Há quatro anos foi fundada a primeira ONG que ajuda vítimas de abusos das Forças Armadas a brigar judicialmente. O Instituto Ser recebe duas novas denúncias por mês, número subestimado porque não há outras entidades voltadas para o assunto e o medo de represálias ainda impera. Nos Estados Unidos, por exemplo, a média é de 70 casos por dia só de violência sexual (leia o quadro à pág. 64). A pequena ONG foi ideia dos ex-sargentos Fernando Alcântara e Laci de Araújo, depois de travarem juntos uma guerra pelo direito de assumir seu relacionamento amoroso publicamente – algo inédito no País. Pela luta, o casal gay diz ter sofrido ameaças e homofobia dentro do quartel, agravando a depressão de Araújo. Ele foi preso, acusado de deserção do serviço militar, e processa o Exército por tortura na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Alcântara também carrega sequelas: “Até hoje tenho pesadelos de que estou fardado, sendo perseguido”, diz. Por serem referências, eles passaram a receber histórias de abusos cometidos pela instituição.

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PROFESSORA HUMILHADA
Laudo médico (abaixo) traz o quadro de depressão da ex-professora de sociologia do Colégio Militar de Brasília Luciana Lucena após “graves situações dentro de seu ambiente de trabalho”. Segundo ela, sua saúde foi abalada pelo assédio moral de um coronel. Como dava aulas de sociologia, ela tinha de deixar a porta da sala aberta para ser vigiada, sofria cobranças desproporcionais e foi humilhada pelo chefe na frente dos colegas. O colégio também desacatou ordem médica para mudá-la de departamento

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Entre as representações defendidas pela ONG de Araújo e Alcântara há abusos em treinamentos que lembram cenas do filme “Tropa de Elite” – como oficiais que recusam dar água aos recrutas. Ou excessos nos exercícios físicos que levam a mortes suspeitas. Os processos, julgados na Justiça Militar, acabam arquivados. Não raro, a lógica se inverte e quem denuncia o agressor vira réu. Em 2011, um jovem soldado disse ter sofrido um estupro coletivo no alojamento do quartel de Santa Maria (RS). O exame de corpo de delito confirmou a existência de sêmens diferentes, os militares chamaram de “brincadeira entre colegas” e o soldado foi acusado de praticar sexo consentido em local inapropriado. O caso ainda tramita, mas em segredo de Justiça. “Nada pode macular a imagem da corporação, por isso existe muita troca de favores para não levar os casos adiante”, diz o advogado Francisco Lúcio França, diretor do grupo Tortura Nunca Mais (SP). “Às vezes, nem o Ministério Público peita o Exército.”

Esse é o desespero da ex-sargento Rubenice de Nazaré Dias Martins. Ela era técnica de enfermagem no Hospital Militar de Marabá (PA). Nos recônditos do País, o serviço militar representa uma garantia de salário, estabilidade e até ascensão social. Rubenice afirma que, por esse motivo, jovens se submeteram a um esquema de orgias montado pelo tenente-coronel Alberto Almeida. Levados à praia do Lençol, eles seriam obrigados a fazer sexo com o superior para continuar na carreira. Em 2009, ela denunciou o caso a um tenente, acrescentando que meninas menores de idade também pernoitavam no hospital para ter relações sexuais com recrutas. “Não consegui ficar calada diante de tamanha covardia”, diz. Rubenice respondeu a sindicâncias por “transgressão à hierarquia e disciplina”, foi cinco vezes presa por não negar as acusações e transferida para fazer vigilância durante a madrugada no Batalhão da Selva – sendo que atuava com saúde e não sabia atirar. “Fizeram da minha vida um inferno, me desqualificaram de todas as formas”, diz ela.

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BATALHA
Após serem punidos por assumir relacionamento gay, os ex-sargentos
Alcântara (à esq.) e Araújo defendem outras vítimas do universo militar

Meses depois, outros soldados apresentaram fotos e vídeos das festas com a presença do coronel. Um inquérito policial militar foi aberto para apurar as denúncias, novamente arquivado por falta de provas. Rubenice pediu ajuda ao Ministério Público, mas o órgão não seguiu com a investigação. A ex-sargento alega que as testemunhas foram coagidas e ela própria foi perseguida a ponto de fugir para São Paulo, onde viveu cinco meses debaixo de viadutos e em albergues para mendigos. “E ainda assim recebi ameaças pelo celular, como ‘sua língua é muito grande, pare ou vai morrer’”, diz ela, que fez boletins de ocorrência e até tentou o suicídio. Aos 36 anos, solteira e sem filhos, hoje Rubenice mora em Belém na casa dos pais. É protetora de animais, está desempregada e sofre com síndrome do pânico. Em nota, o Exército afirma que as denúncias de Rubenice, “cuja suposta perseguição a teria levado a ser licenciada das fileiras do Exército, foram julgadas improcedentes pela Justiça Federal em Marabá, após as apurações pertinentes”.

O desfecho é recorrente não só no Brasil. Jessica Kenyon, ex-militar sexualmente abusada por colegas nos EUA, fundou a ONG Military Sexual Trauma para dar voz a outras vítimas. “Há uma relação de irmandade: se um oficial julga o outro, alguém que considera como um parente, você acha que vai acontecer o quê?”, diz Jessica. Para ela, somente quando militares de alta patente não forem mais blindados pelo sistema e receberem punições rigorosas as pessoas terão coragem de denunciar. Poucos se aventuram a desafiar uma instituição tão sólida – que deveria obedecer à legislação civil em uma democracia consolidada e não ter uma Justiça própria, como ocorre. Entidades de direitos humanos, como a ONG de Alcântara e Araújo, afirmam que a Justiça Militar é corporativista e lutam para discutir sua extinção, a exemplo do que aconteceu na Argentina após pressão de movimentos sociais. Medida que talvez reduzisse também casos de assédio moral, como o da professora de sociologia Luciana Lucena, 35 anos.

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RECRUTAS E ORGIAS
Quando trabalhava como técnica de enfermagem no Hospital Militar de Marabá, em 2009, Rubenice Nazaré denunciou um esquema de orgias homossexuais chefiado pelo tenente-coronel Alberto Almeida (na foto, vestido de mulher): “recrutas que não topavam eram perseguidos e não se estabilizavam na carreira.” O processo acabou arquivado na Justiça Militar. Cinco vezes presa por transgressão, ela foi transferida como vigia da madrugada na selva. Demitida, ela chegou a fugir para São Paulo e diz sofrer ameaças de morte ainda hoje.

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Ela foi aprovada para lecionar no Colégio Militar de Brasília. Embora nunca tenha servido no Exército, passou com “excelência” nos testes de resistência, controle emocional, exposição a situações de pressão e estresse. Em 2011, transferida para o terceiro ano do ensino médio, ficou sob a chefia do coronel José Paulo Fernandes. Por causa do conteúdo sobre Karl Marx e socialismo, vieram comentários sarcásticos de que a disciplina influenciaria de forma negativa os alunos. Os livros não falavam em ditadura militar, mas em “revolução democrática de 1964”. Ela teria recebido ordem para deixar abertas as portas da sala para estar sob vigilância constante. Em abril de 2012, Fernandes acusou Luciana de sumir com o cartão de respostas de uma aluna. Em tom de histeria, culpou-a diante dos demais funcionários, sem chance para defesa. A professora entrou em pânico enquanto procurava pelo cartão. Colegas contaram que ele havia sido rasgado pelo próprio coronel.

“Ainda existe uma forte misoginia e ele a responsabilizava por tudo”, diz um professor que não quis se i dentificar. Luciana voltou ao colégio no dia seguinte (e nos próximos) chorando, sem conseguir dar aula. Seguiram-se atestados médicos de afastamento para tratamento psicológico. Um deles diz que a paciente chegou “com sintomas compatíveis com ansiedade e fobia, desencadeados após graves situações dentro de seu ambiente de trabalho, e não tinha antecedentes psiquiátricos”. Em junho, uma Luciana “apta” voltou ao colégio com ordem médica para mudança de departamento. A chefia não atendeu e o quadro dela piorou, levando a meses de afastamento. O Exército diz que a solicitação de Luciana “foi considerada e só não pôde ser efetivada pelo fato de a oficial estar afastada para tratamento”. Os documentos mostram que a recomendação médica foi obedecida em novembro, cinco meses após o ates­tado.“Vivemos um momento que banaliza práticas como se fossem naturais”, afirma Lis Andrea Soboll, professora de psicologia da Universidade Federal do Paraná e autora de livros sobre assédio moral, sequência de ações hostis que constrangem e ferem a dignidade. “Não é legítimo usar tortura psicológica.”

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ESCÂNDALO AMERICANO
70 abusos sexuais por dia nas Forças Armadas

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Luciana acabou desligada e, ainda muito abalada, segue com seu tratamento. “Eu só queria ser de novo a professora dedicada e produtiva de sempre”, diz. Na Justiça, ela pede reintegração até a cura da doença. O Exército afirma que uma junta médica atestou que ela está “apta sem restrições”, por isso teve o contrato encerrado. Luciana diz que apenas uma tenente a avaliou e como “incapaz”. Outra professora do Colégio Militar de Brasília também obteve recomendação médica para não trabalhar com o mesmo coronel. “Há todo um esquema para dizer que a pessoa já tinha problemas pessoais antes de entrar no Exército”, diz Alcântara, hoje na reserva. Ele sobrevive com a remuneração de um estágio em direito. Araújo é licenciado por invalidez, continua em depressão e recebe uma quantia simbólica do Exército. O casal mora em Brasília e completou 16 anos juntos.


Fotos: Adriano Machado/Ag. Istoé; Leif Skoogfors/CORBIS


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