Altin Kelmendi, nove anos, e seu primo, Adem Buzaku, 13, estavam esfuziantes com o fim da guerra na província de Kosovo. Afinal, após permanecerem confinados durante mais de dois meses num inóspito centro de refugiados, eles podiam novamente brincar nos campos que rodeiam sua casa, no vilarejo de Krajkov, nas proximidades da fronteira com a Albânia. Ao correrem atrás de uma vaca desgarrada, os dois perceberam a presença sob o capim de um pequeno objeto reluzente. O cilindro, do tamanho de uma lata de refrigerante e pintado com uma tinta amarela brilhante, estava preso numa miniatura de pára-quedas. Parecia ter caído da prateleira de uma loja de brinquedos. Os dois garotos kosovares se empurraram para se apoderar primeiro do objeto. Ouviu-se uma violenta explosão. O artefato era uma bomba de fragmentação, um dos milhares de "clusters bombs" despejados pelos aviões da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra as tropas sérvias. Levados a um hospital da capital Pristina, eles conseguiram sobreviver, mas perderam suas pernas. Adem não quer mais sair do ambulatório. "Como posso voltar para casa sem minhas pernas?", pergunta. Tragédias como essa fazem parte da herança recebida pelos kosovares após o fim do conflito nos Bálcãs. Diariamente, pelo menos cinco incidentes semelhantes, provocados pela explosão de bombas de fragmentação ou minas terrestres, ocorrem na província. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que pelo menos 200 pessoas já morreram ou ficaram gravemente feridas em explosões. Cerca de 70% das vítimas têm menos de 24 anos de idade. "A situação aqui é muito séria e pode ser comparada ao que presenciamos no Camboja ou no Afeganistão", disse John Flanagan, chefe do Grupo de Ação contra Minas da ONU, que coordena a limpeza de explosivos em Kosovo. "A Otan, que criou essa situação, deveria pelo menos assumir a responsabilidade de livrar Kosovo dos explosivos, o que infelizmente não está acontecendo."

 

Campo minado – Kosovo é hoje um território literalmente minado. "Chegamos aqui pensando que a imprensa estava fazendo muito carnaval sobre o assunto", diz Phil Straw, diretor da Halo Trust, uma ONG britânica especializada no desarmamento de minas terrestres. A entidade está concluindo um minucioso levantamento em toda a província. "Constatamos que há pelo menos meio milhão de minas no solo kosovar", afirma. Cerca de 80% desses explosivos, que foram colocados pelas tropas sérvias e pelo Exército de Libertação de Kosovo (ELK), estão posicionados em regiões fronteiriças inabitadas, no sul de Kosovo. Mas pelo menos outros 100 mil estão no centro da província, próximos a cidades e vilarejos. Os técnicos da Halo, no entanto, estão mais preocupados no momento com a quantidade de bombas de fragmentação encontradas no solo kosovar e a destruição que elas vêm causando. O depósito da entidade em Pristina está lotado com carcaças do armamento – uma bomba ovalada, com cerca de 90 centímetros de comprimento. A Otan diz que despejou em Kosovo cerca de 1.500 bombas de fragmentação durante os dois meses de guerra. Cada uma delas, antes de atingir o solo, espalha numa área equivalente a um campo de futebol cerca de 150 explosivos semelhantes ao encontrado pelos garotos Altin e Adem. Essas latinhas fatais aterrissam no solo através de um pequeno pára-quedas individual. Os fabricantes dos armamentos – empresas americanas e britânicas – reconhecem que cerca de 5% falham e não detonam com o impacto da aterrissagem. Mas especialistas em explosivos ligados às ONGs acham que esse porcentual pode ser bem superior, de até 30%. Segundo estimativas moderadas, cerca de 40 mil latas coloridas enganchadas em singelos pára-quedas podem estar espalhadas em Kosovo. A destruição causada pelas "clusters bombs" é mais letal do que a provocada por minas terrestres. Ao explodirem, elas libertam uma onda de calor e cerca de dois mil fragmentos de aço capazes de perfurar veículos blindados, como tanques. Não é difícil imaginar o efeito causado aos seres humanos. No início deste mês, um garoto de 14 anos, acompanhado de quatro amigos, tropeçou numa delas, nas proximidades de Lipljan. A explosão arrancou o seu braço esquerdo e o arremessou a vários metros de distância causando fraturas nas suas duas pernas. No hospital, ele recebeu cerca de oito litros de sangue. Seu coração parou duas vezes. Os médicos decidiram então amputar suas pernas e o braço restante. Mas ele não resistiu e morreu. Em outro incidente, no vilarejo de Doganovic, ao sul de Pristina, um grupo de garotos localizou uma bomba de fragmentação. Cinco morreram na hora. Dois irmãos, de 14 e 2 anos de idade, sobreviveram, mas terão de suportar terríveis sequelas.

 

Pesca proibida – Mesmo a Itália, que não foi palco da guerra, está apavorada com as bombas. Muitos pilotos da Otan, ao retornarem às suas bases, despejaram bombas no mar Adriático para não arriscarem aterrissagens carregados de explosivos. Mais de 100 latas amarelas já foram recuperadas, mas estima-se que existam outros milhares na região. Dezenas de pescadores italianos já ficaram feridos. A pesca comercial entre Trieste e Ancona foi proibida até o final do verão europeu. Dezenas de milhares de turistas que se dirigem anualmente ao Adriático, por precaução, escolheram outro destino.

Para as entidades humanitárias que estão colaborando na reconstrução de Kosovo, a Otan demorou demais para tentar pelo menos atenuar o problema. Na pressa de permitir o retorno dos refugiados às suas casas em Kosovo, a aliança militar esqueceu-se de conscientizá-los sobre a presença dos explosivos, principalmente as crianças, as maiores vítimas das latinhas assassinas. "A guerra pode ter acabado para os líderes da Otan, mas para a população de Kosovo ela continua", disse a ISTOÉ Richard Lloyd, diretor do Grupo de Trabalho sobre as Minas Terrestres, uma ONG britânica que integra a Campanha Internacional pelo Banimento de Minas. O fato de que as bombas de fragmentação dilaceram a vida de inocentes é velho e sabido. Elas foram introduzidas pelos americanos no Vietnã, Camboja e Laos. Durante a guerra do Golfo, em 1991, foram consideradas pelo Pentágono uma arma fundamental na libertação do Kuait. Desde então elas já mataram ou feriram centenas de kuaitianos. "Kosovo é um exemplo clássico da recusa das autoridades em aceitar a experiência adquirida em conflitos do passado e a obstinação da indústria armamentista em não admitir que seus produtos não são confiáveis", diz Rae McGrath, que foi um dos agraciados com o Prêmio Nobel da Paz em 1997 por sua luta pelo banimento das minas. Os governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha evitam comentar o assunto, apesar de admitirem nos bastidores que o preço pago pela população civil é alto. O ministro da Defesa britânico – e novo secretário-geral da Otan –, George Robertson, garante que as bombas de fragmentação são o meio mais eficaz de destruir veículos armados.

 

Baixo custo – Essas bombas talvez sejam eficientes contra os tanques, como garantem os líderes da Otan. Talvez também ajudem a obter resultados imediatos no calor do conflito. Mas talvez seja o fato de elas serem baratas que as tornem tão populares. O modelo americano CBU-87 – o mais usado em Kosovo – custa US$ 16.500, uma pechincha se comparado ao GBU-16, a "bomba inteligente" guiada a laser, que vale quase US$ 180 mil por unidade. Os fabricantes das "clusters" já anunciaram que seu produto poderia ser equipado com um sistema de autodestruição. Mas o detalhe é que a bomba ficaria muito mais cara. Os especialistas em desativação de bombas em Kosovo vêm notando também que muitas das clusters que não explodiram estavam com a sua data de validade vencida, o que é mais um constrangimento para as potências da Otan.

Diante dessa tragédia pré-anunciada, as ONGs e dezenas de voluntários estão fazendo o que podem para tentar atenuar o drama dos kosovares. As crianças, por exemplo, são orientadas nas escolas a se afastarem das áreas que ainda não foram "penteadas". Mas com a chegada do inverno e a necessidade de coletar lenha, os jovens terão de se embrenhar pelas matas e novas mortes certamente ocorrerão. O bombardeio da Otan em Kosovo ainda vai demorar muitos anos para acabar.