O advogado do ex-presidente do BC diz que a CPI não sabe trabalhar, a sociedade é enganada pelo Legislativo e a imprensa extrapola

Depois de uma breve trégua nas investigações do Senado Federal sobre as irregularidades da ajuda do Banco Central aos bancos Marka e FonteCindam, o advogado Luís Guilherme Vieira, 39 anos, se prepara para voltar aos holofotes da CPI do Sistema Financeiro para defender o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes. Com a mesma audácia com que montou a cena mais impressionante da CPI – a recusa de seu cliente em assinar um termo de compromisso e depor como testemunha e a consequente prisão –, o advogado volta a atacar o Ministério Público, expondo a certeza de que os elementos contra Lopes serão invalidados por terem sido obtidos de forma ilegal. Ele também critica duramente a CPI, acusando-a de extrapolar nas suas atribuições, e adianta que Chico Lopes, se convocado novamente a depor, repetirá a estratégia de só falar o que quiser. Segundo Vieira, que defende Lopes juntamente com José Gerardo Grossi, seu cliente contribui para fortalecer o estado de direito democrático no País ao se recusar a se submeter a arbitrariedades da CPI. Ele só vai explicar o bilhete que indica a existência de uma conta milionária no Exterior, encontrado na casa de Lopes, quando puder ser ouvido por "interlocutores equilibrados, sem busca de efêmera notoriedade".

ISTOÉ – No dia em que Chico Lopes se recusou a assinar o termo de compromisso com a verdade para depor na CPI, o sr. foi acusado de ter agido para concentrar os holofotes em si. Como encara essas críticas?
Luís Guilherme Vieira

Não são estes procedimentos que fazem um advogado ganhar ou perder notoriedade. Muito menos com um simples golpe jurídico. Isso só se dá com uma luta contínua e continuada, muito sofrimento, muita vivência.
 

ISTOÉ – Seu cliente conseguiu se recuperar do desgaste emocional?
Luís Guilherme Vieira

 O professor Francisco Lopes continua com a alma quebrada. Essa atitude, orientada por nós, de não debater enquanto não houver um lugar isento para ouvir, teve um peso muito grande para ele. Há pressão de amigos, familiares de que deve dar declarações, se defender publicamente. No primeiro dia marcado para o depoimento, ele não depôs sabe por quê? Estávamos em Brasília. Ele já estava arrasado com o linchamento, com a notícia da busca em sua casa, quando amigos e parentes começaram a ligar preocupados com a notícia de que ele tinha se matado. Aí, ele desmoronou. Não tinha condição psicológica. Mas vem se recuperando. Tem a consciência de que sua atitude foi um marco plantado por quem esteve sempre ligado aos interesses mais nobres da Nação. Essa CPI pode ser interpretada como divisor de um antes e um depois. A população passa a entender o que é estado de direito, exercício de um direito de defesa, crime de publicidade opressiva, princípio que infelizmente foi retirado do anteprojeto do novo código penal.
 

ISTOÉ – O sr. vê o crime de publicidade opressiva nesse episódio?
Luís Guilherme Vieira

 Há um massacre. Se você fizer uma pesquisa nos jornais sobre Chico Lopes, verá que ele sempre teve uma credibilidade e uma honorabilidade inquestionáveis. Mas a partir de 19 de abril, quando ele adia o primeiro depoimento, até duas semanas depois, só há linchamento. Isso é crime nos países de direito mais avançados, que proíbem que a imprensa julgue uma pessoa. Talvez por inoperância dos outros Poderes, a imprensa vem usurpando seus limites e fazendo as vezes de autoridade constituída. Enquanto o Brasil tem programas de sensacionalismo na tevê ligados à área policial, recentemente saiu uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos proibindo o acompanhamento de diligências policiais pela imprensa.
 

ISTOÉ – A estratégia de não assinar o termo de compromisso pode ser juridicamente correta, mas num tribunal político, que é a CPI, não foi um desastre para a imagem de Chico Lopes, apressando sua condenação?
Luís Guilherme Vieira

Não tenho função política. Acho que a CPI ganhou poderes muito fortes com a Carta de 1988 e deveria ter ganho mesmo. Mas precisa compreender seus limites. Quando isso ocorrer, as CPIs poderão cumprir bem o poder que a sociedade lhes outorga para investigar. Todas as CPIs pós-88 demonstram que as pessoas não têm a preocupação com o resultado da investigação. Em vez de fatos, saem de uma investigação panfletária, transformando fragmentos em fatos, vazando informações sigilosas. A imprensa publica todos os dias coisas amparadas pelo segredo de Justiça e ninguém é punido. Antes mesmo de se sentar ali, Chico Lopes já estava na posição de réu. A partir deste raciocínio, a atitude dele foi exemplar.
 

ISTOÉ – Para o sr., também a Polícia Federal extrapolou na busca de documentos na casa de Chico Lopes, no Rio?
Luís Guilherme Vieira

A Polícia Federal só escoltou o Ministério Público. O próprio vice-presidente da CPI, senador José Roberto Arruda, fez no dia seguinte uma crítica veemente a essa atitude. O MP no Rio extrapolou muito. O que foi apreendido é juridicamente imprestável, independentemente do teor. Você não pode ter os fins justificando os meios.
 

ISTOÉ – O sr. está comparando os porões da ditadura com uma ação autorizada pela Justiça?
Luís Guilherme Vieira

 O fato de haver autorização judicial não significa que haja legalidade. Os fatos que antecederam a ordem judicial são rigorosamente ilegais. Em 30 de março, o procurador Artur Gueiros, numa viagem pela Internet, detectou uma notinha, juntou uma reportagem velha e formou, como se fosse um tira, um inquérito na sede do MP. Aí requereu a ele mesmo autorização para instaurar um procedimento inquisitorial. É ilegal. Não há qualquer dispositivo que sustente a tese de que o MP possa investigar.

ISTOÉ – O sr. trabalha exclusivamente com a hipótese de a apreensão ser invalidada e Chico Lopes não ter de explicar a fortuna na conta no Exterior?
Luís Guilherme Vieira

 Em absoluto. O fato de a ação ser inválida não significa que aquilo não possa ter uma explicação. Jamais vou compactuar com qualquer ilegalidade como a do MP, mas, se houver necessidade, num local imparcial, sereno, com interlocutores equilibrados, sem busca de efêmera notoriedade, aí, sim, você pode até dar alguma justificativa.
 

ISTOÉ – Não pode ser nesta entrevista?
Luís Guilherme Vieira

De jeito nenhum eu anteciparia ou vazaria o depoimento do meu cliente. Se ele for convocado pela CPI de novo, vai cumprir a decisão do STF, que lhe garantiu o direito de não se incriminar, de responder só às perguntas que entenda necessárias. Se a CPI tivesse a assessoria de um simples escrivão de polícia, entenderia que um acusado não poderia assinar aquele termo de compromisso como testemunha.
 

ISTOÉ – Mas por que ele não assinou e falou toda a verdade, se é inocente? Não deu a entender que tinha coisas a esconder?
Luís Guilherme Vieira

A lei não pode ser interpretada como "dá a entender". A partir do momento em que o acusam de dois crimes, vazar informações privilegiadas no exercício da função pública e ter conta no Exterior sem declaração, deve valer o exercício do direito. A CPI pode muita coisa, como convocar testemunhas, requerer documentos. Mas a CPI não pode tudo. Há determinadas coisas que só o Judiciário pode fazer.
 

ISTOÉ – A CPI pode determinar a anulação da operação de ajuda do Banco Central ao Marka e ao FonteCindam?
Luís Guilherme Vieira

 Não sou advogado deles, mas isso é de uma aberração jurídica que qualquer estudante de Direito sabe. É evidente que a CPI não tem esse poder. O ato jurídico é perfeito e acabado. A CPI pode opinar o que quiser, recomendar o que quiser nas suas conclusões, mas não tem o condão da imperatividade. Se o Estado acha que foi lesado, que vá à Justiça.
 

ISTOÉ – Na prática, o sigilo bancário e fiscal serve para muitas coisas além de proteger sonegador e ex-marido que não quer pagar pensão?
Luís Guilherme Vieira

 Eu não quero que as pessoas tomem conta da minha vida fiscal ou bancária ou dos meus telefonemas. Mas há várias possibilidades previstas de quebra de sigilos, que deve ser feita por órgãos competentes. Não se pode fazer isso por vaidade, retaliação, devassa.
 

ISTOÉ – verdade que os amigos de Lopes estão se cotizando para pagar seus honorários? São tão altos assim?
Luís Guilherme Vieira

São compatíveis com o trabalho que desenvolvemos. Mas o professor é um homem de parcos recursos. Sempre se dedicou ao magistério e à vida pública. Não revelo valores porque isso envolve minha intimidade e a de meus clientes.

ISTOÉ – Essa credibilidade não está abalada junto à opinião pública?
Luís Guilherme Vieira

Primeiro, é preciso separar opinião pública daquilo que querem que a opinião pública pense. São coisas muito distintas. Vimos no Congresso o professor sendo desrespeitado. Ele simplesmente exerceu um direito constitucional. Nem os tribunais da Inquisição impediram um advogado de se manter ao lado de um réu para orientá-lo. Foi um crime de abuso de poder.
 

ISTOÉ – O sr. está incluindo na crítica o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, que gritou para que o sr. fosse retirado?
Luís Guilherme Vieira

 Acho que a frase dele foi "retirem esse moleque e prendam esses cachorros". Quando se pensa que estas pessoas representam a sociedade, que a elas compete legislar e que elas próprias desrespeitam os que lá comparecem, não merecem de minha parte qualquer análise. Prefiro partir para a velha máxima do Barão de Itararé: de onde menos se espera, é de lá que não vem mesmo.
 

ISTOÉ – O senador criou a CPI do Judiciário. O sr. é a favor das investigações do Congresso?
Luís Guilherme Vieira

Sou contra a CPI do Judiciário. Ela invade, em algumas questões, o ato de julgar. Sou a favor há muito tempo do controle externo do Judiciário. Ele trará efetivamente a transparência que a sociedade exige. Vou usar uma frase do ministro Carlos Velloso, parafraseando um desembargador mineiro pouco antes de sua posse. A Justiça é uma senhora idosa, muito velhinha, cega, trôpega, mas é honrada. Os fatos apurados são isolados e devem ser punidos. É preciso também rediscutir conceitos como o da ética jornalística nesses casos.
 

ISTOÉ – Por que ainda temos a sensação de que rico não vai preso no Brasil?
Luís Guilherme Vieira

 O índice de condenação é baixíssimo, mesmo de pessoas afastadas do topo da pirâmide social, porque as pessoas não têm de ser condenadas de qualquer jeito e qualquer modo. O MP não pode, ao arrepio da lei, produzir provas que sabe ilegais. O que não pode é uma CPI, sem poder para tanto, quebrar um sigilo. A CPI não é uma vara criminal. Os membros das CPIs transferem para si o sigilo das pessoas e no dia seguinte todos os jornais, todas as tevês, todas as rádios divulgam. Veja outro absurdo. Durante sete horas, o MP fez a busca na casa de Chico Lopes e deixou de lavrar o laudo circunstanciado, com detalhes do que foi apreendido, sob o ridículo e pífio fundamento de "adiantado da hora". Eram 18h15. Sabe por que mandaram a lei às favas pela burocrática expressão "adiantado da hora?" Sabe por que saíram da casa àquela hora, antes de fazer o laudo? Por causa do horário do jornal televisivo de maior audiência no País. Tanto é que, depois, na calada da noite, na sede do MP, fizeram o relatório, descreveram os objetos apreendidos, um a um, sem as testemunhas que a lei exige. Há mais de dez ilegalidades nesse processo.

ISTOÉ – Por que não há corruptos na cadeia no Brasil?
Luís Guilherme Vieira

A corrupção não é privilégio do Brasil. As pessoas não são presas porque os vícios processuais são repelidos pela Justiça. O problema é que, em busca de um resultado panfletário e pirotécnico, as pessoas mandam às favas a consciência e as leis em busca de notícias, invalidando as provas. Invoco o exemplo do MP e da CPI neste caso para sustentar isso.
 

ISTOÉ – Seu cliente acredita que poderá recuperar sua credibilidade?
Luís Guilherme Vieira

 Sem a menor dúvida. Nas CPIs anteriores, as mais vistosas, você tinha todos os setores, incluindo sociedade e imprensa, unidos contra alguém que queriam pôr para fora. Agora é diferente, há uma pessoa de bem sentada ali. A verdade dele virá à tona de uma forma tranquila e serena porque nós sabemos que ele ainda se sentará num lugar equilibrado, longe das paixões políticas e dos holofotes, longe daquele lugar onde as pessoas não têm compromissos com a verdade, a não ser as suas verdades.
 

ISTOÉ – Quem extrapolou na CPI?
Luís Guilherme Vieira

 Ela extrapolou como um todo ao determinar a prisão do professor, pedida por vários senadores, como a Heloísa Helena, a Emília Fernandes, o Roberto Freire, vários. Não haverá estado de direito onde não se respeitam direitos básicos, como o do exercício da profissão. Quando um advogado é agredido como eu fui, impedido de trabalhar, agredida é a sociedade. Eu resisti em homenagem a todos os advogados.
 

ISTOÉ – Uma sociedade que todos os dias vê um favelado ser preso porque um papelote de cocaína foi achado em seu barraco, numa batida policial sem mandado, pode se indignar quando o MP e a polícia vão à casa de Chico Lopes, autorizados pela Justiça, apurar a suspeita de desvio de milhões de dólares?
Luís Guilherme Vieira

 Essa sociedade não é informada das consequências advindas de uma apuração errada. O STF criou um paradigma ao anular um processo de um traficante gaúcho já condenado por ter sido montado sobre uma gravação clandestina. Isso mostra que a lei está aí para todos. Não tenho dúvida de que muita gente é condenada por julgamentos irregulares e isso é um absurdo. O Brasil precisa repensar muita coisa. Em Portugal, uma mudança na legislação criminal demanda um estudo de dez anos. Aqui, o ex-ministro Iris Rezende quis criar um anteprojeto do código penal às pressas para usar em sua campanha para governador. Acaba de ser mandado para o Congresso pelo ministro Renan Calheiros. Não vai ser sancionado. É um estudo absurdo, há situações patéticas nele. Penalistas de gabarito saíram e denunciaram publicamente porque estavam saindo da comissão que elaborava o anteprojeto. Na verdade, a sociedade é enganada pelo Legislativo, que legisla com a falsa sensação de que o crime vai terminar pelo simples fato de que aquela postura passou a ser rotulada como crime. E não promovem nenhum debate. É uma grande bobagem.