O secretário Antidrogas, Wálter Maierovitch, briga com a PF, a Embaixada dos EUA e a DEA para mudar a política de combate ao narcotráfico

Jeitão formal, voz mansa, o juiz paulista aposentado Wálter Maierovitch, 52 anos, não faz o tipo de quem gosta de se enfiar em polêmicas. A aparência engana. Além da ascendência polonesa, ele carrega sangue e sobrenome do Sul da Itália – Fanganiello –, e trilhou uma carreira em que se acostumou a enfrentar várias paradas duras. Como juiz da área criminal, participou das operações de prisão de chefões mafiosos que buscaram esconderijo no Brasil. Sua colaboração na luta antimáfia, ao lado de juízes como Giovanni Falcone e Paolo Borselino, mortos em atentados, rendeu-lhe uma condecoração do governo da Itália – a primeira dada a um magistrado não-italiano – e um profundo conhecimento das engrenagens de funcionamento das organizações criminosas, principalmente dos seus esquemas de lavagem de dinheiro. Desde novembro do ano passado, o juiz está de novo no centro de uma briga explosiva. Ao estruturar a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), Maierovitch tornou-se um dos principais motivos da queda-de-braço entre o chefe da Casa Militar da Presidência, general Alberto Cardoso, e a Polícia Federal. Nestes sete meses no cargo, o juiz meteu a mão em vários vespeiros. Ao querer disciplinar o trânsito no País dos agentes da Drug Enforcement Administration (DEA), o órgão do governo americano de combate ao narcotráfico, acabou batendo de frente com a Embaixada dos EUA em Brasília. Maierovitch só anda com seguranças e uma de suas primeiras providências foi abrir mão do sigilo bancário, fiscal e telefônico. Apesar de caminhar nesse campo minado, o juiz conta com o respaldo do presidente Fernando Henrique Cardoso e do general Cardoso para levar adiante a sua estratégia de combate aos grandes barões das drogas. "Sou soldado fiel do presidente e vou bater de frente com quem se opuser à política que ele traçou", disse o secretário nesta entrevista a ISTOÉ, concedida na sala do anexo do Palácio do Planalto, onde pode ser encontrado das segundas às sextas-feiras entre as 9h e as 23h.

ISTOÉ – Por que a Polícia Federal resiste tanto ao trabalho que o sr. vem fazendo na Secretaria Nacional Antidrogas?
Wálter Maierovitch

Não é a Polícia Federal, como instituição, que resiste ao trabalho da secretaria. É uma parte da corporação. Esses grupos também não estão brigando contra mim, mas contra uma idéia do presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi o responsável pela criação da Senad. Fui escolhido como alvo porque sou um soldado leal às idéias do presidente e brigo com quem aparecer na frente.
 

ISTOÉ – Quais são esses grupos da Polícia Federal a que o sr. se refere? O sr. poderia ser mais específico?
Wálter Maierovitch

 Em novembro do ano passado, o então diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, deu uma entrevista à imprensa em que disse que não concordava com as idéias do presidente da República sobre a política nacional antidrogas. Reagi em termos elevados, mas desde então passei a enfrentar problemas com a PF. Outro porta-voz desse grupo é o deputado Moroni Torgan (tucano do Ceará, delegado da Polícia Federal). Em todas as sessões da CPI do Narcotráfico, ele bate na tecla de que a PF não precisa de um órgão de coordenação das atividades de repressão ao tráfico de drogas. É uma visão antiquada que está em absoluto contraste com a tendência mundial.
 

ISTOÉ – Mas não há uma sobreposição das atividades da secretaria e da Polícia Federal?
Wálter Maierovitch

 Eles acham que a secretaria é uma delegacia de polícia e nós vamos ficar fazendo operações de batida em morros. Não há nada disso. A atividade de polícia judiciária – descobrir a existência do crime e seus autores – é uma tarefa da Polícia Federal, que continuará a ser o braço operacional do combate às drogas. Mas é preciso uma coordenação porque o tráfico de drogas tornou-se um fenômeno transnacional, que movimenta de 3% a 5% do PIB planetário e não respeita fronteiras. A partir do momento que as organizações do tráfico fizeram do Brasil um mercado e um corredor de passagem das drogas, essa se tornou uma questão de preservação do Estado democrático de direito e de defesa dos direitos e garantias individuais. Essas organizações delinquentes, nas grandes cidades brasileiras, impõem a lei do silêncio, tarefas sem vínculo empregatício e justiçamentos. Por isso, há necessidade de uma secretaria ao lado do presidente da República que centralize a repressão, a prevenção e o tratamento de drogas. Será que isso é difícil de entender ou existe má-fé?
 

ISTOÉ – O sr. acha que há má-fé nesses grupos da PF?
Wálter Maierovitch

Eu precisaria entrar na cabeça deles para responder a essa pergunta. Desenvolvo trabalhos na área social e não enfrento nenhum problema, por exemplo, com os Ministérios da Saúde, Educação e Cultura. O que me causa a maior estranheza nesse pequeno segmento da Polícia Federal é que eles estão resistindo a um princípio do Direito Administrativo que estabelece que existe a autoridade e o agente da autoridade. Quem age em nome da autoridade tem de cumprir as idéias e as determinações da autoridade. E a vontade do presidente da República está expressa num decreto que foi apresentado às Nações Unidas. Junto com 152 países, o Brasil assumiu um compromisso internacional que diz que todos os países devem ser responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas. Não gostaria de dizer que há má-fé, mas muita gente está se aproveitando dessa divergência.

ISTOÉ – Quem está se aproveitando?
Wálter Maierovitch

 Quando eu vim para a secretaria, uma das coisas que eu ressaltei foi a importância de mudar o enfoque da política antidrogas, que estava concentrada na figura do pequeno traficante varejista. Nós temos de passar a combater a economia do crime organizado, controlando, por exemplo, a lavagem do dinheiro. Quando se diz que o secretário Antidrogas não faz nada, quem sai ganhando são os narcotraficantes e os grandes capitalistas das drogas.
 

ISTOÉ – O que sr. espera do novo diretor-geral da Polícia Federal, João Batista Campelo? O sr. espera que ele fique no cargo? .
Wálter Maierovitch

 Pela consideração que eu tenho ao presidente da República, que resolveu fazer uma nomeação técnica, acho que é um nome que merece todo o respeito. Se ele entender que a secretaria está aqui para ajudar, vamos juntos desfraldar a bandeira da sinergia

ISTOÉ – A Polícia Federal recebe muito dinheiro americano via DEA. Quais são os termos para o Brasil aceitar dinheiro do governo dos Estados Unidos?
Wálter Maierovitch

 Não se combate crime transnacional sem cooperação internacional. Mas cooperação é uma coisa: é a ajuda aberta, transparente, que a imprensa pode ver e fiscalizar, para o enfrentamento de um cancro planetário que tem metástases no mundo inteiro. Cooptação é outra coisa bem diferente, com a qual nós não concordaremos jamais.
 

ISTOÉ – O que o sr. considera tentativa de cooptação? É a atuação de agentes da CIA e da DEA em território brasileiro com a colaboração da Polícia Federal?
Wálter Maierovitch

 Não autorizei nenhum agente estrangeiro a ter liberdade de atuação em território nacional. Quando fui consultado pelo Ministério da Aeronáutica, desautorizei o desembarque em Cruzeiro do Sul (AC) de um avião com agentes da DEA e policiais peruanos. Não adianta o encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos (James Derham) ficar abespinhado, porque eu enfrento mesmo. Autorização para agentes de outros países atuar no Brasil só quem dá é a Secretaria Nacional Antidrogas. Quem quiser ajudar na repressão vai ter de vir aqui.
 

ISTOÉ – A colaboração da Polícia Federal com a DEA é conhecida, maciça e rende muito dinheiro para o órgão. Eles prestam contas para o sr. dessa parceria?
Wálter Maierovitch

 Não prestam e já tomei providências para que prestem. Mandei ao Ministério das Relações Exteriores e à Polícia Federal um ofício para o disciplinamento da atuação desses agentes estrangeiros, porque não vai haver ninguém andando pelo território nacional sem a autorização da secretaria e sem saber para quê. A propósito, devo dizer que os agentes europeus dão toda satisfação à secretaria sobre a sua atuação. Não temos problemas com os ingleses, os italianos ou os espanhóis.

ISTOÉ – O problema então é só com os americanos?
Wálter Maierovitch

Eu tenho um excelente relacionamento com o general Barry McCaffrey, que é o principal assessor do presidente Bill Clinton na área das drogas e tem uma visão a favor da cooperação e não da cooptação. Isso significa que também não há unidade entre os americanos. Todo esse problema não é em decorrência de uma orientação do governo americano, mas de quem responde pela embaixada aqui no Brasil.
 

ISTOÉ – Qual é o problema com o encarregado de negócios da Embaixada dos EUA?
Wálter Maierovitch

 Ele é um sujeito sem educação e foi desrespeitoso ao Brasil. Não quero entrar em detalhes sobre isso, mas preparei um relatório reservado ao ministro das Relações Exteriores em que explico os fatos por que cheguei a essa conclusão.
 

ISTOÉ – O narcotráfico usava o Brasil, principalmente, como rota de passagem para a exportação à Europa e aos Estados Unidos das drogas produzidas em outros países da América do Sul. Isso mudou?
Wálter Maierovitch

 Hoje, nós somos também produtores de insumos que são utilizados no refino da droga. A pasta básica da cocaína que está sendo produzida no Peru e na Bolívia está sendo constituída com cimento, uréia e querosene que estão sendo exportados do Brasil sem fiscalização. Nas nossas regiões de fronteira na Amazônia, você vê um enorme trânsito de cimento pelos rios como se no meio da selva estivessem sendo construídos prédios ou estradas.
 

ISTOÉ – Como se combate esse tipo de contrabando?
Wálter Maierovitch

 Estamos aumentando a lista de produtos controlados para exportação para esses países. Temos de caminhar também para produzir o DNA das drogas com o objetivo de saber que tipo de droga está sendo consumida no País. Hoje, o Brasil não tem estatísticas adequadas em relação às drogas apreendidas. Elas levam em conta só o peso e não são acompanhadas de laudos químicos e toxicológicos que revelam o grau de pureza e os insumos utilizados no refino da droga. Isso é muito importante para preparar a rede de saúde pública. Por causa da ingestão de resíduos de cimento, já foi constatado na Holanda, entre os viciados em drogas, o aumento das doenças do pulmão e das vias respiratórias.

ISTOÉ – O sr. é a favor da descriminação do uso da maconha?
Wálter Maierovitch

 Está provado cientificamente que a maconha causa danos. Sou contra a legalização de qualquer coisa que cause dano psicológico, físico ou social. Mas sou absolutamente favorável ao resgaste da dignidade do tóxico-dependente, que não pode ser visto como um pária e ficar à mercê de golpistas. Droga virou um grande negócio não só para o narcotraficante. Hoje, há uma dupla que está infestando o Brasil. Ela é formada por alguém que se rotula de ex-dependente e se associa a falsos pastores, que se dizem conhecedores da palavra divina. Eles estão atendendo, sem o devido preparo, doentes desesperados. Por isso, a secretaria convocou especialistas para se debruçarem na elaboração de um código que imponha regras mínimas ao funcionamento das clínicas de tratamento de dependentes.
 

ISTOÉ – Qual é a opinião do sr. sobre os programas de tratamento de viciados com distribuição de drogas?
Wálter Maierovitch

Sou a favor dos programas de redução de danos, como os que existem em vários países da Europa. Na Suíça, por exemplo, empregam a metadona, um opiáceo que vem da papoula, no tratamento da crise de abstinência dos dependentes de heroína. Acho que essa discussão terá de ser amadurecida para não repetirmos o erro cometido na prevenção da Aids, quando discutimos de forma atrasada a distribuição de preservativos e seringas. A Colômbia já é a terceira produtora mundial de heroína. Por enquanto, essa heroína só está passando pelo Brasil em direção aos Estados Unidos e à Europa, mas vai chegar uma hora em que ela vai ficar no País.
 

ISTOÉ – Como essas organizações criminosas lavam dinheiro aqui no Brasil?
Wálter Maierovitch

 Acabamos de desbaratar uma de lojas de videopôquer que lavava o dinheiro do tráfico de heroína. Estamos também trocando informações com os italianos sobre um pessoal que era ligado ao falecido bicheiro Castor de Andrade e está lavando dinheiro em Porto Seguro. Para disfarçar, eles exportam cocaína colorida em barriga de peixe.
 

ISTOÉ – O sr. já sofreu ameaças de morte?
Wálter Maierovitch

Sim. Antes como juiz e agora como secretário.

ISTOÉ – Como foi?
Wálter Maierovitch

 Vou contar só uma historinha ilustrativa dos métodos das organizações criminosas. Em março, fiz um levantamento dos pontos de entrada de drogas no Brasil para mostrar a nova estrutura do crime organizado do País. No programa de entrevista do Boris Casoy, da Rede Record, revelei os mapas e os nomes dos cabeças dessas organizações, até então nunca divulgados. Logo depois, a produção do programa recebeu o telefonema de uma ex-mulher de uma das pessoas citadas, que disse que gostaria de falar comigo. A produção pediu para ela deixar o número do telefone, que depois eu entraria em contato. Ela deixou três números, que são meus, mas não estão na lista telefônica. Estava dado o recado, uma tentativa de intimidação.