Fotos: Alex Silva/AE; Fernando Quevedo/Ag. O Globo; José Patrício/AE; Ernesto Rodrigues/AE; Cristina Horta/Estado de Minas/Ag. O Globo

O DIA DA VERGONHA Enquanto Lula voava tranqüilamente para os EUA, passageiros desesperavam-se com atrasos e cancelamentos

A sexta-feira 30 de março foi um dia especialmente ilustrativo para o Brasil. Do alto das torres de comando dos aeroportos, os controladores de vôo iniciavam mais uma greve. Foram horas de caos, de impaciência e de desrespeito com os passageiros. Era a exacerbação de uma rotina que se repete há seis meses, desde que o movimento dos controladores começou e o País descobriu que há problemas para se resolver com essa categoria essencial. O que tornou aquela sexta-feira diferente e especialmente mais grave foi a sensação de vazio absoluto nas esferas do poder central. Onde estavam as autoridades federais que são pagas para resolver tal problema? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava no ar. Seu vôo para os Estados Unidos para um rápido encontro com o presidente George W. Bush não atrasou. A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, estava em Porto Alegre. Descansava em sua residência. O ministro da Defesa, Waldir Pires, estava no Rio de Janeiro. Fora à festa de Bodas de Ouro de um amigo e, com planos de emendar o fim de semana, dispensara o jatinho da Força Aérea que o transportara. E onde estavam os diretores da Infraero e da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, principais responsáveis pela ordem nos aeroportos? Estavam todos em Salvador. Brindavam com champanhe o casamento de Duda, filha de Leur Lomanto, diretor da Anac. Na festa, enquanto o caos instalava-se nos aeroportos, Denise Abreu, outra diretora da agência, degustava charutos.

Quando o caos aéreo se iniciou, a primeira das altas autoridades da República acima mencionadas, o presidente Lula, determinou às demais – cada uma delas – que formassem um gabinete de crise para prever os problemas e encontrar rapidamente uma solução. Exigiu uma resposta em outubro. Outra em novembro. Mais uma em dezembro. Foi lançando ultimatos vazios a cada mês de caos. O que aconteceu na sexta-feira demonstra que o tal gabinete da crise estava a quilômetros – literalmente – de poder cumprir o que fora determinado por Lula. Nenhum dos seus integrantes foi capaz de prever a possibilidade de um problema que qualquer cidadão medianamente informado em Brasília já sabia: que os controladores de vôo, há muito dispostos a radicalizar, ensaiavam uma nova paralisação. Eles mandaram recados de que iriam parar o Brasil na Semana Santa, mas que planejavam promover um ensaio antes. O que se verificou em seguida revelou que nenhum deles também se mostrava perto de fazer um diagnóstico correto e encontrar um caminho para solucionar a crise. Coube a um ministro desavisado, Paulo Bernardo, do Planejamento, que por acaso resolvera ficar em Brasília no fim de semana, a tarefa de ir negociar com os controladores em nome do presidente. Para, dois dias depois, ser desautorizado pelo próprio Lula em tudo o que acertou e negociou.

André Dusek/AE

COADJUVANTE Longe da crise, Waldir Pires participava
de festa no Rio

Enquanto as autoridades festejavam ou descansavam, vôos eram cancelados em todo o País. Nos aeroportos, cidadãos forravam o chão com jornais e caixotes para dormir e se proteger do frio, como se fossem mendigos. No sábado 31, Luiz Mosca, 54 anos, morria de infarto no aeroporto de Curitiba. Ele esperava havia 12 horas por um vôo para Porto Alegre. A aviação comercial é uma atividade estratégica. Embora seja explorada por empresas privadas, é do governo o controle dos aeroportos e do tráfego aéreo. O que se deve dizer de um governo que submete seus cidadãos a tal situação de descontrole e desgoverno? O que dizer de um governo que assiste sem esboçar reação a um problema se agravar dessa forma? O que dizer de um governo que, por sua inépcia e indecisão, submete um de seus cidadãos à morte? Não há outra coisa a dizer: estamos diante de um governo que não governa. Ao ver todos aqueles que deveriam estar em Brasília cuidando da crise fora da capital cuidando das suas próprias vidas, o historiador Marco Antônio Villa escreveu, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo na quarta-feira 4: “O que existe é uma espécie de realidade virtual, de Second Life.” Villa referia-se a um jogo na internet em que as pessoas vivem uma segunda vida paralela nos computadores, que nada tem a ver com a realidade de fato. Algo como a festa da corte de Lula diante do caos brasileiro. “Nós temos uma república sindicalista no Brasil, no pior sentido da palavra”, continua Villa. Para ele, Lula tem uma grande dificuldade de compreender o mundo pela ótica mais complexa da política, com todas as suas nuances.

Dida Sampaio/AE

BAFORADAS Longe da crise, diretora da Anac fumava charutos

Por isso, mandou Paulo Bernardo negociar com os controladores sem refletir que os militares encarariam isso como uma quebra de hierarquia, como um aval oficial a um motim, a uma insubordinação. Depois, ao perceber o tamanho da reação que viria do meio militar, Lula recuou. Agora, sem refletir sobre o fato de que rompia compromissos que firmara com os controladores sem ter na manga uma alternativa. Os controladores exercem uma atividade estratégica. Para prendê-los ou demiti-los, Lula teria que substituí-los imediatamente. Há como fazer isso? Não! Desde o governo Fernando Henrique, as verbas das Forças Armadas são represadas. Os equipamentos de controle dos vôos estão sucateados – e, desde que José Viegas era ministro da Defesa, relatórios de alerta vêm chegando ao Palácio do Planalto. Não se liberou dinheiro para contratar novos controladores e eles (como todos os demais militares, diga-se) vêm trabalhando no limite, com salários achatados. No primeiro trimestre de 2007, segundo o site Contas Abertas, o governo pagou apenas 17,2% (R$ 94,4 milhões) do orçamento do controle de vôo. No ano passado, foi ainda pior: de uma dotação inicial de R$ 531,7 milhões, foram efetivamente gastos apenas R$ 67,3 milhões. Um dia, há seis meses atrás, eles descobriram que têm poder de pressão. E como continuam tendo, na quarta-feira 4 já organizavam uma nova paralisação. O dia em que o novo motim poderá acontecer é mantido sob absoluto sigilo pelos líderes do movimento. Será que o governo e seu gabinete de crise serão surpreendidos novamente?

André Dusek/AE -  Joédson Alves -  José Cordeiro/AE  -  Givaldo Barbosa/Ag. O Globo

CAOS SEM FIM O presidente da Infraero, brigadeiro J. Carlos (acima, à dir.) diz que a solução para o
problema leva tempo. Nos aeroportos, mortee espera em condições desumanas

O que torna tudo mais difícil são esses avanços e recuos de Lula na administração – ou falta de – do problema. Um sinal claro da falta de diagnóstico preciso sobre ele. A história costuma pintar o ex-presidente João Goulart também como um presidente hesitante, sem grandes convicções sobre que rumo deveria dar ao País. No dia 30 de abril de 1964, por exemplo, Jango estava em dúvida sobre se deveria ou não aceitar o convite para participar de uma festa da Associação dos Subtenentes e Sargentos, no Automóvel Club do Rio de Janeiro. Os sargentos vinham organizando levantes e protestos em que reivindicavam o direito de votar e ser eleitos para cargos políticos. Os oficiais classificavam tais levantes como atos de insubordinação. Jango temia a reação dos militares à sua presença naquela festa. Para animá-lo, seu amigo Samuel Weiner deu-lhe um comprimido de estimulante, uma “bolinha”, como chamava. Que Jango misturou com uma dose de uísque. Sob o efeito dessa mistura, o ex-presidente produziu o mais violento discurso da sua vida. No dia seguinte, os militares saíram inicialmente de Minas Gerais para depô-lo e dar início a uma ditadura que durou 21 anos. Não consta que Lula estivesse agora sob efeito de estimulantes. Nem existe o mesmo clima de levante militar que se ensaiava naquela época pelo menos desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Mas Lula ficou muito perto de ver os militares, na melhor das hipóteses, mandarem ele cuidar da própria vida.