Era para ser uma história de heroísmo, daquelas que encantam por mostrar a força e a engenhosidade do ser humano em situações limite. Perdido depois de uma tentativa frustrada de cruzar, a pé, a Cordilheira dos Andes entre o Chile e a Argentina, Raúl Cincunegui, um uruguaio de 58 anos, resistiu a quatro meses de inverno rigoroso em uma das regiões mais inóspitas do planeta. Por sorte, encontrou, pouco depois de se desorientar, um rudimentar abrigo para montanhistas no oceano de neve andino e lá se refugiou, comendo o pouco de charque e frutas secas disponíveis. Quando a comida acabou, caçou ratos e corujas com armadilhas improvisadas e derreteu neve para matar a sede. Ao ser resgatado, no domingo 8, 113 dias depois de ser declarado oficialmente desaparecido, estava desnutrido, desidratado e pesando 20 quilos a menos. “Foi um milagre”, disse José Luis Gioja, governador da província de San Juan, um dos primeiros a falar com Cincunegui logo que o helicóptero que o resgatou pousou. “É até difícil acreditar que ele sobreviveu a tudo isso.”

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EM FAMÍLIA
Raúl Cincunegui acima ao ser resgatado e com a mulher, Teresa (segunda da esq. para a dir.),
e as duas filhas, Paula (esq.) e Patrícia (dir.), antes dos quatro meses nos Andes

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Mas o que teria levado Cincunegui, que trabalha como encanador, a cruzar os Andes a pé? Segundo a mulher e as duas filhas do resgatado, que moram com ele no Uruguai, ele partiu do país natal para uma viagem de moto pela América Latina em abril e, ao começar sua volta para casa, do Chile, em maio, o veículo quebrou, forçando-o a cruzar as cordilheiras a pé (leia quadro). Uma explicação que não faz muito sentido. Que homem de 58 anos e sem experiência em montanhismo ou equipamentos apropriados se lançaria, às vésperas do inverno, em uma trilha que cruza os Andes só porque sua moto quebrou? Não tardou para que a resposta surgisse e maculasse definitivamente essa bela história de sobrevivência. Um dia depois de ser resgatado e internado no hospital Guillermo Rawson, em San Juan, onde se recuperava, surgiu a informação de que Cincunegui era procurado no Chile por abuso sexual de um garoto de 8 anos, filho de uma irmã de sua mulher. A acusação formal, apresentada em 22 de abril pela juíza Patrícia Varas, do Quinto Juizado de Santiago, proibia Cincunegui de se aproximar da vítima e sair do país. “Ele sabia que não conseguiria sair do Chile senão de maneira ilícita”, diz Ingrid Massardo, governadora da cidade chilena de Petorca, a 20 quilômetros da fronteira com a Argentina. “Então ele veio até a nossa cidade, largou a moto, tirou as placas e seguiu para as cordilheiras.” Ingrid lembra ainda que a Yumbo 200 cilindradas do uruguaio não estava quebrada.

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Cincunegui, portanto, teria se perdido nos Andes porque fugia, desesperado, da acusação de abuso sexual de um garoto de 8 anos de idade. Embora tenha conseguido cruzar a fronteira do Chile com a Argentina – estima-se que ele tenha caminhado 70 quilômetros antes de encontrar o abrigo onde se instalou –, o simples fato de hoje estar em outro país não deve lhe trazer qualquer vantagem. Hospitalizado, seu quarto é guardado por nada menos que sete agentes da Polícia Federal argentina. Assim que receber alta, será levado a uma prisão, onde esperará, encarcerado, até 40 dias pelo pedido formal de extradição do Chile, que já está encaminhado. “Ele também é acusado de crime semelhante no Uruguai”, afirma Ingrid, governadora da cidade de Petorca. Enquanto isso, a mulher e as filhas do uruguaio insistem em dizer que ele é inocente. “São acusações antigas, que foram arquivadas”, disse Patrícia, uma das filhas, em um primeiro momento. “A acusadora tem problemas psiquiátricos”, argumentou outra filha, Paula, depois que as acusações foram confirmadas. Provar a inocência de Cincunegui pode ser tão ou mais difícil que sobreviver a 113 dias sem água e comida nos Andes.  

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