Para não ser acusado de difundir hábitos perniciosos, o apresentador e humorista Jô Soares – que há duas semanas acertou um vantajoso contrato com a Rede Globo para vigorar depois da sua saída do SBT no último dia deste ano – evita ser fotografado fumando. Não esconde, no entanto, seu enorme prazer em dar baforadas num bom charuto, ainda mais se for da marca que leva seu nome, lançada recentemente. O hábito é antigo e começou de forma inusitada no fatídico ano de 1964, quando o ator Juca de Oliveira bateu à porta de seu antigo apartamento, no bairro de Moema, em São Paulo, onde vivia com a primeira mulher, Tereza Austregésilo, e apontou para um senhor de longos cabelos grisalhos ao seu lado. "Precisamos esconder o Mário", disse Juca. O senhor em questão era o falecido cientista e crítico de arte Mário Schenberg, considerado por Albert Einstein um dos dez físicos mais importantes do mundo, que na ocasião estava na mira da ditadura. Durante dois meses, o casal conviveu com Schenberg e seu charuto baiano Pimentel nº 2, que enfumaçava divertidas conversas a três. O gordo acabou aceitando os charutos do físico já que eles o mantinham quieto e, de certa forma, o demoviam da idéia maluca de ir à rua com os cabelos pintados de vermelho, disfarce que se tornaria ainda mais extravagante em conjunto com inseparáveis sapatos alaranjados. "Schenberg, é melhor você não sair assim, porque além de comunista, vão achar que você é veado!", alertou Jô.

Como se vê, a informalidade é uma das suas marcas. A mesma que personalizou o seu Jô Soares onze e meia que, depois de 11 anos no SBT, será transferido para a Globo numa jogada surpreendente que denuncia a reação contundente da emissora carioca para enfrentar com poder de fogo as incertezas lançadas sobre sua programação sempre tão segura, mas abalada nos últimos tempos por convulsões internas. Aos 60 anos, Jô Soares se muda para a Globo com toda sua equipe de 22 pessoas, incluindo o sexteto musical. Começa a mesmíssima função no início do ano 2000 usando formato idêntico ao do SBT, transmitindo entrevistas após o Jornal da Globo, por volta de 0h10. Num gesto diplomático, ele já telefonou para a jornalista Lilian Witte Fibe que ocupa exatamente a faixa que o apresentador consagrou no canal de Silvio Santos. "Eu só liguei para lembrar que íamos ser colegas de novo", lembrando que ambos estiveram juntos no SBT. Jô terá à sua disposição um estúdio de 600 metros quadrados – em construção nas cinematográficas novas instalações da Globo em São Paulo –, curiosamente a mesma dimensão de seu apartamento situado no bairro paulistano de Higienópolis, onde mora com a mulher, Flávia Maria Junqueira Pedras Soares, 35 anos.

Boca seca – Quando for gravar seu primeiro programa global, Jô Soares já sabe que ficará com a boca seca. É um sintoma de nervosismo repetido a cada estréia, seja na televisão ou nos palcos. "Mas é só deixar dois copos de água à mão." Ainda que não esconda a excitação pela mudança, garante que trabalhará ainda mais estimulado no SBT até o final do seu contrato. "Não estou saindo brigado nem por uma questão financeira. Se o problema for dinheiro, ninguém tira ninguém do Silvio Santos", garante ele, negando-se a revelar o valor do passe. "Acho que minha vida já é devassada demais. Só digo que se trata de um ótimo contrato." Sabe-se que no SBT seu salário era proporcional ao das grandes estrelas da casa. Um aumento não seria problema. Hebe Camargo, por exemplo, recentemente renovou com Silvio Santos por R$ 250 mil mensais. Mesmo assim, Jô Soares jamais atingiria os dígitos exuberantes de Ratinho, que engorda suas cifras com merchandisings que no fim do mês fazem seu faturamento crescer para R$ 1 milhão. "Só uso merchandising se for completamente dentro do contexto do programa", diz, citando o acordo com a IBM cujo lucro é dividido com o SBT.

O que o atraiu na conversa tida em Nova York, mês passado, com a superintendente executiva da Globo, Marluce Dias da Silva, foram os recursos tecnológicos da emissora. "Poderei enriquecer as entrevistas com várias matérias jornalísticas ou ter um link ao vivo com outro entrevistado em Londres." As artimanhas imaginadas já receberam o aval do diretor de jornalismo da Globo, Evandro Carlos de Andrade, segundo ele um dos "padrinhos de sua contratação", ao lado do vice-presidente-executivo, Roberto Irineu Marinho. Outro trunfo a seu favor é ter à disposição o elenco de artistas que raramente são liberados para seu programa no SBT. Silvio Santos ficou sabendo da decisão em 27 de maio durante encontro em tom de despedida no escritório do homem do Baú, em São Paulo. Não foi a primeira vez que trataram do assunto. No primeiro ano de Jô no SBT, a Globo quis tirá-lo de lá. Silvio o convenceu a ficar. Desta vez a situação é outra. "Minha saída não tem nada a ver com insatisfações, é uma questão existencial de artista." Na quinta-feira 3, Jô Soares divulgou em entrevista coletiva uma carta endereçada ao ex-patrão, que não escondeu sua tristeza ao perder sua atração de peso.

Menos sentimental, o diretor artístico do SBT, Eduardo Lafon, disse que no momento a Globo importa mais a Jô Soares do que o contrário. "Ele ficou aqui 11 anos, foi muito importante, mas seu programa entrou numa rotina e será bom reciclar." Para substituí-lo, Lafon anunciou um jornalístico. Paulo Henrique Amorim, em litígio com a Rede Bandeirantes, é um nome que passa pela sua cabeça para agir como âncora do noticiário. Jô não sabe dimensionar a falta que fará ao SBT. "É uma emissora com luz própria e eu seria de uma megalomania incomensurável se dissesse que o prestígio da casa está ligado a mim." É sabido que o apresentador não detém os mesmos índices de audiência de um Ratinho, mas jamais decepcionou. No horário, ocupa o segundo lugar marcando a média de oito pontos e picos de 15 na medição do Ibope. "Atinjo entre 25% e 30% dos aparelhos ligados. Isso representa seis milhões de telespectadores, ou seja, três vezes a audiência que David Letterman tem nos Estados Unidos", afirma, numa referência a um de seus inspiradores.

Na questão prestígio, é notório que Jô Soares também aumentou o seu depois que trocou as perucas e os trejeitos de seus antigos personagens humorísticos pelo bate-papo informal de fim de noite. Rebocado pelo novo currículo de cerca de 6.500 entrevistas, inaugurou a carreira de escritor. Seu primeiro livro, O xangô de Baker Street, de 1995, já vendeu 420 mil exemplares, enquanto O homem que matou Getúlio Vargas, lançado em novembro passado, alcançou a marca de 235 mil títulos vendidos. Xangô foi traduzido para 12 idiomas, inclusive o japonês. O livro também virou filme dirigido por Miguel Faria Jr. A finalização das filmagens depende apenas de três cenas que serão realizadas em Londres.

Tipos – Criador de algumas das figuras mais divertidas, entre elas a atriz pornô Bo Francineide e o Capitão Gay, não é de hoje que ele milita nas telas. Além de alguns filmes da antiga Atlântida fez participações em pequenos clássicos do cinema udigrudi como Hitler 3º mundo, de José Agrippino de Paula, em 1968. Um filme muito falado e pouquíssimo visto. O que o público mais se identifica, contudo, são com seus personagens surrealistas. "Outro dia imitei um alemão no SBT e todo mundo pediu para eu continuar fazendo isso." Ele pode repetir a dose e até admite abrir um de seus programas travestido de qualquer outro tipo. Mas afirma que continuará vestindo o papel de entrevistador cujo maior defeito é não raro falar mais que o entrevistado. Quando isso acontece, o diretor Willem van Weerelt dá o alerta pelo ponto eletrônico. "É natural eu querer mostrar meus argumentos se não concordo com o entrevistado, mas sei que não posso atropelá-lo", justifica.

 

Vestida para ganhar
Convivendo com uma dívida em dólar, guerra nos bastidores e mudanças na programação, a Globo começa a reagir

 

CELINA CÔRTES, CELSO FONSECA E HÉLIO CONTREIRAS

Quando Jô Soares deixou a Rede Globo em 1988, seu Viva o gordo superava facilmente a confortável marca de 63 pontos no Ibope, índice nem tão assombroso assim nos tempos em que a emissora detinha a absoluta hegemonia da audiência no País. Onze anos depois, ele retorna à casa numa situação bem diferente. A Globo é uma líder cada vez mais acuada pela concorrência do SBT – como demonstra um irônico anúncio veiculado por Silvio Santos – e pela Rede Record do bispo Edir Macedo. Como se não bastasse vislumbrar novos rivais, a ex-Vênus Platinada convive com a insatisfação interna de algumas de suas estrelas, entre elas os humoristas Chico Anysio e Tom Cavalcante, além de outras vítimas de uma frequente e até então incomum alteração na programação que tem deixado o espectador confuso. Para reagir a esse quadro desfavorável, a Globo foi às compras e já garantiu o passe de Jô Soares. Na busca pela audiência poderá ter também Ana Maria Braga, conselheira-mor das donas de casa, seja ensinando a fazer quitutes, ou dando dicas de vida.

Ana Maria dá como certa sua transferência global, depois de ter deixado a Rede Record onde chegava a faturar a estrondosa quantia de R$ 3 milhões mensais, o que representava cerca de 25% do faturamento da emissora. A loira das luvinhas anda alardeando seu passe, mas Mário Cohen, diretor da Central Globo de Comunicação, é bem cauteloso no assunto. Assegura que ela não assinou nenhum contrato e adverte: "A Globo não paga multa de rescisão de contrato." O adendo é de peso já que a Record quer receber os R$ 25 milhões referentes à tal multa que Ana Maria tenta evitar na Justiça. Vale lembrar que Ratinho enfrentou o mesmo problema quando foi para o SBT e nem por isso deixou de trocar de canal.

A movimentação em torno dos novos nomes, como afirma uma fonte interna da Globo, lembra um time costumeiramente vencedor que perde uma competição e sai em desespero atrás de novos craques para tentar salvar a situação. É uma atitude que revela certa fragilidade e só assanha a concorrência. José Paulo Vallone, diretor de programação da Record, diz que a Globo hoje atira para todos os lados e busca resultados imediatos. "Eles se perguntam, o que faz sucesso? Pagode? Então contratam todos os pagodeiros e fazem uma porcaria de programa como aquele Pagode & Cia", alfineta ele, que promete brigar para receber a milionária multa de Ana Maria Braga.

Zorra total – No momento a empresa enfrenta melindres de outros matizes. Um deles é com Chico Anysio, que neste ano finalmente realizou o sonho de ter um programa solo, O belo e as feras, e rapidamente viu a fantasia desabar deixando ressentimentos no humorista. "Fiquei muito triste porque tinha consciência de fazer um bom trabalho. Só ouvia elogios e o programa foi tratado como se tratam os fracassos." Anysio soube da morte de O belo e as feras numa reunião na casa de Carlos Manga, um dos diretores da Central Globo de Criação, quando se discutia a já concretizada transferência do humorístico Zorra total – em que Chico Anysio mantém o quadro A escolinha do professor Raimundo – da quinta-feira para o sábado. Durante a reunião ele ligou para a superintendente executiva Marluce Dias da Silva e soube que seu vôo solo estava condenado. "Nunca vi isso, antes a programação era praticamente estável. O erro agora, se é que se pode chamar de erro, é que as modificações aconteceram nos programas de humor."

Anysio atribui a inédita inconstância a uma espécie de ansiedade provocada pelo Ibope. "A televisão mudou. Houve um tempo em que fora da Globo, somente o SBT dava dois dígitos de audiência com o Programa Silvio Santos", lembra. "Hoje deve conseguir isso em mais de dez atrações. A Record deve ter uns sete com essa marca." No entanto, ele continua disposto a prosseguir com Zorra total e para tanto tem respaldo da direção. Mário Cohen diz que essa é sua prioridade. "Foi um programa que o Chico idealizou e defendeu sua colocação nos sábados." Desacertos não param por aí. Há duas semanas, Tom Cavalcante esteve na berlinda por insubordinação, o que resultou na suspensão do seu ansiado programa Megatom. A punição ocorreu quando ele surpreendeu seus companheiros de elenco do Sai de baixo ao se despedir em plena gravação. "Foi muito bom ter interpretado o Ribamar, mas agora me despeço. Este é o último Sai de baixo do qual participo. Obrigado", anunciou Cavalcante.

 

Indisciplina – Segundo a Globo, não era isso o combinado. Seu compromisso prevê que ele permaneça no programa até o final de 1999. Marluce não suportou a indisciplina e suspendeu as gravações de Megatom, que também já não agradava Daniel Filho, chefe da Central Globo de Criação. Cohen garante que o projeto continua de pé. Ao mesmo tempo Cavalcante anuncia que tem convites de outras emissoras, embora seu contrato vigore até 31 de dezembro de 2001. Coincidentemente, depois de um episódio parecido, quando uma reformulação de seu Angel mix não foi totalmente aprovada, e o diretor Roberto Oliveira afastado, a apresentadora Angélica alardeou estar sendo assediada por vantajosas propostas da Record que foram ouvidas com muito carinho. A estratégia parece ter virado moda.

As negociações não foram para frente. Mas o suposto assédio da Record mostrou que a fase pode ser perigosa para se ter estrelas descontentes. No contra-ataque, a Globo já atingiu em cheio o SBT. A perda de Jô Soares, segundo o publicitário Celso Japiassu, da Publicis/Norton, enfraquece bastante o canal de Silvio Santos. "Trata-se do segundo programa mais rentável da emissora. Em termos de receita só perde para o Silvio Santos aos domingos", diz, lembrando que o Jô Soares onze e meia equacionava uma audiência qualificada com baixos custos de produção. Talvez por isso, o vice-presidente da Globo, Roberto Irineu Marinho, comemore tanto o novo reforço. "O Jô nunca deveria ter saído da Globo." Para confirmar os sinais de recuperação, ele também minimiza os efeitos da decantada queda de audiência que, segundo ele, se registra apenas na cidade de São Paulo por volta das 21 horas, mas no resto do Estado continua excelente. "A crise da Globo que eu leio nada tem a ver com a que eu vejo."

Na verdade, nos últimos dez anos a Globo viveu fases de grandes investimentos em equipamentos, tecnologia e instalações grandiosas como o complexo artístico Projac, no Rio de Janeiro, e um moderno centro de produção em São Paulo. À primeira vista pode indicar sinais de opulência, mas a ousadia acabou estimulando um endividamento que atinge os US$ 2,4 bilhões, dos quais US$ 836 milhões são de responsabilidade direta da Globopar, holding do grupo. Aparentemente, a Globo está se precavendo contra turbulências financeiras e, como determina Marinho, o caixa da empresa vive "uma situação confortável". O faturamento das empresas do grupo ultrapassou os US$ 5 bilhões e a rede de televisão, segundo o ranking da revista americana Variety, figura como a primeira emissora da América Latina e a 12ª do mundo. Por via das dúvidas, este ano vai conter os gastos.

Problemas financeiros, contudo, não são os mais aparentes da Globo. Seus equívocos concentram-se na programação. As novelas perderam a empatia e como hoje há opções de outros canais, abertos ou fechados, o telespectador acaba migrando com mais facilidade do que antes. O impasse global tem gerado em alguns setores da emissora um certo saudosismo em relação à era Boni, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que a tudo controlava com rédeas curtas.

 

Mágica sem pombo – Para estimular os nostálgicos, nem o requintado folhetim das seis, assinado por Gilberto Braga, deu os resultados esperados. "Ele incorpora o Caco Antibes da teledramaturgia brasileira porque também detesta pobre. Acontece que seu saquinho de mágica já está sem pombos", ironiza um dos altos escalões da Globo. Eduardo Lafon, hoje diretor artístico do SBT, que trabalhou com Boni, lembra que em sua época as pessoas estavam acostumadas a esperar por suas decisões. "Falta um especialista em programação", diagnostica. No momento, Boni foi relegado à condição de um consultor que não dá conselhos. Nem é solicitado ou faz jus ao seu contrato milionário que vai até maio de 2001.

Não há chances de Boni voltar e por enquanto Marluce tenta apagar o incêndio com sua experiência de empresária. Entre os focos de combustão, a espevitada e bocuda Regina Casé é outra que exige atenção. Seu Muvuca não deu as caras por duas semanas, sendo substituído por jogos da Copa do Brasil. A era Marluce privilegia o futebol que oferece um ganho de audiência instantâneo. Tanto que a Globo não economiza sua influência contra o avanço da empresa gigante do marketing esportivo Hick Muse, que controla o Corinthians, para avançar sobre o mercado de tevê por assinatura. Seja como for, la Casé é outro exemplo de quem, como outros artistas do canal, prefere expor seu descontentamento pela imprensa. Recentemente ela deu uma entrevista na qual criticou São Paulo, afirmando que existe uma ditadura da audiência medida na capital paulista. A Globo não gostou nem um pouco. E põe mais confusão no caldeirão.