação e fizerem sua escolha, tenham a mesma confiança nele". Declaração no mínimo curiosa para um líder político que está com a popularidade em frangalhos.

Ao que parece, o círculo próximo de Yeltsin – do qual faz parte a sua filha Tatyana – o convenceu de que Stepashin, um antigo falcão que dirigiu o serviço secreto durante a guerra da Chechênia (1996), vinha mostrando agora um perfil excessivamente prudente para as necessidades políticas do presidente. De qualquer forma, a abrupta decisão de Yeltsin desnorteou até seus aliados políticos. "Isso é altamente sugestivo da agonia e loucura que tomou conta do Kremlin", disparou Bóris Nemtsov, que integrou a equipe de Yeltsin e chegou a ser cogitado como herdeiro político do presidente. Os comunistas também chiaram: "Quem irá levar qualquer primeiro-ministro a sério, se eles estão sendo trocados como luvas?", perguntou Gennady Ziuganov, líder do Partido Comunista Russo. Apesar de tudo, a aprovação do novo premiê pela Duma (Parlamento), dominada pela oposição nacionalista-comunista, é tida como certa pelos analistas. A explicação é que, desta vez, a quatro meses das eleições parlamentares, a oposição não está querendo se arriscar. Se a Duma rejeitar a indicação do premiê por três vezes, Yeltsin dissolverá o Parlamento, deixando os oposicionistas sem tribuna em pleno período eleitoral.

Segundo o jornal The New York Times, os analistas russos estão divididos quanto aos motivos do presidente para tão espoucada atitude. Os mais otimistas sustentam que a decisão de trocar a guarda e anunciar um delfim revelou que Yeltsin quer deixar como legado um sucessor que complete o processo que ele iniciou de transformar a Rússia num país democrático com economia de mercado. Outros, mais céticos, acham que ele é um político em fim de carreira, incapacitado de governar pelas péssimas condições de saúde e cujo único objetivo agora é preservar a imunidade depois que deixar o cargo, já que existem inúmeras denúncias de corrupção contra figurões do governo. "Ele está em pânico", garante um dirigente comunista. "O presidente não está preocupado com seu legado, mas sim com a possibilidade da eclosão de um cenário Ceaucescu", disse, referindo-se ao corrupto ditador romeno Nicolae Ceaucescu, deposto por uma revolução e fuzilado por militares em dezembro de 1989.

 

Espiões esclarecidos – Putin formou-se em Direito em 1975 e entrou no serviço estrangeiro do KGB, onde chegou a tenente-coronel. Como agente secreto, trabalhou durante muitos anos na Alemanha. No final da década de 80, ele voltou a Leningrado (atual São Petersburgo), sua cidade natal. Em 1990, integrou a equipe do prefeito reformista Anatoly Sobchak, um dos líderes do então incipiente movimento democrático da Rússia. Tido como um administrador duro mas competente, Putin chegou a vice-prefeito e era considerado a eminência parda de Sobchak.

No regime comunista, espiões no poder costumavam revelar uma surpreendente vocação reformista. Talvez porque conhecessem como ninguém os meandros e as fissuras de um regime que se pretendia perfeito e acabado. Depois da morte de Josef Stálin, o temido chefe do NKVD (antecessora do KGB) Lavrenti Beria tinha planos de desestalinizar o país. Mas acabou deposto por um golpe palaciano e executado por ordem de Nikita Kruschóv, em 1953. Em 1982 Yuri Andropóv pavimentou o caminho para as reformas de Mikhail Gorbatchóv. Putin já tem impecáveis credenciais reformistas. Resta saber se ele sobreviverá à ciclotimia de seu padrinho político.

 

O Cáucaso volta a ferver

No final da semana passada, milícias muçulmanas tomaram várias cidades da república russa do Daguestão, de maioria islâmica, na fronteira com a Chechênia. Na terça-feira 10, os rebeldes separatistas declararam um Estado islâmico independente na região. Os insurgentes são liderados por Shamil Bassaiev, líder checheno da luta pela independência da república vizinha, em 1996. Tropas russas bombardearam posições dos rebeldes e pelo menos dez soldados russos morreram. Na sexta-feira 13 o novo premiê Putin ameaçou ampliar os ataques contra os rebeldes na Chechênia.