Eram os tempos árduos da Segunda Guerra Mundial e os alemães ocupavam a França. Certo dia, Adolf Hitler foi visitar o ateliê do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), em Montmartre, um dos bairros mais boêmios de Paris. Quando se deparou com a monumental tela Guernica, o ditador perguntou ao artista: "Foi o senhor que fez isso?" "Não. Foram os senhores", teria respondido Picasso, sem pensar duas vezes. Infelizmente, a obra ícone da pintura ocidental – feita em 1937 sob o impacto do bombardeio nazista durante a Guerra Civil Espanhola sobre a cidade basca de mesmo nome – não fará parte da exposição Picasso – anos de guerra, 1937-1945, prevista para ser inaugurada na terça-feira 27 no Museu de Arte Moderna (MAM) carioca. Guernica, que já esteve no Brasil em 1953, não pode mais deixar o Museu Rainha Sofia, em Madri. Mesmo assim, a mostra que reúne mais de 150 trabalhos entre óleos, desenhos, gravuras e esculturas promete ser uma grande oportunidade para se conhecer ou rever de perto um dos períodos mais férteis da polêmica trajetória daquele que é considerado o maior pintor do século.

Não se trata de uma retrospectiva ou de um evento revendo sua fase mais revolucionária, iniciada em 1907 com o quadro Les demoiselles d’Avignon, obra que determinou uma ruptura radical em cinco séculos de pintura ocidental, criando a gênese do movimento cubista. Em seus 91 anos de vida, o filho da cidade de Málaga, que se radicou na França desde 1902, produziu o impressionante número de 1.076 pinturas, 11.700 desenhos, 1.350 esculturas, duas mil peças de cerâmica e milhares de gravuras. Os primeiros quadros cubistas de Picasso não foram aceitos pela crítica nem sequer por seus amigos mais íntimos e é este tipo de curiosidade que poderá ser satisfeita durante a projeção de sete minutos no hall monumental do MAM. Ou ainda nas palestras e filmes que acompanham a mostra que ainda traz esboços e variações em torno da tela Mulher que chora.

Entre as obras mais importantes da exposição – integrada em sua maioria pelo Museu Picasso de Paris e acrescida por telas do Museu de Barcelona, Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, e Museu de Arte Contemporânea, de São Paulo – estão Mulher sentada com os braços cruzados; os estudos para a série Cabeça de mulher; e Fúria, na qual um gato pega um passarinho, representando a opressão dos poderosos. Interpretações como esta são até hoje controvertidas. Picasso não se preocupava se as pessoas compreendiam ou não suas telas, esculturas. Nem costumava fornecer chaves para tanto. Dominique Dupuis-Labbé, curadora da exposição e do Museu Picasso, observa que a pintura desse período é cruel e até as naturezas-mortas passam a idéia de privação. "Embora deixasse claro que não fazia um trabalho fotográfico da guerra e recusasse as interpretações, nunca negou que o conflito estivesse metaforicamente presente nessa fase da sua obra", esclarece Dominique.

O crítico de arte Reynaldo Röels, um dos palestrantes, admite que o acervo exibido não é tão importante em sua obra como foi o cubismo, embora considere que a fase escolhida seja uma das mais profícuas da sua carreira. "Foi quando produziu com mais intensidade, tanto em quantidade quanto em qualidade. Era um ritmo frenético, que abrigou obras melhores e piores, e mesmo essas últimas são geniais", define. Também é oportuno frisar que foi no mesmo período que o artista começou a politizar seu trabalho. O crítico e historiador Frederico Morais, outro participante do ciclo de palestras, chama a atenção para a fase emocionalmente conturbada em que se encontrava Picasso. Tinha se separado da bailarina Olga Kokhlova, quando apareceram em sua vida a modelo Marie Thérèse Walter, com quem foi casado, e a amante e musa do surrealismo, a fotógrafa Dora Maar, uma de suas modelos prediletas. "Picasso chamava Olga de cabra lacrimejante", conta Morais. "Com Marie Thérèse surgiram as formas mais arredondadas e as linhas sinuosas na sua obra. Dora o politizou e o fez entrar no Partido Comunista, em 1944." Segundo o crítico, o grande artista feio e baixinho, mas de fortíssima personalidade, destruiu todas suas mulheres, que se suicidaram ou entraram em crises depressivas. Ao longo da vida contaram-se oito, entre esposas e amantes, de quem nasceram quatro filhos. "Era a gulodice criativa e sexual em pessoa. Um ginasta, que trepava e pintava, trepava e esculpia", acrescenta Morais.

Provavelmente, o público será poupado dos aspectos menos enaltecedores da vida de Picasso, que não se pode dizer que primou pelo caráter ilibado. Uma das histórias que ilustram bem sua personalidade foi a de ter escolhido um dos piores quadros do pintor e amigo Georges Braque para decorar um de seus castelos. Primeiro ele mostrava a obra aos visitantes para depois compará-la à genialidade de seu próprio trabalho. Foi com Braque que Picasso deu origem ao cubismo analítico, no qual a multiplicidade de ângulos de um mesmo objeto chega quase à abstração. A exposição de Picasso – que chega a São Paulo em setembro – é parte de um trabalho de formiguinha desenvolvido por Romaric Sulger Büel, ex-adido cultural do Consulado da França e produtor da mostra. "Durante muitos anos dizia-se que o Brasil não tinha condições de receber grandes exposições, mas isso acabou", festeja Büel.