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SOZINHA Após o diagnóstico decâncer de mama,Magali foi deixadapelo companheiro

A pedagoga paulista Magali Panachão foi casada por 17 anos. Nesse período, teve duas filhas e um casamento feliz. O casal trabalhava, mas nas horas livres passeava, encontrava-se com amigos. Em 2002, porém, um diagnóstico de câncer de mama apagou essa rotina. No início, o apoio do marido foi total. Ele a acompanhava às consultas e às sessões de quimioterapia. Mas, quando ela começou a perder os cabelos por causa da quimio e precisou retirar a mama, o comportamento do companheiro mudou. “Ele sentia vergonha de mim”, lembra. “Não saía mais de casa comigo e dizia que tinha virado motivo de chacota entre os amigos por ter uma mulher sem peito.” O marido passou a ficar pouco tempo em casa, até o dia em que foi embora de vez. “Sofri muito porque o amava e jamais pensei que ele pudesse agir daquela forma.” Magali nunca mais soube do paradeiro do ex-parceiro. A sustentação para superar o drama vem da terapia e das filhas, Caroline, 17 anos, e Gabriele, 15.

A história de Magali é a de milhares de outras mulheres espalhadas pelo mundo, como atestou uma pesquisa recente realizada pelas universidades de Stanford e Utah e pelo centro de pesquisa Seatle Cancer Care Alliance, nos Estados Unidos. Depois de analisarem a vida de 515 homens e mulheres com câncer ou esclerose múltipla (doença degenerativa que leva à perda gradual dos movimentos), os cientistas verificaram que havia uma taxa de 11,6% de separação entre os indivíduos. A surpresa, porém, veio com o índice de casamentos desfeitos quando a mulher era a doente: 20,8%. Na circunstância contrária, ou seja, quando o homem é que está enfermo, a taxa foi de 3%. No final das contas, concluiu-se que a mulher tem seis vezes mais chances de ser abandonada pelo marido após a descoberta de uma doença grave.

A situação não é apenas lamentável do ponto de vista da saúde emocional. Ela é também uma ameaça à resistência física. Afinal, a separação piora a qualidade de vida e compromete o tratamento. “Verificamos que as mulheres nesta condição se internam mais, tomam mais antidepressivos e têm risco aumentado de morrer em comparação àquelas que continuam com seus parceiros”, afirmou Marc Chamberlain, diretor do Programa de Neuro-oncologia do Seattle Cancer Care Alliance e um dos autores do estudo.

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JUNTO Justino voltou à família dois anos após a filha menor ficar doente

Os achados modificaram a visão que os cientistas tinham do tratamento em si. A partir daí, eles passaram a defender a ideia de que as questões conjugais sejam levadas mais em consideração durante o tratamento. “Uma intervenção correta poderia reduzir a frequência do divórcio”, argumentou Chamberlain. “Dessa maneira, a eficácia das terapias seria ampliada.”

Qualquer tipo de ajuda, porém, deve buscar enfrentar a causa real dos conflitos. O olhar experiente de profissionais como a mastologista Fabiana Macdissi, coordenadora do Grupo de Apoio à Mulher com Câncer do Hospital A. C. Camargo, de São Paulo, por exemplo, é capaz de detectar isso rapidamente. “O câncer traz muitas perdas. Mas observo que a separação ocorre principalmente quando a relação já está desgastada”, diz. Neste caso, a doença é o gatilho que faltava. “Toda relação é construída por constantes mudanças”, afirma a terapeuta de família Marisa Micheloti, de São Paulo. “Essa dinâmica proporciona crises que podem ser construtivas ou motivadoras do fim da união.”

Além disso, há particularidades próprias da mulher e do homem envolvidas. Muitas vezes, ela tem dificuldade de lidar com a doença e por isso se afasta do marido. Eles, por uma questão cultural, tendem a reagir mal diante de uma situação sobre a qual não têm controle. “A formação da identidade do homem é baseada em sucesso. Ele é educado e estimulado para ser um vencedor”, afirma o psicoterapeuta Luiz Cuschnir, coordenador do Gender Group, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Quando se vê diante de uma situação que não domina e na qual o risco de fracasso é alto, ele recua.”

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APOIO Maria vive com Yan, portador de Down, e os outros filhos

A atitude por vezes fica mais explícita quando o doente é o filho. “Se a doença atrapalha a formação de um vínculo mais forte, o homem se frustra”, diz Cuschnir. Com o tempo ocorre o que os especialistas chamam de resfriamento afetivo. Para se proteger de sua própria dor, muitos preferem sair de cena. Foi o que fez o pintor de aeronave Alessandro Justino, 35 anos. Sua segunda filha, Carolina, nasceu com uma doença rara. “Quando soube, fiquei perdido”, conta. “A gente sonha em ver o filho crescer. Não via essa perspectiva. Por isso, deixei a minha família.” A fuga, como ele próprio define seu afastamento, durou quase dois anos. “Foi um momento de puro egoísmo. Quando percebi isso, voltei.”

A dona-de-casa carioca Maria Auxiliadora Tomaz não experimentou o reencontro. Após o nascimento do quarto filho, Yan, 8 anos, com Síndrome de Down, o marido foi embora. “Ele falava que o filho seria sempre dependente. Só conseguia enxergar o lado trágico”, conta. Hoje ela vive com os filhos e tem a ajuda de familiares e amigos. O ex-marido constituiu outra família.

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O dano do Câncer entre os irmãos

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UNIÃO Carolina (de lilás) ajudou a mãe a cuidar da irmã, Ana Clara

A existência de uma doença grave interfere em todas as esferas das relações familiares. Um trabalho feito pelo Hospital A. C. Camargo revelou que é insatisfatória a qualidade de vida da maioria das crianças que têm irmãos com câncer. Os médicos chegaram a essa conclusão após analisar as respostas a um questionário enviado a 100 meninos e meninas que viviam essa situação. As queixas são comuns a todos. Primeiro, os pequenos se sentem abandonados pelos pais, que passam a se dedicar mais ao irmão doente. Depois, sobram a tristeza, o ciúme e a culpa. “Uma das crianças se sentia culpada porque havia batido com um carrinho na perna da irmã, no local onde o câncer foi diagnosticado”, conta Beatriz da Cunha, autora do estudo. A dona-de-casa Rosângela Correa, de São Paulo, viveu esses conflitos quando o filho Carlos Eduardo, 6 anos, recebeu o diagnóstico de um tumor em um osso do pé, no ano passado. Sua irmã, Jaqueline, 10 anos, sentiu o baque. “Nossa rotina foi alterada. Ficava com ele no hospital e ela sentiu muito”, lembra. “Jaqueline me perguntava por que eu só dava atenção para ele, por que ele tinha nascido.”

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REAÇÃO Jaqueline queria a atenção da mãe, que cuidava de Carlos

Na verdade, as duas reações são esperadas. Os pais tendem a concentrar a atenção no filho que precisa de ajuda. E os outros, claro, reclamam. E, em alguns casos, podem manifestar sintomas como febre e alergias ou ter modificação no comportamento, como queda no rendimento escolar. A psicóloga Christina Tarabauy, do A. C. Camargo, acredita que a melhor forma de enfrentar o contexto é trazer os irmãos para auxiliar também. “É importante falar sobre a doença aos outros filhos”, diz. “A interação aproxima a família.” Essa união ajudou Ana Carolina Cicone, 7 anos, a superar as mudanças na rotina após a descoberta, no ano passado, de que a irmã gêmea, Ana Clara, tinha um tumor ósseo no braço. “Ela participou de tudo. Ia às consultas, ficava no hospital, onde as duas faziam as lições da escola”, conta a mãe, Tarsila.