O presidente Fernando Henrique Cardoso gosta de repetir uma definição que cunhou a respeito de si próprio. É um cartesiano com pitadas de vodu e candomblé. Depois de enredar-se nos últimos seis meses na teia de intrigas que tomou conta do governo, FHC usou esse coquetel de características heterodoxas para promover uma reforma ministerial na sexta-feira 16 que tenta dar uma cara nova ao Palácio do Planalto e divide o poder na área econômica. Com calculada racionalidade e alguma dificuldade para escalar a equipe, conseguiu mexer em áreas-chaves do governo sem esfacelar a heterogênea base aliada. Para ser o interlocutor dos partidos e dar um freio de arrumação no Planalto, escalou para a Secretaria-Geral da Presidência o deputado Aloysio Nunes Ferreira, tucano paulista com origem na esquerda que conta hoje com as bênçãos do babalorixá da Bahia, senador Antônio Carlos Magalhães (PFL). Em outra mexida, deslocou o ministro Clóvis Carvalho da Casa Civil da Presidência para o comando do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Carvalho é um peso pesado que tinha no palácio a capacidade de desagradar os parceiros políticos e os colegas de Ministério, mas que terá no novo posto o respaldo do presidente para deslanchar o projeto de desenvolvimento sonhado pelo alto tucanato. Na verdade, depois de quatro anos e meio na cômoda posição de primeiro-ministro, Carvalho, que era considerado um gerentão sem jogo de cintura, vai ter de entrar em campo e provar que é capaz de tornar realidade o Ministério desenhado para Luiz Carlos Mendonça de Barros e ser um contraponto ao monetarista Malan. Essa divisão na área econômica nunca deu certo. FHC parece que vai pagar para ver.

O presidente recorreu também à sua porção vodu para atiçar o fogaréu da fritura dos ministros da Justiça, Renan Calheiros, do Desenvolvimento, o amigo Celso Lafer, e da Agricultura, Francisco Turra, ao mesmo tempo que os afagava com elogios. Escaldado pelas experiências anteriores em que as mudanças ministeriais começaram de um jeito e, ao sabor das pressões dos aliados, acabaram de outro completamente diferente, Fernando Henrique desta vez escondeu o jogo. Não fez, por exemplo, nenhuma consulta ao PMDB. Depois de levar uma semana de chá de cadeira, o presidente do partido, senador Jader Barbalho (PA), desistiu de esperar um aceno de FHC e embarcou para umas férias nas ilhas gregas. Os dirigentes do PMDB só foram chamados para conversar na reta final das mudanças. Tentou sinalizar, ao pedir a renúncia coletiva dos ministros, que a mexida planejada seria maior do que as anunciadas trocas pontuais, um eufemismo para justificar a demissão de Renan Calheiros. Na realidade, catapultou apenas quatro dos 23 ministros para fora de sua equipe e trouxe, além de Aloysio, três nomes novos (Pratini de Moraes, José Carlos Dias e Fernando Bezerra) e deixou de fora a única mulher do primeiro escalão (Cláudia Costin).

FHC abriu a temporada de mudanças no governo cantando de galo. Num jantar na casa do advogado João Geraldo Piquet Carneiro na noite do sábado 3, um falante Fernando Henrique criticou a imprensa pelas interpretações de que o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, mandava no governo. "Isso é uma balela. Outro dia eu disse ao Antônio Carlos: fui eleito pelo voto da população por duas vezes para a Presidência da República e você não", contou o presidente, em tom de bravata. Menos de duas semanas depois, FHC fechou uma reforma ministerial, feita com o propósito de aumentar sua autoridade, mas que acabou cedendo ainda mais poderes ao cacique baiano. Mesmo distante do burburinho brasiliense, aboletado em Porto Seguro, ACM manteve seu espaço e ficou satisfeito com as escolhas de Pedro Parente para a chefia da Casa Civil e de Aloysio Nunes para a articulação política. Ainda arrancou o compromisso do governo de conceder benesses suficientes para levar a Ford para a Bahia. "Agora todos sabem que não sou eu quem manda no presidente; quem impõe regras e soluções é o governador Mário Covas, não eu", ironizou Antônio Carlos ao censurar o governador de São Paulo por se opor aos benefícios à Ford e pedir a cabeça de Renan.

Pela primeira vez sem estar prosa, ACM vibrou também com a ida de Parente para o Planalto. Na batalha para levar a Ford para a Bahia, Parente forneceu munição técnica para o cacique baiano se contrapor aos pareceres do Ministério da Fazenda. ACM se considera traído por Malan, a quem sempre deu respaldo político, e está decidido a apostar suas fichas em Parente e no presidente do Banco Central, Armínio Fraga. A saída de Carvalho da Casa Civil e a extinção do cargo do secretário de Relações Institucionais, Eduardo Graeff, que volta a ser redator dos discursos presidenciais, também agradaram ao senador. Se mais uma vez preferiu não enfrentar ACM, Fernando Henrique resolveu fazer uma demonstração de força contra o PMDB. Jogou pesado contra o elo mais fraco da aliança governista, tornando inviável a permanência de Renan no governo. O Planalto considerava um risco deixar Renan pilotando no Ministério da Justiça as investigações da Polícia Federal sobre os escândalos que envolvem o tucanato.

Enquanto Renan informava Jader, que a esta altura já estava na Itália, sobre sua demissão, o senador Fernando Bezerra (PMDB-RN) recebia em Paris um convite para o Ministério da Integração Nacional. Começava ali uma longa vigília peemedebista que varou a madrugada da quarta-feira 14. "Olha, só topo se for do interesse do partido", condicionou Bezerra em conversa com correligionários pelo DDI. "Antes de aceitar, peça também o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (Basa)", aconselhou Jader. Em seu estilo ambíguo, Fernando Henrique disse aos peemedebistas que aceitava a exigência e ao mesmo tempo instruiu Malan a divulgar uma nota assegurando que os dois bancos continuam sob o comando da Fazenda. Na manhã da sexta-feira 16, Bezerra foi ao Palácio da Alvorada disposto a recusar o convite se não fosse atendido em suas exigências. Acabou aceitando mesmo sem levar o Basa e o BNB, em troca da promessa de que seu Ministério contará com os recursos dos fundos constitucionais para as regiões Norte e Nordeste.

Para tornar a pílula menos amarga para o PMDB, FHC transformou em penduricalhos os ministérios da Cultura e da Ciência e Tecnologia. Ofereceu os cargos dos amigos Francisco Weffort e Bresser Pereira como moeda de troca numa negociação com a bancada do PMDB de Goiás. Na última quarta-feira, os peemedebistas goianos elaboraram uma lista com quatro nomes para a Ciência e Tecnologia. Como a barganha ficou evidente, FHC sentiu que a reforma ministerial poderia descambar para o velho balcão fisiológico. Resolveu, então, deslocar o secretário de Políticas Regionais, Ovídio de Ângelis, para a Secretaria de Políticas Urbanas. O Ministério da Ciência e Tecnologia acabou nas mãos de Ronaldo Sardenberg depois que foi rejeitada por Celso Lafer. Magoado, Lafer não topou nenhum remanejamento. Até a terça-feira 13, induzido pelo próprio presidente, ele acreditava que permaneceria. "A melhor armadura é manter-se fora do alcance", desabafou, amargurado, com assessores.

Nem todos os amigos ficaram insatisfeitos. Os tucanos, especialmente os paulistas, consideram-se os grandes vitoriosos. Com a estratégia presidencial de preservar o espaço do PFL e escantear o PMDB, os tucanos praticamente acamparam no Palácio da Alvorada e ajudaram FHC a dar os retoques finais da reforma. Um exemplo de força foi dado por Serra, que conseguiu emplacar o pupilo Andrea Calabi na presidência do Bndes no lugar de Pio Borges. Com o cacife reforçado, os tucanos acreditam que deram uma tacada certeira na corrida para a sucessão presidencial. Para esses planos darem certo, vai ser preciso, porém, muito mais do que pitadas de vodu e candomblé. As mexidas na equipe terão que render tudo o que presidente prometeu no anúncio da reforma – mais empregos, juros menores e mais produção, sem afetar a estabilidade econômica.

 

Adeus ao negociador

É impossível narrar a história da redemocratização do Brasil sem tangenciar a trajetória política de André Franco Montoro. O deputado e ex-governador de São Paulo foi um dos principais protagonistas da abertura lenta e gradual. Ele morreu na madrugada da sexta-feira 16, aos 83 anos, vítima de um infarto do miocárdio, após 47 anos de vida pública. Montoro deixou um país que respira democracia, mas não conseguiu concretizar o ideal que perseguia nos últimos anos: construir um Brasil parlamentarista, sistema que vivenciou no início dos anos 60, quando foi ministro do Trabalho do Gabinete de Tancredo Neves. Na ocasião, Montoro, que em 1962 se elegera deputado federal pelo antigo Partido Democrata Cristão, reconheceu os sindicatos rurais e criou o salário-família, atitudes que ilustraram seu currículo até a última campanha, no ano passado, quando conquistou uma vaga de deputado federal pelo PSDB, partido que ajudou a fundar.

Ligado à Igreja Católica, Montoro começou a fazer política na Universidade de São Paulo, onde se formou em Direito. Em 1951, se elegeu vereador na capital. Renunciou após denunciar a compra de votos para a escolha do presidente da Casa. Tornou-se uma liderança nacional e passou a brigar pela redemocratização nos anos 70, quando senador pelo MDB. Apresentou uma emenda – rejeitada – que permitiria a eleição direta para governador e acabaria com os senadores biônicos. Fundou o MDB e depois o PMDB, partido que o conduziu ao governo paulista em 1982. Foi um dos líderes do movimento pelas diretas e depois das manifestações pró-Tancredo Neves. No início dos anos 90, dedicou-se à luta pelo parlamentarismo, derrotado em 1993. Na semana passada, quando embarcava para o México, Montoro sofreu o infarto. Foi levado ao Instituto do Coração em São Paulo, mas não resistiu a uma parada cardíaca e morreu no dia em que completou 83 anos. Seu corpo foi velado no Palácio dos Bandeirantes e sepultado no sábado 17. Deixou a mulher e sete filhos, só um deles com algum cacoete político: André Franco Montoro Filho, atual secretário de Planejamento do governo de São Paulo.

Mário Simas Filho