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LONGE DE UMA RESPOSTA
O atentado à bomba no Rio-Centro, em 1981, ato terrorista dos militares
contra a democratização, é um dos vários episódios à espera de investigação

Nascida há 14 meses como um dos mais nobres projetos do governo Dilma Rousseff, de uns tempos para cá a Comissão Nacional da Verdade transformou-se num ambiente de disputas internas, conspirações permanentes e mesmo atos de sabotagem entre seus membros. Ciente disso, a presidenta Dilma decidiu intervir na comissão e planeja convocar o colegiado de coordenadores para uma conversa reservada, em que pretende cobrar explicações e discutir caminhos, na esperança de salvar uma ideia que custou meses de negociação com familiares de desaparecidos, militares aposentados, ministros e forças políticas de várias famílias ideológicas.

Sempre se soube que a investigação sobre a memória do regime militar seria alvo de críticas por parte de generais de pijama e de cobranças dos familiares de vítimas e iria mobilizar atenções no País inteiro. Estava claro também que os membros da comissão, escolhidos em maio de 2012, teriam de se empenhar, acima de tudo, em cumprir a obrigação de conhecer cada crime, cada violência, em todos os detalhes. Episódios terríveis da história do País, como o atentado à bomba no Rio-Centro, o mais ambicioso ato de terrorismo militar contra a democratização, até hoje aguardam explicações completas e definitivas sobre seus autores e as responsabilidades da cadeia de comando.

O trabalho de uma Comissão da Verdade, em qualquer parte do mundo, é assim mesmo. Consiste em pisar em terreno áspero, ouvir os contrários, dar voz a quem nunca teve – e depois construir, palavra por palavra, uma narrativa que não foi escrita. A questão é que era preciso encontrar um método de trabalho coerente para dar conta de tarefa tão nobre e delicada – e os membros da comissão nunca se entenderam a respeito disso.

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Pouco a pouco, aquela atividade, que deveria buscar a consulta externa, o depoimento jamais obtido e o episódio nunca esclarecido, transformou-se numa disputa típica de posições, uma pequena guerra de prestígio e força – em reuniões e embates a portas fechadas. É possível traduzir o exíguo trabalho externo da comissão por sua contabilidade. Com orçamento de R$ 10 milhões para tocar o serviço, até agora ela gastou uma modesta quantia de R$ 200 mil.

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Vários fatores ajudam a explicar essa situação. Um deles envolve a forma de organização. Em vez de estimular acordos e pactos construtivos, a ideia de estabelecer um sistema de coordenação por rodízio, através do qual cada membro da coordenação assumiria o comando dos trabalhos por três meses, logo passando o bastão para um novo sucessor, só contribuiu para acirrar disputas, contradições e conflitos. Inicialmente, a indicação do antigo corregedor do Conselho Nacional de Justiça, o juiz Gilson Dipp, para integrar a comissão, trazia um propósito positivo. Esperava-se que, com sua liderança e capacidade de composição, Dipp pudesse garantir uma certa ordem aos trabalhos. Mas, primeiro coordenador, Dipp adoeceu e teve de licenciar-se. Acabou substituído por Claudio Fontelles, procurador-geral da República entre 2003 e 2005, que acabaria acumulando dois mandatos consecutivos. Primeiro, como reserva de Dipp e, depois, como coordenador pleno. Quando Dipp recuperou a saúde, preferiu pedir para ir embora, deixando uma vaga em aberto, que até agora não foi preenchida. Com uma postura diferente da do antecessor, Fontelles colecionou brigas internas e acabou pedindo demissão. Saiu batendo a porta. Mas admite retornar, sob determinadas condições.

O conflito da Comissão da Verdade já havia produzido vários episódios desgastantes que lembram guerras de poder numa firma, num partido político ou num sindicato, mas chegou a um ponto máximo no final de maio. Empossada na coordenação, a advogada Rosa Cardoso, que defendeu Dilma e o deputado José Genoino durante o regime militar, enviou uma mensagem à própria presidenta da República. Rosa queria, simplesmente, que a presidenta demitisse três de seus adversários internos da Comissão – o advogado Paulo Sérgio Pinheiro, tarimbado integrante de missões de direitos humanos da ONU, a psicanalista Maria Rita Kehl e o advogado e escritor José Paulo Cavalcanti. A presidente respondeu através do assessor Giles Azevedo, que telefonou a Pinheiro e lhe disse que Dilma estava satisfeita com os trabalhos e com a atuação de seus membros. Mas a tensão não terminou. Em nova mensagem endereçada à presidenta, ainda sem resposta, Rosa solicitou a Dilma que fizesse uma opção definitiva, escolhendo quem deve ficar e quem deve sair.

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RODÍZIO IMPRODUTIVO
O juiz Gilson Dipp, primeiro comandante dos
trabalhos que se perderam com a troca de direção

Até hoje é mais fácil relatar as brigas entre os integrantes da comissão do que oferecer uma explicação racional para tantas divergências. A composição da coordenação mostrava um esforço para agrupar personalidades que, por vários caminhos, expressam o universo democrático brasileiro. Há coordenadores com sólida biografia tucana, mas também petistas e pelo menos uma voz que simpatiza com o Movimento Sem-Terra. Mas eles estão separados por uma divergência que não tem relação direta com suas linhagens políticas. Resumindo de forma simples um debate mais complicado, pode-se dizer que Rosa e Fontelles pretendem transformar os trabalhos da comissão numa etapa preparatória para uma revisão da Lei da Anistia que permita colocar os acusados por tortura e mortes no banco dos réus. Os outros, que têm como maior expoente Pinheiro, consideram que a comissão deve contar uma história do período, a mais completa que já foi escrita, e deixar a decisão para o conjunto da sociedade. Se a Lei de Anistia deve ser revista, esse não é um problema da comissão, raciocinam.

Como era de se imaginar, a cada visão corresponde um método de trabalho. Quando assumiu a coordenação, Pinheiro procurou agir de acordo com seu ponto de vista. Preferiu a consulta a arquivos, a coleta de depoimentos reservados, quando esse era o desejo da testemunha. Rosa e Fontelles, que acumularam um período mais longo na coordenação dos trabalhos, também agiram, mas pelo outro lado. Fiel à ideia de que seria conveniente criar “comoção” e exercer um “papel pedagógico” junto à população, Fontelles tentou divulgar denúncias de grande impacto. Como ideia, era uma solução tentadora. Mas não se possuía matéria-prima correspondente a tanta ambição.

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Durante uma audiência pública com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista e um dos símbolos do período, Fontelles criou um impacto apenas passageiro. Disse que trazia um documento inédito sobre a morte de 50 presos ocorrida na repartição militar sob o comando de Ustra. O documento, além de não ser inédito (havia sido reproduzido pelo próprio Ustra em seu livro), era repleto de imprecisões. Em outro momento, Fontelles anunciou em entrevista que possuía revelações relevantes sobre a morte do deputado Rubens Paiva, sequestrado em casa, na frente da mulher e dos filhos. Nada havia, porém, que não fosse do conhecimento de quem pesquisa o assunto.

A Comissão da Verdade tentou queimar etapas e foi assim que acabou chegando a essa encruzilhada complexa. Antes de mergulhar nos arquivos disponíveis – que são mais numerosos e férteis do que se supõe –, seus integrantes ingressaram no debate posterior, sobre o destino de eventuais descobertas. Elas podem ficar nos livros ou podem mudar a história. Mas esse é um debate posterior, para o País resolver. A Comissão da Verdade deve ao Brasil um pedaço de sua história que jamais foi contado. Em posição intelectualmente privilegiada, seus integrantes dispõem da chance única de ouvir testemunhas, confrontar versões e restabelecer o fio interrompido de um passado que convém conhecer para que nunca seja repetido. Basta isso e estará muito bem-feito.

Foto: Aníbal Philot/ag o globo
Fotos: Bruno Peres/CB/D.A Press; Sergio Lima/Folhapress;
Carlos Ivan/Ag. O Globo; Sergio Lima/Folhapress; MARCELLO CASAL JR


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