O ex-ministro da Fazenda critica a onda de pessimismo e diz que desconfianças do setor privado em relação ao governo Dilma não se justificam

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OTIMISMO
Delfim em seu escritório:
“Crise não existe”

O paulista Antônio Delfim Netto é uma voz dissonante do recorrente pessimismo demonstrado por alguns analistas de mercado e empresários a respeito dos rumos da economia brasileira. Aos 85 anos, esse professor emérito da Universidade de São Paulo e ex-artífice do milagre do crescimento durante a ditadura militar não acha que o País vai de mal a pior, como argumentam os críticos do governo Dilma Rousseff, e vê como injustificada a desconfiança do setor privado. “O apocalipse não está na esquina”, diz Delfim. Nesta entrevista, concedida às 8 horas da manhã (horário em que começa a dar expediente) em seu escritório na zona oeste de São Paulo, ele fala também sobre o fracasso dos programas de concessões, compara o estilo da presidenta com o de seu antecessor e elogia a decisão de Dilma de cancelar a visita oficial que faria aos Estados Unidos. E, claro, destilou o veneno de sempre. “Enquanto no PT o aparelhamento do Estado é com o companheiro de passeata, no PSDB é com o companheiro de tertúlias.”

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"O Lula tem uma inteligência intuitiva. No fundo, ele foi 
um grande acidente positivo na história brasileira”

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“Ao cancelar a visita aos EUA, Dilma mandou um recado claro
a Obama: Ok, vocês são mais fortes, mas têm moral duvidosa"
 

ISTOÉ

Afinal, existe ou não uma crise econômica no Brasil? 

Antônio Delfim Netto

Crise não existe. O que existe é um pessimismo muito superior àquele justificado pelos fatos. Dizem que abandonaram-se os fundamentos indispensáveis para a boa condução da economia. Não se abandonou nada. Vamos começar pelo acerto fiscal. Você tem uma dívida bruta de 60% do PIB e um déficit fiscal de 2,5%. É uma situação desconfortável, mas que não representa nenhuma tragédia. Se você olhar bem, verá que o déficit fiscal vem sendo reduzido paulatinamente. 

ISTOÉ

Muitos especialistas dizem que há um risco inflacionário. 

Antônio Delfim Netto

A inflação vem se mantendo mais ou menos dentro de uma margem aceitável. Hoje, uma inflação de 6% não é baixa. Talvez haja cinco ou seis países importantes com inflação igual a essa. Não é uma inflação fora de controle, mas ela cria dificuldades, principalmente porque você tem alguns preços controlados e um dia vai precisar absorver isso. A questão é que não há nenhum risco de a inflação explodir. Por mais que muita gente diga o contrário, o fato é que o apocalipse não está na esquina. 

ISTOÉ

O sr. não acha que há certa desconfiança do setor privado em relação ao governo? 

Antônio Delfim Netto

Essa desconfiança nasceu agora, mas não é justificada. Basta olhar o que a presidenta Dilma fez. Por exemplo, a intervenção no setor elétrico. Baixar o custo de energia é fundamental. A medida está certa. Em dois ou três anos, ela vai resultar no aumento da eficiência das empresas. O problema é que se criou a ideia de que o setor privado é muito egoísta, só pensa nele, e que o governo é o único defensor das massas. As pessoas esquecem que, sem massas, o setor privado não funciona.  

ISTOÉ

O sr. mantém contato com muitos empresários. Que visão eles têm do governo Dilma? 

Antônio Delfim Netto

Muita gente do setor privado enxerga no governo um bando de trotskistas enrustidos, que querem destruir o capitalismo. Nada disso, claro, é verdade. Duvido que Dilma tenha alguma restrição ao setor privado. Ela declarou recentemente, em Nova York, que o governo precisa não só dos recursos, mas da gestão do setor privado, que é mais ágil e eficiente. Alguém que declara isso numa reunião em Nova York para potenciais investidores não pode ser entendida como uma pessoa que queira fazer do Brasil uma Cuba. O que me parece é que o governo precisa acordar de novo o espírito animal dos empresários. 

ISTOÉ

O sr. está dizendo que falta entusiasmo ao empresariado? 

Antônio Delfim Netto

O homem é um ser cíclico. Um dia estou com grande entusiasmo, noutro tenho preocupações e fico deprimido. O mecanismo do entusiasmo e da depressão se transfere como um vírus. Na economia é assim também, uma coisa contamina a outra. O trabalhador fica com medo de perder o emprego. Ele procura ficar líquido e, assim, reduz o consumo. O empresário, não tendo certeza que vai haver demanda, reduz a produção e reforça o sentimento de que a coisa vai piorar. Ele fica líquido também. O banqueiro acha que o outro banco está pior do que ele. Então os bancos não emprestam mais entre si. Quando está todo mundo líquido, eles morrem afogados na liquidez, que é a recessão. Mas isso não vai acontecer com o Brasil.  

ISTOÉ

Que comparações o sr. faz entre Lula e Dilma? 

Antônio Delfim Netto

 A presidenta é uma tecnocrata muita preparada. Sem dúvida, trata-se de uma centralizadora, mas é sua forma de ser. Já o Lula tem uma inteligência intuitiva, quase natural, e exerce grande liderança sobre as pessoas. Ele é capaz de participar de uma reunião com dez sujeitos e depois fazer uma síntese, aproveitar o que tinha de bom naquilo e colocar em prática. No fundo, o Lula foi um grande acidente positivo na história brasileira.

ISTOÉ

Se o País melhorou, por que os brasileiros falam mal do Brasil? 

Antônio Delfim Netto

Porque é assim mesmo. A crítica do mercado é simples de entender. Era muito fácil ganhar a vida com taxa de juro real de 12%. Ganhar a vida com taxa real de 2% é mais difícil. Por isso, a crítica do mercado financeiro é irrelevante, não faz cócega. É uma coisa ridícula, por exemplo, os economistas fixarem as prioridades do governo. Cada economista tem no máximo o seu próprio voto. Não tem nem o da mulher, porque ela desconfia dele.  

ISTOÉ

Por que os leilões do pré-sal e das rodovais não deram os resultados esperados? 

Antônio Delfim Netto

Não tem nada de misterioso acontecendo. Se o governo quer estradas de certa qualidade, ele precisa fazer leilões competentes, com editais transparentes. Leilão é coisa para profissional e não para amador. O governo estabeleceu a qualidade desejada? O mercado define a partir daí a taxa de retorno. O governo estabeleceu a taxa de retorno? Nesse caso, é o mercado que define a qualidade possível. Pelo caminho correto, você tem a menor tarifa para uma determinada qualidade. Pelo caminho que o governo segue, você tem a menor tarifa com a pior qualidade. Ou seja, não funciona.  

ISTOÉ

O fracasso dos leilões não pode ter impactos negativos na economia? 

Antônio Delfim Netto

O sucesso dos leilões é fundamental porque é a primeira injeção na veia para aumentar a produtividade do sistema. Se eu melhoro a infraestrutura, o ganho de produtividade é espantoso. Digamos que, para chegar ao porto de Paranaguá, uma tonelada de soja gasta 500 quilos. Se eu melhorar a infraestrutura, uma tonelada de soja vai chegar ao mesmo destino com 900 quilos. Esses 400 quilos de diferença representam ganho líquido de produtividade para o sistema inteiro, simplesmente porque a infraestrutura melhorou.
 

ISTOÉ

Parece simples de fazer, mas não se faz. Por quê? 

Antônio Delfim Netto

Porque o Brasil é dominado por corporações que têm seus interesses. Por que estão se criando tantos partidos? Simplesmente porque é um comércio, um negócio. Um partido é um negócio que recebe um fundo partidário. Por que se criam sindicatos todos os dias? Porque tem o fundo dos sindicatos. 

ISTOÉ

Os interesses próprios resultam também no aparelhamento do Estado. 

Antônio Delfim Netto

O aparelhamento do Estado existe há muito tempo. Não foi só o PT que aparelhou. O PSDB também. A diferença é que o PSDB aparelhava com companheiros de tertúlias. No PT, o aparelhamento é com o companheiro de passeata.  

ISTOÉ

Um dia o Brasil será um país desenvolvido? 

Antônio Delfim Netto

Não tenho dúvida. O Brasil melhorou dramaticamente nos últimos anos. A Constituição de 1988 mudou tudo para melhor. A Constituição quer uma sociedade em que haja a maior igualdade de oportunidades. Significa que não importa se você foi produzido numa suíte presidencial ou meio por acaso, num sábado à noite, embaixo do Museu do Ipiranga e com os seus pais bêbados. Uma vez produzido, você é senhor de direitos. Não importa. Hoje, não há nenhum país emergente com instituições tão sólidas quanto o Brasil. A prova disso é o Supremo. 

ISTOÉ

O Supremo trabalhou corretamente no julgamento do Mensalão? 

Antônio Delfim Netto

Quando eu vejo as pessoas ficarem tristes porque o Supremo está tentando fazer justiça, acho apavorante. O Supremo não existe para fazer vingança, mas para fazer justiça. O que aconteceu agora reafirma a minha convicção de que caminhamos para o fortalecimento das instituições.  

ISTOÉ

A presidenta Dilma acertou ao cancelar a viagem oficial para os EUA depois das denúncias de espionagem?  

Antônio Delfim Netto

Seria muito desconfortável para a presidenta aceitar o convite de Obama. A espionagem diminuiu a nossa soberania. Com o cancelamento da visita, o Brasil mandou um recado claro: Ok, vocês são mais fortes, mas têm moral duvidosa. A força da moral às vezes é maior do que a força das armas.  

ISTOÉ

Quem faz falta no Brasil de hoje em dia? 

Antônio Delfim Netto

O José Bonifácio (José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência), que estava muito acima de sua geração. Em 1824 ele queria dar instrução gratuita, acabar com a escravidão. Era um cientista, uma mente brilhante. Se o José Bonifácio tivesse sido levado a sério, o Brasil seria os EUA.
 

ISTOÉ

O sr. era o terror da esquerda brasileira e depois se aproximou do PT. Que convicções foram deixadas para trás? 

Antônio Delfim Netto

A pretensão de saber. Antes, eu acreditava mais no meu conhecimento do que acredito hoje. Atualmente, sou um sujeito muito mais relativista. 

ISTOÉ

Qual é o seu papel na construção do pensamento econômico brasileiro? 

Antônio Delfim Netto

Nenhum. Fiz aquilo que me cabia fazer, com o conhecimento e o poder que tinha. Fiz coisas certas, fiz coisas equivocadas. 

ISTOÉ

O sr. é um homem realizado? 

Antônio Delfim Netto

Muito. Quando você tem sorte, nunca trabalha, porque faz o que gosta. Você vive. Eu tive uma sorte louca.