O cientista político americano diz por que é difícil estudantes e jovens conseguirem converter a energia das ruas em transformações duradouras na sociedade

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EXCLUSÃO
“Minorias organizadas usam o sistema político em benefício
próprio e a grande maioria tende a ser ignorada”, diz ele

O cientista político americano Francis Fukuyama, 60 anos, ganhou notoriedade com o livro “O Fim da História e o Último Homem” (1992). Fukuyama defendia que o triunfo do capitalismo e das democracias liberais sobre os demais sistemas políticos e econômicos era o capítulo final da guerra de ideologias que marcou a evolução da história humana. Ph.D. em ciências políticas por Harvard, ele foi um dos formuladores da Doutrina Reagan, estratégia implementada pelos EUA em oposição à influência global da União Soviética durante os anos finais da Guerra Fria. Fukuyama afastou-se dos republicanos na era Bush, por discordar de suas intervenções militares, e apoiou a eleição de Obama. Autor de uma dezena de livros, lançou no Brasil este ano “As Origens da Ordem Política” (editora Rocco). Atualmente, é professor na Universidade de Stanford, na Califórnia, de onde falou à ISTOÉ, e nas horas vagas dedica-se ao seu hobby: fotografar.

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"Dilma foi tímida demais nas iniciativas de levar
adiante as reformas. Agora corre atrás do prejuízo.
Ela podia ter se antecipado aos protestos

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“O Egito precisa de reconciliação.
É importante pensar em como integrar a Irmandade
Muçulmana num sistema de fato democrático”

ISTOÉ

O sr. diz que existe uma nova classe média global. Como ela pode ser definida?
 

Francis Fukuyama

Não acho que devemos defini-la apenas por renda, que é o que os economistas fazem. Acho que o nível de educação e o status ocupacional é que são realmente importantes, assim como os ativos de que a pessoa dispõe. Quem tem um imóvel, por exemplo, tem uma atitude diferente diante do governo do que de quem ganha dinheiro como vendedor ambulante.

 

ISTOÉ

O que muda?

Francis Fukuyama

Há muitos dados empíricos sobre isso. Quando as pessoas alcançam um nível melhor de educação, concluindo o ensino médio ou cursando faculdade, elas tendem a ser mais abertas às influências externas, são mais tolerantes, interessadas em democracia. Numa comunidade pobre as pessoas estão tão preocupadas com a sobrevivência, em colocar comida na mesa, que não têm muito tempo para se preocupar com participação política. Embora a pessoa seja afetada pelas ações do governo, ela não acha que pode fazer muito. Isso começa a mudar com a classe média.
 

ISTOÉ


Mas o sr. diz que a classe média é importante para reivindicar mudanças, porém raramente atinge seus objetivos.

Francis Fukuyama

A verdadeira mudança política envolve mais do que protestar. As redes sociais são muito boas para mobilizar, para se opor a algo, como ocorreu nos protestos no Brasil e na Turquia. Mas, para isso levar a duradouras mudanças no funcionamento da sociedade, esta energia tem de ser convertida em algo mais duradouro. E, numa democracia, você precisa de um partido político.
 

ISTOÉ

Os protestos não trazem uma nova pauta?

Francis Fukuyama

Os protestos são bons para capturar a atenção dos políticos para uma gama de assuntos e forçá-los a responder de alguma forma. Mas conseguir efetivar a pauta de reivindicações requer leis. E, para isso, é preciso ter maioria no Congresso, é preciso ter políticos organizados que possam desenvolver essa pauta. Há um contraste interessante nos EUA. À esquerda, o movimento Occupy Wall Street, focado em igualdade de renda, conseguiu divulgar suas ideias. Mas não se organizou para ter candidatos ao Congresso que pudessem implementar sua pauta, e por isso não teve um impacto duradouro. À direita, o Tea Party mobilizou pessoas para serem eleitas pelo Partido Republicano – o que levou o partido mais à direita. O Tea Party entendeu que, quanto mais ativo estivesse na política, indo além de simplesmente protestar, maior efetividade teria. Estudantes e jovens são muito bons para protestar, mas não tão bons na construção e organização de forças políticas que possam implementar mudanças.

ISTOÉ

Como solucionar a crise de representatividade que os partidos políticos enfrentam em todo o mundo?

Francis Fukuyama

Há muitos assuntos caros às pessoas, mas não tão caros a ponto de elas se envolverem politicamente. Há grupos muito atuantes. Por exemplo, os bancos nos EUA se interessam muito pelo tema regulamentação bancária. Eles têm muito dinheiro e podem pagar lobistas poderosos. E essas pessoas influenciam o Congresso. Provavelmente, 80% dos americanos têm raiva desses bancos por causa da crise financeira, mas não são organizados o suficiente para demandar um novo tipo de regulamentação, não concordam sobre que tipo de regulamentação é necessário, é um assunto técnico. Acho que é aí que nasce a crise de representatividade. Algumas minorias bem organizadas na sociedade usam o sistema político em benefício próprio e a grande maioria tende a ser ignorada.

ISTOÉ


A atual democracia representativa é incapaz de combater os excessos do capitalismo?

Francis Fukuyama

Acho que não é essa a questão. Isso é resultado do fracasso das lideranças de esquerda no mundo, nos Estados Unidos, na Europa, e em menor grau na América Latina. A esquerda não conseguiu dar voz a questões que têm amplo apoio popular nem foi capaz de apresentar essa pauta de uma forma que os outros vejam que são coisas importantes a serem feitas. No caso do Brasil, a maior parte do problema está na velha classe política, que é intransigente, e nos políticos corruptos.

ISTOÉ

Como tornar o sistema político brasileiro menos corrupto?

Francis Fukuyama

Isso aconteceu em vários países, incluindo os EUA. No início no século XX, os EUA tinham um sistema político extremamente corrupto e clientelista. Foi estabelecida uma série de leis, a burocracia estatal se tornou mais profissional e o país foi atrás dos corruptos, pessoas foram processadas, foi uma longa luta. Acho que acontecerá a mesma coisa no Brasil já que existe uma grande classe média que não gosta desse velho sistema. Ela pode ser adequadamente mobilizada para obter políticas mais duras contra a corrupção, porém não têm surgido lideranças capazes de tomar à frente para fazer essas mudanças.

ISTOÉ

O que acha da presidência de Dilma Rousseff?

Francis Fukuyama

Ela estava fazendo um bom trabalho dando continuidade ao legado de Lula, mas foi tímida demais nas iniciativas de levar adiante as reformas. Como resultado, ela parece que está correndo atrás do prejuízo ao se conectar com os manifestantes e propor uma pauta de reformas. Ela poderia ter tentado se antecipar aos protestos.

ISTOÉ

Quase mil pessoas morreram nas ruas do Egito nos últimos dias. O sr. vê o risco de uma guerra civil?

Francis Fukuyama

As cenas do Egito são muito chocantes. O uso da violência vai voltar a assombrar o governo militar pela radicalização com os islâmicos e incentivá-los a voltar-se para a violência. Não tenho uma visão rígida do golpe porque não acho que a Irmandade Muçulmana era um partido democrático. Eles usaram a eleição para chegar ao poder e deixaram claro que, uma vez lá, não iriam deixá-lo mais. O presidente deposto Mursi conseguiu apenas uma maioria apertada na eleição presidencial e parlamentar, mas agia como se tivesse um imenso mandato para mudar drasticamente o regime em favor da Irmandade Muçulmana.

ISTOÉ

A saída do vice-presidente El Baradei torna a democracia mais distante?

Francis Fukuyama

Os militares tiveram alguns aliados liberais como El Baradei, mas agora eles estão indo embora. O país precisa de reconciliação, mas isso não parece que vai acontecer em breve. As forças democráticas do Egito têm um grande problema porque será difícil tirar os militares do poder agora. E espero que eles estejam sendo honestos quando dizem que pretendem devolver o poder aos civis e façam eleições para refletir – o que acho que é de fato – a opinião majoritária no país, que não quer a Irmandade Muçulmana no governo, embora seja importante pensar em como integrá-los num sistema de fato democrático. Não acho que seja tarde demais, mas o que aconteceu é perigoso porque colocou precedente ruim para a democracia no futuro.

ISTOÉ

O sr. acredita que é possível instituir uma democracia no estilo ocidental em países islâmicos?

Francis Fukuyama

Não vejo razão cultural para que isso não seja possível. A Europa levou 150 anos para criar os sistemas democráticos. Os europeus não tinham políticas ligadas à religião, mas tinham o nacionalismo. Na Alemanha, na França, na Áustria havia uma abertura democrática que foi sequestrada pelo nacionalismo. Acho que o mesmo ocorreu no Egito. A abertura democrática foi sequestrada pelos islâmicos.

ISTOÉ

É possível ter um Estado laico nos países muçulmanos?

Francis Fukuyama

Sim, e acho que a Turquia é um modelo. Não precisa ter o rigoroso anticlericalismo que caracterizava o antigo regime turco. Porque, de fato, lá as pessoas são religiosas. Na Europa você tem partidos cristãos democráticos que se reconciliaram com a democracia. Não é impossível, mas vai levar tempo, talvez décadas. Acho que será mais rápido do que foi na Europa porque eles têm exemplos de como a democracia funciona em outras partes do mundo. As pessoas têm de se acostumar com a ideia de dividir o poder, de que problemas não serão solucionados pela força, e isso não acontece do dia para a noite.

ISTOÉ

Nessa perspectiva, como o sr. vê a situação da China? Acredita que eles querem uma democracia ocidental?

Francis Fukuyama

Não acho que a maioria dos chineses queira uma transição rápida para uma democracia total, em parte porque eles sabem que há muitos pobres na China e haverá populismo, demandas para redistribuição de renda, etc. Acredito que primeiro eles queiram a liberalização do sistema político. Muitos chineses de classe média querem mais acesso à informação, que o governo seja mais transparente. Há um caminho em direção a uma gradual liberalização e democratização do sistema político que não envolve uma transição rápida para uma democracia multipartidária. De qualquer forma, o Partido Comunista seria uma força tão dominante que é difícil ver como um partido de oposição poderia chegar ao poder.

ISTOÉ

O sr. crê que a China será uma superpotência maior que os EUA?

Francis Fukuyama

Não contaria com isso. Economicamente eles podem alcançar os EUA, mas daí a ficarem ricos como os EUA depende de uma estabilidade política de longo prazo.

ISTOÉ

Não é contraditório os EUA, que valorizam tanto as liberdades individuais, serem pegos espionando seus cidadãos e outros países?

Francis Fukuyama

Sim, é terrível, embora o Congresso, em última instância, tenha aprovado isso. Esse programa deve ser mais transparente e deve haver mais controle sobre as atividades em que o governo se engaja. O governo precisa ter seus segredos, precisa fazer coisas que restringem a liberdade das pessoas, mas não houve equilíbrio. Afinal, as ameaças que os EUA sofreram não são uma ameaça à sua existência. Temos que tomar extremo cuidado quando abrimos mão de muitas liberdades.


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