Biô Barreira

Agentes asseguram que o grupo participava do tráfico de
drogas e apontam que entre eles está o atual secretário
da PF no Amazonas

Os choques elétricos no corpo nu fazem o comerciário Adilson Miranda Martins soltar gritos de pavor. Na pequena sala da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal em Campo Grande (MS), vários agentes e delegados assistem à tortura como a um show de sadismo. Adilson já tinha sofrido dezenas de golpes de palmatória nas mãos e na sola dos pés. Com os choques, os gritos se tornam mais fortes e os policiais amordaçam a vítima. Choques no genital, na boca, no peito e por todo o corpo de “Xerife”, o apelido de Adilson. Em poucos segundos o rapaz pára de se debater. Os policiais jogam água fria em seu rosto e não observam nenhuma reação. Adilson Martins acaba de morrer. Era uma tarde calorenta de 20 de agosto de 1989 e o corpo do rapaz de 20 anos de idade foi levado para a Santa Casa. Lá, um médico escreveu no boletim que o corpo foi entregue “pela Polícia Federal, sendo que os mesmos se negaram a dar informações sobre a ‘cituação’ do paciente”. Um laudo do IML descreveu em cinco páginas dezenas de lesões no corpo. Um crime hediondo e ninguém jamais foi punido. Na época, até o então presidente Fernando Collor foi informado sobre o ocorrido na superintendência da PF, mas muito pouco foi feito. E, pior: até hoje, alguns policiais que mataram covardemente o rapaz continuam nos quadros da Polícia Federal, um deles em cargo de comando.

Adilson foi vítima de um esquadrão da morte que agia no interior da Polícia Federal e cuja existência é tratada como “segredo de Justiça”. Muitas das vítimas são testemunhas que tentavam denunciar os crimes cometidos pela quadrilha. A ex-presidente da OAB em Mato Grosso do Sul Elenice Carille foi procurada por policiais dispostos a denunciar a barbárie. Um deles, José Júlio Pereira, se dizia ameaçado dentro da PF e foi assassinado antes de depor oficialmente. “Houve omissão da polícia e meu sentimento é de impotência diante de tanta impunidade”, lamenta. A advogada só ficou sabendo no ano passado que o inquérito que deveria investigar a tortura na verdade investigou o morto e o acusou de ser traficante. Mas, com a descoberta do conteúdo de processos e inquéritos que estavam sob segredo de Justiça, os ex-policiais federais Belton Gomes da Silva Filho, Valdemir Lopes Praseres e Luiz José da Conceição voltam agora ao Ministério Público Federal para prestar novos depoimentos. Eles dizem que foram afastados e punidos por tentar denunciar, na época, os crimes pelo esquadrão da morte da Polícia Federal. Luiz José é hoje policial rodoviário, Belton é advogado e Praseres está aposentado. Em 1993, Praseres amargou 15 meses de prisão, em flagrante comprovadamente forjado dentro da PF. Conceição também foi vítima de flagrante criminoso.

Roberto Castro

O ACUSADOR Belton foi ao Ministério Público e apontou os
policiais que participam da quadrilha

Além dos flagrantes forjados para prender Praseres e Conceição, o agente Belton atribui à quadrilha da PF vários outros crimes. O agente credita à quadrilha a morte do delegado Nivaldo Cavalheiro, em 1989, na época encarregado do serviço disciplinar. Ele diz ainda que o grupo teria envolvimento nos assassinatos do traficante Davi Cardoso, em 1988, e do dono da Boate Gê, em 1989, além do assassinato do agente José Júlio Pereira. “Ele ia prestar depoimento aos juízes federais e procuradores e um dia antes meteram oito balas nele”, lembra Belton. Outro assassinato que Belton atribui à quadrilha é o do delegado federal Luiz de Oliveira Santos, em 1994, no Ceará, morto após fazer um processo administrativo de expulsão que apuraria denúncias contra o esquadrão. “Faltam três anos para alguns crimes prescreverem e temos de colocar estes policiais na cadeia”, revolta-se Belton. Com base nos depoimentos e na documentação disponível em diversos processos, é possível listar alguns dos envolvidos no esquadrão:

Agente João Rogério Silveira D’Ávila – O organograma da PF mostra que ele é chefe do Serviço Regional Oeste da Coordenação de Segurança Privada. O policial José Luiz da Conceição conta que João Rogério foi o principal responsável pelo espancamento e pelos choques elétricos que mataram Adilson. João Rogério nega envolvimento na tortura. “Na época eu levei o rapaz para o hospital. Eu fui um dos que o socorreram.”

Clóvis Miranda/acrotica

O ACUSADO Delegado José Renan comanda a PF no
Amazonas e é citado como responsável por abafar investigações

Agente Valdir Arno – Em 1989, ele foi apontado como uma das pessoas que entraram na sala da tortura para “arrumar as coisas” e depois acompanharam a diligência na casa do comerciário Adilson. A quadrilha teria colocado a droga na casa de Adilson. Arno está trabalhando em Mato Grosso do Sul. Ele nega participação em qualquer tipo de tortura ou assassinato, dentro ou fora da PF. “Nunca vi esse Adilson na vida”, garante.

Delegado José Renan Ribeiro – Atual superintendente da PF no Amazonas, o delegado José Renan era chefe de vários policiais que participaram da tortura em 1989, quando Adilson foi morto. Ele presidiu o inquérito que deveria investigar a tortura, mas acabou divagando sobre o possível indiciamento de um morto. O delegado nega envolvimento com os crimes atribuídos a ele: “Não tive nada com isso”, garante.

Agente Alexandre Simões de Luna – O agente Luiz José da Conceição acusou Luna de ajudar a esconder os indícios da tortura sofrida por Adilson. Belton diz que Luna participou da quadrilha que traficou e matou no Estado. O agente Cícero Barbosa diz ter visto Luna tentando “plantar” droga nas residências de Praseres e Conceição e ainda de sumir com 30 quilos de cocaína. O agente Jeoval Teixeira diz ter visto Luna tirar um envelope com um quilo de cocaína para armar um flagrante. Um levantamento feito em 2002 pelo Ministério Público mostrou que em 1995 o policial Luna movimentou R$ 223 mil sem justificar a origem do dinheiro. “Isso tudo é brincadeira!”, ironiza Luna. Quanto ao patrimônio, o agente afirma que é dinheiro da família.

Agente Sérgio Luiz Macedo – O policial José Luiz da Conceição diz que o agente Sérgio Luiz, com o uso de fios elétricos, “auxiliou” João Rogério a torturar até a morte o comerciário Adilson. Belton e Praseres também incluíram o nome de Sérgio Luiz nos respectivos depoimentos. Sérgio Luiz está trabalhando na PF em Belo Horizonte. ISTOÉ deixou recado na PF de Minas, no ramal da sala atribuída ao local de trabalho dele, mas o agente Sérgio não retornou o telefonema.

Na semana passada, o Ministério Público Federal no Ceará pediu à PF proteção de vida para Belton. Ele diz ter sido alvo de 30 inquéritos na PF e de 11 ações por denunciação caluniosa, das quais já se livrou de nove. Belton diz que só está vivo graças à interferência do então deputado e hoje presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, com quem teve um encontro em 1990. Segundo o policial, Lula chamou um assessor e disse: “Conduza este agente à Comissão de Direitos Humanos.” Com um parecer da comissão em mãos, Belton conseguiu proteção policial na década de 90. Em 1994, os depoimentos de Belton levaram ao afastamento do superintendente da PF em Mato Grosso do Sul, Roberto Alves. Belton diz ter recebido várias ameaças de morte e teve de fugir de Mato Grosso do Sul. A família do comerciário Adilson pediu R$ 1 milhão de indenização por danos morais. Em 2004, a Justiça Federal reconheceu que o rapaz foi morto dentro da PF e concedeu indenização de R$ 36 mil a seu pai. Os irmãos da vítima receberam R$ 18 mil. A família ganhou mais R$ 1 mil para comprar um jazigo e enterrar o corpo de Adilson, destruído pelas torturas.