02/08/2000 - 10:00
São 20h58. A um quilômetro do estádio do Morumbi, em São Paulo, não se consegue mais andar de carro. Dentro de 42 minutos, começa a partida entre Brasil e Argentina, válida pelas Eliminatórias para Copa 2002. Raí, convidado pelo canal de tevê francês Plus para comentar a partida, pega carona no carro da reportagem e acaba preso no engarrafamento. Não vê alternativa. “Vou correndo”, avisa. Ele abre a porta e se lança na multidão de torcedores que caminha com passos apressados em direção ao estádio. Poucos se atrevem a falar com o ídolo e, em dez minutos, ele chega ao portão que dá acesso a fotógrafos e câmeras de tevê. Daqui para a frente vai ser assim. O jogador, que há duas semanas deu adeus ao futebol, quer estar mais perto do povo. Aos 35 anos, avô precoce de Naira, um ano e meio, ele pretende dedicar parte de seu tempo à Fundação Gol de Letra, instituição beneficente criada em parceria com o amigo e também jogador Leonardo, do Milan, da Itália. A Gol de Letra já atende mais de 150 crianças carentes na periferia de São Paulo. Longe do campo e com tempo livre, o jogador descobriu seu lado intelectual-politizado. Anda lendo Darci Ribeiro, Gandhi e repetindo que “está na hora de as elites históricas do País investirem nas massas”. Também quer estudar Filosofia, Antropologia ou Sociologia. “Sou um humanista”, define-se. Mas há planos também para as distrações mundanas. O ex-craque da Seleção Brasileira, Botafogo de Ribeirão Preto, Ponte Preta, São Paulo e Paris Saint-Germain, da França, quer aproveitar, e muito, os dias sem treinos, jogos e concentrações. Pretende dormir até tarde, viajar a Paris pelo menos três vezes por ano e renovar sua adega com bons vinhos franceses. Raí agora vai curtir a vida. Dinheiro não irá faltar. Comenta-se que o craque teria encerrado a carreira com o maior salário do futebol brasileiro: algo em torno de R$ 400 mil. Ele deu entrevista a ISTOÉ na sede da Fundação Gol de Letra, em São Paulo.
Cada jogador tem que saber qual é o seu. O meu é agora. É hora de enfrentar novos desafios. Estou me sentindo bem por ter parado. Foi num momento legal. Parei por cima, me recuperei da contusão (Raí ficou mais de oito meses parado em decorrência de uma lesão no joelho causada por uma entrada desleal do zagueiro Wilson Gottardo, do Cruzeiro, num jogo entre o tricolor paulista e o time mineiro válido pelo Brasileiro de 98) e ajudei o São Paulo a conquistar o Paulistão 2000.
Estaria mentindo se dissesse que estou inteiramente preparado. Ninguém está, ainda mais quando se passa 20 anos nessa rotina. Ainda não deu para avaliar os efeitos de minha decisão, mas tenho consciência das dificuldades que virão pela frente. Às vezes, é melhor não estar preparado mesmo. Deve ser pior ficar se enganando.
Fui capitão da Seleção durante os três anos que antecederam o Mundial. O problema é que nos momentos marcantes da Copa não fui bem. Eu reconheço que não estava na minha melhor forma. Havia também uma pressão muito grande. Era o homem de confiança do Parreira. Muitos queriam a sua saída. Como eu era o símbolo do time dirigido por ele, pediam a minha saída também. Apesar de tudo, sinto orgulho de ter sido coadjuvante daquele time. Não foi a Copa dos meus sonhos, mas foi a do sonho de milhões de brasileiros. Há 24 anos não comemorávamos um título.
Em 1998, Zagallo me convocou para o último jogo contra a Argentina antes da Copa, no Maracanã. Fui mal. Eu sabia que não era um dos preferidos do Zagallo, mas não tenho nada contra ele. Acredito que nem ele contra mim. Não se tratava de um problema pessoal e, sim, de uma opção tática e técnica dele. Mas não dá para negar que achei estranha aquela convocação. Desde a Copa de 1994, ele não tinha me chamado para nenhuma partida. Talvez fosse melhor nem ter jogado. Seria o mais lógico.
Os títulos são sempre importantes. Mas dois momentos ficarão marcados na minha memória. A primeira vez em que fui titular nos juniores do Botafogo de Ribeirão Preto (time que revelou Raí e o irmão Sócrates) foi um deles. Era uma partida preliminar do time profissional. Quando entrei em campo com aquela camisa 10, senti um prazer indescritível. Ali descobri o que queria ser na vida. Outro momento foi um dos jogos do Paris Saint-Germain contra o Lyon, em 1997. O time passava por um momento difícil. Como um dos jogadores mais experientes do grupo, pedi a palavra antes de entrarmos em campo. Foi uma coisa tão forte que quando acabei de falar (em francês) todos estavam chorando. Um companheiro de time chegou a dizer que se não ganhássemos aquele jogo nunca mais venceríamos partida alguma. Acabou 3 a 1 para nós. Senti o poder que poderia ter sobre o grupo. Levarei isso para o resto da minha vida.
Ele era um ídolo dentro de casa e me motivou a ser jogador de futebol. Sócrates era genial, craque. Eu fui atleta. Ganhei mais títulos, mas ele foi melhor jogador. Sócrates era fora de série.
Conheci uma civilização muito mais evoluída que a nossa. Percebi que coisas utópicas no Brasil lá são possíveis. A França é uma democracia cultural e educacional. Gente como a filha da minha empregada tem acesso a ensino público e sistema de saúde de qualidade e gratuitos. Para quem vem de um país como o nosso, é difícil acreditar que haja no mundo justiça social. Isso me deixou mais otimista, esperançoso.
Não sou um homem de pretensões políticas, mas de ações políticas. Quero usar o meu prestígio e a minha credibilidade para mobilizar a sociedade civil e o meio esportivo. Está na hora de as elites históricas do País investirem nas massas. Acreditar no potencial do povo é apostar num futuro mais digno para o Brasil. Não sou filiado e nem pretendo me filiar a nenhum partido. Meu instrumento de mobilização é, por enquanto, a Fundação Gol de Letra.
Votei nele na última eleição. Hoje, dificilmente votaria de novo. Fernando Henrique não desenvolveu um plano social radical, a exemplo do que fez para a economia com o Real. Esperava que ele colocasse para fora seu lado sociólogo. A educação é fundamental para a mudança do Brasil e não se investiu nela. Como é um investimento a longo prazo, os resultados só aparecerão daqui a algumas gerações. Mas não adianta só culpar o presidente. A sociedade civil precisa se mobilizar, pressionar, cobrar das autoridades. Por isso vejo com bons olhos o crescimento de movimentos como o dos sem-terra e, recentemente, dos professores aqui em São Paulo. Apesar de alguns excessos, que eu não aprovo, são esses legítimos movimentos que fazem a coisa ir na direção que a gente quer. As reivindicações são justas. Há muito deveriam ter sido atendidas.
Nosso objetivo é dar credibilidade à fundação. A intenção é desvinculá-la dos nomes do Raí e do Leonardo. A partir do momento em que ela tiver conteúdo – essa palavra está na moda hoje em dia – vai decolar e se sustentar sozinha. A idéia é que ela tenha também outros presidentes. De preferência, esportistas.
Bem. Atendemos a 150 crianças carentes no projeto Virando o Jogo na Vila Albertina (periferia norte de São Paulo). Estamos procurando parceiros para implantar uma creche no mesmo local. Nesse fim de semana começa a funcionar o projeto A Cara da Vila. Toda a comunidade poderá participar de oficinas de arte e leitura e desenvolver atividades físicas. No próximo ano, começará a funcionar a unidade Niterói, no Rio de Janeiro, numa casa cedida pelo Leonardo.
Para mim não vale muita coisa. Mas reconheço que ter uma imagem legal me trouxe alguns benefícios. Principalmente em relação à exposição na mídia. Fora isso, não vejo muita vantagem, não. Tem tanto jogador bom que não é bonito… Na verdade, penso o contrário. Se não tivesse conquistado tanto, não seria considerado tão bonito. Quando me convidaram para ser capa da revista francesa Elle, depois da Copa, fiquei assustado. Fui o primeiro homem a sair na capa da Elle. A tendência é essa. As mulheres estão se permitindo olhar para os homens como objeto de desejo. Mas no começo da minha carreira ninguém falava da minha beleza.
Eu procuro me vigiar. Todo tipo de assédio mexe com o ego. Mas você não pode deixar que isso atrapalhe. É lógico que, às vezes, é meio constrangedor. Principalmente quando se está acompanhado e vem alguém lhe pedir um beijo ou fica gritando por onde você passa. Mas também é engraçado. Outro dia, uma senhora, e não é a primeira, entre 60 e 70 anos, me parou na rua e perguntou “se não dava para tirar a areia do calção”. Dei risada (ela se referia ao comercial das sandálias Havaianas, em que o ex-craque é paquerado por uma garota num chuveiro de praia).
Não. Nada a ver com isso. Hoje a visão da mulher é outra. O mundo mudou. Existe o stress normal de uma relação. Mas não quero falar de minha vida particular. O que posso dizer é que Cristina foi a grande responsável pelo sucesso da minha carreira (visivelmente irritado).
Não sei, mas padre eu não sou.
Falaram dela, de outras. Todo o dia aparece uma. Não gosto de tocar nesse assunto. Para mim é algo complicado. Tenho duas filhas. Esse é um assunto que prefiro guardar para mim.
Sem dúvida, a sensibilidade. Lá em casa são seis homens. Meu pai é um cearense muito machista. O jogador de futebol é criado para ser insensível, agressivo. É por isso que eu prezo tanto essa qualidade. Apesar de viver nesse meio, me considero um homem sensível. Devo isso a minha mãe. Herdei a sensibilidade dela, uma santa. Mas, como todo homem, preciso melhorar muito ainda.
É sempre bom poder trazer um público novo para o futebol. Fico feliz quando as mulheres dizem que passaram a assistir aos jogos do São Paulo na tevê por causa da minha presença. É gratificante.
Não são coisas que gostaria de fazer. Você acha que eu seria um bom ator? Não tenho talento para isso, não. Quanto a ser comentarista é algo que agora eu descarto. Mas é complicado dizer que nunca farei.
Como diz um filósofo existencialista francês que não me lembro como chama, “Nós estamos condenados à liberdade”. Agora terei o direito de acordar tarde sem obrigação de fazer nada. Pretendo estudar inglês em Londres e ir, pelo menos três vezes ao ano, a Paris. Gostaria de ser uma espécie de embaixador do esporte brasileiro, mas sem vínculo governamental. Vou aproveitar essas viagens para reabastecer a minha adega. Meus estoques de Chateau Margot e Petrus acabaram. A cozinha francesa também é ótima. Poderei ir quantas vezes quiser ao La Apart, meu restaurante preferido em Paris. O magret de cannard (tradicional receita francesa feita com pato) deles é maravilhoso. Também quero estudar, crescer ainda mais como pessoa. Minha atenção será direcionada para a área de humanas. Eu me considero um humanista. Ainda não tenho nada muito claro. Estou entre Filosofia, Antropologia e Sociologia. Qualquer que seja a escolha, quero conciliá-la com alguma atividade esportiva.
Gostei muito do novo CD da Marisa Monte (Memórias, crônicas e declarações de amor). E do último do Zeca Baleiro (“Vô Imbolá”). Para entender um pouco dessa mistura que é o nosso país resolvi ler O povo brasileiro, do Darci Ribeiro. Mas estou fascinado mesmo é com uma biografia do Gandhi. É uma grande referência. Uniu a evolução espiritual à prática política, com valores de não-violência e verdade absoluta. É um dos poucos ídolos que tenho.