As chilenas Michelle Bachelet e Evelyn Matthei provavelmente se conhecem melhor do que quaisquer candidatos que já competiram pela presidência do país. Ambas são filhas de generais da Força Aérea e, quando crianças, viveram na mesma base de Quintero, na província de Valparaíso. Amigas, compartilhavam segredos até que o destino quis que seguissem caminhos opostos. Alberto Bachelet Martinez, pai de Michelle, permaneceu leal ao presidente socialista Salvador Allende quando ele foi deposto pelo golpe de Estado em 1973, e acabou morto na cadeia. Fernando Matthei Aubel, pai de Evelyn, tornou-se membro da junta militar do regime de Augusto Pinochet e ascendeu à chefia da Força Aérea e do Ministério da Saúde. Michelle se aliou às ideias socialistas, como o pai, foi presa e exilada. Evelyn estudou nos melhores colégios chilenos, dedicou-se ao piano e à economia e se perfilou à direita, também como o pai. Nos próximos meses, Michelle, que foi presidente entre 2006 e 2010, e Evelyn se encontrarão em diversos compromissos públicos para contrapor suas visões sobre o passado e o futuro do Chile não como amigas, mas como adversárias.

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DIREÇÕES OPOSTAS
Bachelet (acima) e Evelyn, mesmo com preferências políticas
diferentes, são esperança de avanço em questões sociais.

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A nomeação de Evelyn para uma candidatura única da direita foi conturbada. O escolhido nas primárias da coalizão conservadora, Pablo Longueira, surpreendeu seus partidários quando renunciou à candidatura alegando sofrer de uma grave depressão.A União Democrata Independente (UDI) anunciou, então, que Evelyn, ministra do Trabalho e bem avaliada pela população, o substituiria – sem conversar, entretanto, com o aliado Renovação Nacional (RN), partido do atual presidente, Sebastián Piñera. Evelyn é, não raro, tida por grosseira e polarizadora. A senadora Isabel Allende, filha do ex-presidente, disse uma vez que ela não tinha “condições psicológicas” para ser ministra. Na semana passada, a RN ainda tentou rearticular a candidatura do ex-ministro da Defesa, Andrés Allamand, e o consenso em torno de Evelyn só foi encontrado na terça-feira 23. “A renúncia de Longueira e Allamand evidencia um vazio de poder na direita”, disse o professor Hugo Herrera, do Instituto de Humanidades da Universidade Diego Portales, em artigo ao jornal “La Tercera”.

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O presidente Sebastián Piñera não conseguiu escolher nem seu próprio candidato

A disputa entre duas mulheres produz expectativas de avanços sociais num dos países mais conservadores da América do Sul. Em seu primeiro ato oficial de campanha, Evelyn foi questionada sobre a descriminalização do aborto. “Esse é um tema no qual não vou avançar, porque claramente a maioria do setor que estou trabalhando em minha coalizão não o apoia”, respondeu. Antes de a RN e a UDI se unirem por seu nome, a resistência de alguns líderes recaía sobre um temor de que a candidata insistisse no tema. Há três anos, quando era senadora, Evelyn apresentou um projeto de lei para restabelecer o aborto terapêutico, proibido no país desde 1989.

Ainda não há pesquisas que avaliem as intenções de voto com as duas candidatas inclusas, mas, nos levantamentos feitos até a semana passada, Bachelet levaria a presidência no primeiro turno. Num país onde a economia cresce com fôlego (neste ano, o Produto Interno Bruto deve subir 4,6%, segundo o Fundo Monetário Internacional), são de se espantar as dificuldades do governo em eleger um sucessor. Em quase quatro anos como presidente, Piñera enfrentou insistentes protestos de estudantes, ecologistas e trabalhadores, mas Bachelet também não conseguiu o feito em 2010 – embora tenha deixado a presidência com 80% de popularidade. Se a história se repetir, a alternância de poder levará a esquerda de volta ao Palácio de La Moneda em novembro. Até lá, a amizade de Evelyn e Michelle será posta à prova.

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Fotos: DPA / ZUMApress.com; Felipe Trueba / EFE; Alex Ibanez/Handout/DPA / ZUMAPRESS.com