Informações fornecidas pelo desertor da CIA Edward Joseph Snowden tiraram da penumbra um esquema de espionagem que chegou ao gabinete da presidenta Dilma Rousseff, envolveu atos secretos de governo e decisões consideradas – até então – de caráter confidencial. Até mensagens do celular da presidenta foram monitoradas. Investigações preliminares dos serviços de informação do governo brasileiro levantaram a convicção,  na semana passada, de atos ainda mais graves. Suspeita-se de que, através dos tentáculos eletrônicos da National Security Agency (NSA), o governo americano não só grampeou e-mails e telefonemas, mas pode ter sido capaz de gravar reuniões e conversas entre Dilma e seus ministros no Planalto, o que caracteriza um esforço ainda mais agressivo contra a soberania de um povo e seu governo. Outro aspecto é que, buscando informações disponíveis pela internet, quebrando várias barreiras de sigilo e dados criptografados, a máquina da NSA obtém acesso a diversos dados privados da presidenta. Pode inclusive ter obtido informações confidenciais sobre sua saúde, atingida por um câncer nos vasos linfáticos, tratado e inteiramente curado em 2010.

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BISBILHOTAGEM OFICIAL
Por meio da National Security Agency (NSA), o governo americano não
só grampeou e-mails e telefonemas como pode ter gravado reuniões
e conversas entre Dilma e seus ministros no Planalto

Com repercussão nos jornais do mundo inteiro, a descoberta retira um novo véu de encanto que ainda persistia em relação à presidência de Barack Obama. Eleito em 2008 com a promessa de renovar a política externa de Washington, com uma postura de tolerância e convívio pacífico entre as nações, no início do governo,  Obama tornou-se o único ser humano agraciado com um Prêmio Nobel da Paz de caráter preventivo, sem que nada tivesse feito, antes ou depois, para justificar tamanha consideração. Iniciando o segundo mandato, fez tudo ao contrário do que havia prometido. Hoje, comanda um Estado em que o poder militar é cada vez maior, no qual a máquina das diversas agências do serviço secreto mobiliza 100 mil pessoas por ano e consome um orçamento de U$S 50 bilhões.  “Acho muito complicado saber essas coisas pelos jornais. Eu quero saber o que há. Se tem ou se não tem. Quero saber tudo o que tem,” esbravejou Dilma, em São Petersburgo, no final de uma reunião do G-20, quando manteve uma conversa de 20 minutos com o presidente dos Estados Unidos. “Obama assumiu a responsabilidade direta e pessoal tanto para a apuração das denúncias quanto para oferecer medidas que o governo brasileiro considerasse necessárias”, afirmou a presidenta. Ao mencionar o tema, no entanto, Obama foi mais lacônico. Empregando o tom de quem não estava a par do que a presidenta lhe dissera, afirmou: “Disse a Dilma que vou dar uma olhada nas alegações e ver o que está acontecendo”, resumiu.

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Inaceitáveis, do ponto de vista diplomático, as operações de espionagem também ajudaram a produzir um desastre do ponto de vista político. Os documentos  confirmam que, ao contrário de tantas proclamações oficiais de Washington, o Brasil é um alvo prioritário para a atuação clandestina do serviço secreto numa posição semelhante, apenas, a países como a China, a Rússia, o Irã e o Paquistão. A diferença é que nenhum deles recebe flores da Casa Branca e do Departamento de Estado com tanta frequência. Ao colocar o Brasil ao lado de companhias tão pouco confiáveis, do seu ponto de vista,  a Casa Branca escancarou uma diplomacia de jogo duplo, o que é especialmente constrangedor para Dilma. Sucessora de Lula, um presidente que fez do antiamericanismo um traço permanente de seu segundo mandato, Dilma tomou posse com a disposição de reconstruir a conversa com Washington. Uma das razões para a escolha de Antonio Patriota para ocupar a chancelaria, na qual ficou até a fuga do senador boliviano Roger Molina, eram seus contatos especialmente próximos de Hillary Clinton, chefe do Departamento de Estado. O que se vê agora pode ser considerado, além de um inequívoco atentado à soberania, uma traição.    

Para atear ainda mais lenha a essa fogueira, os segredos mais recentes da espionagem de Washington foram revelados dois meses antes da data marcada para uma visita de Estado de Dilma a Washington, em que a presidenta teria direito a tantas honrarias e festejos que até diplomatas mais experimentados com a tonalidade furtiva das relações entre a primeira potência mundial e os outros países logo farejaram que havia, obviamente, algo de errado em tudo aquilo. Só não se poderia supor que seria algo tão errado, a ponto de o Planalto cogitar, seriamente, a possibilidade de cancelar a visita como um ato de repúdio à espionagem, hipótese que teve aliados e adversários no governo, que na semana passada examinavam prós e contras de uma medida drástica, mas, em algumas circunstâncias, indispensável. Num sinal de que a proposta  entrou na lista de reações possíveis, Brasília cancelou uma missão precursora, destinada a fazer levantamento de locais e instituições que seriam visitados pela presidenta.  Mais do que uma medida definitiva, pois pode-se enviar outra missão a qualquer momento, caso a visita se torne menos vergonhosa  do que parecia nos dias seguintes às denúncias, era um aviso direto a Washington de que, por enquanto, os preparativos para a viagem foram suspensos.

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Uma das principais dificuldades para uma reaproximação amistosa e menos constrangedora reside na postura americana, que não costuma oferecer nem sequer uma oportunidade para as autoridades atingidas sentirem-se reconfortadas por pedidos de desculpas, mesmo fingidos, e explicações com um mínimo de consistência.  Ao comparar as primeiras revelações sobre a espionagem americana, mais leves e suaves, mas já preocupantes, divulgadas em 5 de julho, e as descobertas da semana passada, constatou-se um agravante. Chamado a dar explicações pelo Itamaraty, o embaixador Thomas Shannon assegurou, na época, que o trabalho se resumia aos chamados “metadados.” Assim, a NSA apenas faria o monitoramento de quem se comunicava com quem – mas não penetrava no conteúdo das conversas. Era mentira, comprovou-se na semana passada. Outras solicitações formais do governo brasileiro, como ter conhecimento, preciso das informações capturadas de modo ilegal, que permitiriam ao menos se ter uma noção do prejuízo sofrido,  sequer foram respondidas.

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Essa postura também foi experimentada pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, encarregado pela presidenta Dilma Rousseff de conduzir negociações na tentativa de definir um acordo de reciprocidade para assegurar um mínimo de controle sobre a atuação da máquina de espionagem. Há 15 dias, quando tudo o que se sabia eram as denúncias preliminares de Snowden, Cardozo foi enviado a Washington para negociar um acordo bilateral. Em encontros com o secretario de Justiça, Erick Holder, e com o vice-presidente, Joe Biden, o ministro apresentou uma proposta que Brasília considerava aceitável para as duas partes. O Brasil não faria oposição a grampos  realizados no País, desde que eles se limitassem a investigação de atos ilícitos, de qualquer natureza, e tivessem autorização da Justiça brasileira. Em contrapartida, o governo Dilma Rousseff  pedia reciprocidade: caso o governo brasileiro quisesse monitorar grampos nos Estados Unidos, também poderia fazê-lo, desde que tivesse autorização judicial. “A ideia foi descartada sem explicações ou argumentos”, recorda Cardozo, que desembarcou de volta ao Brasil na sexta-feira 31 de agosto e, poucas horas depois, tomou conhecimento do novo pacote de denúncias. “Eles poderiam ter pedido tempo para analisar, mesmo que nunca dessem uma resposta. Seria uma demonstração de consideração pelo nosso ponto de vista. Nem isso”, disse o ministro.

Como se aprende nos bons filmes de agente secreto, a espionagem nunca é somente um serviço de cidadãos intrépidos e corajosos, mas também reflete determinado ambiente político. Com o auxílio do então ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, em seu primeiro mandato Lula estabeleceu relações especialmente proveitosas com o presidente George W. Bush. Criados em escolas políticas opostas, os dois se entenderam em torno de assuntos de interesse comum e isso envolveu operações secretas. Obcecado pelo combate ao terrorismo, Bush não enfrentou oposição do governo brasileiro para investigar denúncias, não comprovadas, de que comerciantes estabelecidos na região da Tríplice Fronteira providenciavam serviços de lavagem de dinheiro para o terrorismo islâmico. Em contrapartida, quando se encontrou, no Banestado, indícios de corrupção e lavagem de dinheiro, uma equipe da Polícia Federal pôde estabelecer-se por três meses em Nova York e, com o auxílio do FBI, fazer um exame completo em contas suspeitas, operação que abasteceu os melhores documentos da célebre “CPI do Banestado.”

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DESPISTE
No início do ano, o embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon,
mentiu ao assegurar que o seu país não monitorava o conteúdo de conversas

Num mundo onde a potência americana não possui rivais nem desafiantes, não há quem ouse peitar Washington de forma direta nem permanente. Vários países da Europa ocidental saíram  da Guerra Fria como um braço auxiliar e subalterno dos Estados Unidos, a começar pela Inglaterra. Mesmo a França, que tem periódicos momentos nacionalistas, mostra-se cada vez mais incluída na mesma esfera de influência. Trata-se, na verdade, de uma força acumulada pelo Estado americano em comunhão com grandes corporações privadas que lideram, sem rivalidade, as principais inovações tecnológicas do planeta.  Fornecedoras habituais de informações para o governo dos Estados Unidos, que pagam boas recompensas pela mercadoria recebida, elas recebem, em troca, informações sensíveis para investimentos e áreas de interesse. Um dos principais estudiosos dessa situação, o professor Carlos Alberto Muniz  Bandeira recorda que a intervenção da inteligência dos Estados Unidos teve um papel decisivo para assegurar a vitória da Raytheon na montagem do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), em 1994, numa disputa bilionária com um consórcio francês que incluiu vários grampos telefônicos e um pedido direto do então presidente, Bill Clinton, ao presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso.

É nesse ambiente de segredos múltiplos que o governo examina a imensa camada de interesses envolvidos na questão. A própria Dilma está convencida de que, do ponto de vista comercial, os investimentos no pré-sal podem motivar uma ação desse porte em espionagem. Parece claro que, ao espionar diretamente a presidenta, o serviço secreto também quer acompanhar seus passos e decisões muito de perto. Mas há outra pergunta que se faz no governo: quem se beneficia com uma denúncia que, em última análise, prejudica uma política de aproximação, com avanços, recuos e tantas desconfianças, entre os governos dos dois países? Os suspeitos principais de Brasília são dois. Em sua visão, China e Rússia, nesta ordem, poderiam ter interesse em envenenar essa convivência.

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 Colaborou: Josie Jeronimo