Com a tenacidade de Xavier e a candura de Assis, os Franciscos do passado que o norteiam, o Francisco do presente fez no Brasil a sua profissão de fé na qual o espírito de solidariedade cristã é trabalho duro que não cai do céu e a ternura da alma é aquela que “acolhe a todos com misericórdia”. Isso demonstra a essência da ética jesuítica do religioso Francisco e da pessoa Jorge Mario Bergoglio: ele não é
o “homem cordial” como o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Hollanda descreveu a bipolar passionalidade pátria, oscilando entre o afeto e a violência, e muito menos é o ideológico “padre de passeata”, aquele que, segundo o dramaturgo Nelson Rodrigues, muito fala e muito agita em nome dos pobres, mas pouco realiza para eles – embora não faltem viúvos da Teologia da Libertação a tentarem encolher Francisco para essa linha da Igreja Católica, que funcionou numa América Latina comandada por ditadores, mas não funciona mais em nações que se redemocratizaram. Dias antes de voar de Roma para o Brasil, o papa assinalou que a “missão” é lutar “contra a violência da fome, a violência da miséria”, a violência que corta na carne e na alma os desvalidos, “a violência das guerras”. E alertou que essa “obrigação” não é somente dele, mas de todos nós. Ou seja: não basta elogiá-lo ou achá-lo “da hora”, é preciso arregaçar as mangas e imitá-lo na ação.

Na semana em que o católico Francisco esteve no País, a judia Hannah Arendt esteve na tela dos cinemas interpretada pela atriz Barbara Sukowa num excelente filme-documentário da cineasta Margarethe Von Trotta. O que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), uma das mais iluminadas e iluministas pensadoras da humanidade, tem em comum com Francisco além de ambos terem eleito Fiodor Dostoievski como autor preferido e imprescindível? (Dostoievski assina, entre outras obras inigualáveis, o livro “Crime e Castigo”, e na opinião do escritor austríaco Stefan Zweig, que morou no Rio de Janeiro, ele “é o mais profundo conhecedor da alma humana”). Pois bem, eis a resposta à indagação acima: Hannah Arendt cobriu para a revista “The New Yorker” o julgamento do nazista Adolf Eichmann, o responsável maior pela escolha de quais judeus morreriam ou não nos campos de extermínio do ditador alemão Adolf Hitler. Ela se surpreendeu, e surpreendeu o mundo, ao escrever em suas reportagens (intituladas “Eichmann em Jerusalém”) que diante de si não havia um “monstro”, mas, muito pior e terrível, havia um “burocrata”, um homem que praticava a violência com a “normalidade burocrática” de quem toca a sua vidinha sem olhar além de seu sucesso material e de seu umbigo.

A pensadora cunhou então a exata expressão “banalidade do mal”, a violência que se repete quando cada indivíduo no planeta não luta contra ela e se limita a elogiar quem luta. Tudo a ver, portanto, com a “missão” da qual Francisco falou pouco antes de pisar o Brasil. Há quem diga no Vaticano que um jesuíta ouve pelo menos duas vezes mais do que fala e pensa três vezes mais do que ouve. O mesmo se dizia de Hannah Arendt no campo da filosofia – outro ponto em comum entre o católico e a judia, ambos dispostos a dar à fé e à reflexão o status de instrumento de transformação da própria alma humana – para que não continuemos a engolir a violência contra os despojados com a naturalidade (ou “banalidade”) de quem toma um copo d’água.

Antonio Carlos Prado é editor-executivo da revista ISTOÉ