Não estou aqui para aguar a festa cívica de ninguém. Mas, se não vivesse lotado de dúvidas, concordaria sem pestanejar com o universitário carioca a quem indaguei, na quinta-feira 27, a data da próxima ‘marcha dos 100 mil’ no Rio de Janeiro:  “acho que zoou…”, respondeu o estudante quase imberbe, no tom de quem informa as horas. Nada contra essa aparente descrença na chama perene das ruas. Afinal, é tão brochante constatar que nossas manifestações de massa são separadas por décadas, às vezes algumas décadas, quanto insano pretendê-las diárias, permanentes. Assim, arrisco aqui o palpite de que está encerrado não apenas o memorável Junho Incandescente, mas, também, a série de eventos populares que, ao menos na dimensão vista, colaram no mês o carimbo de histórico. Creio que ‘o Monstro’, depois de bafejar no cangote de governantes e políticos, recolheu-se para merecido descanso, sem despertar visível no curto prazo.  Muitos, como eu, lamentam. Parece-nos que o bicho voltou à caverna cedo demais, talvez com a sensação de ter abatido e devorado as presas pelas quais foi à luta. Mas… abateu mesmo? Devorou mesmo? Essa saciedade corresponde a algo real? Ou será que a caça, como tanto sabemos, é daquelas que sob ameaça lançam mão de um arsenal de instintos de sobrevivência, que vão desde aspergir veneno até mudar de cor e forma fingindo ser o que não são? Outras se fingem de mortas, imóveis, silenciosas, até que o predador saia de cena, escolha outro almoço. Há, ainda, as mais astutas, capazes de induzir o próprio predador a parcerias, levando-o a crer algo mais promissor do que tem ao alcance de seus dentes. O fato é que tivemos três semanas memoráveis, das quais nos lembraremos por gerações, não resta dúvida. O problema surgirá se nossos filhos perguntarem: “E aí?”. Pois é… E aí?

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DEPOIS DA LUTA
Manifestante descansa após participar de protesto,
que chegou a reunir 300 mil pessoas no Rio de Janeiro

O Junho Incandescente foi único sob vários aspectos. O preço das passagens lhe deu início, claro, mas, como se lia nos cartazes, “não é só por causa dos R$ 0,20”. De fato, foi por muito mais. Mas não foi revolução; não pregou queda de governo, mudança de regime, reforma constitucional. Não pediu alteração de calendário eleitoral, cassações, fechamento do Congresso, etc. Nem mesmo o “Fora Feliciano” conseguiu unanimidade, tamanha a variedade de desejos a pulverizar a voz da multidão. O tsunami de gente carregava tantas demandas e expectativas, que parece mais lógico identificá-lo por um sentimento coletivo do por esta ou aquela bandeira. Nesse sentido, brasileiros, orgulhemo-nos. Que outra geração, mesmo em outros países, fez movimento tão expressivo tendo um sentimento como combustível principal quase único? Sem uma reivindicação ou alvo categóricos? Pois arrisco dizer: nas últimas muitas décadas, nenhuma. Os brasileiros, em síntese, reclamaram por respeito. Respeito do Estado e de seus agentes, num país onde o Estado se tornou posse dos políticos e de seus sócios.
Mas… “e aí?”.

Tivemos três semanas memoráveis, das quais nos
lembraremos  por gerações. O problema surgirá
se nossos filhos perguntarem: “E aí?”

E aí que o resultado das conquistas, pelo menos até agora, está muito aquém do mínimo necessário para, de fato, alimentar qualquer monstro que se dê ao respeito. As abobrinhas anunciadas no eixo Planalto-Congresso não merecem o nome de “resposta ao clamor popular”. Ouviram mal ou, então, brincam com fogo.  Na verdade, Brasília espirrou um misto de enrolação, promessas para um futuro distante e assassinatos indolores de bodes na sala. Isso mesmo: bodes na sala. Ou será que podemos chamar de conquistas a revogação dos aumentos de tarifas no transporte público? A rejeição da PEC 37? A (essa é de morrer de rir) possível prisão de um deputado ladrão de Rondônia? O voto aberto para cassação de congressistas? Talvez, ampliando a lista, a anulação da cura gay? Qual dessas “conquistas” não significou (ou significará, no caso da última, ainda incerta) apenas recuo explícito dos próprios autores do erro? Os ônibus, trens e metrôs aumentaram não por uma necessidade econômica, mas para honrar planilhas indecifráveis, fruto de acertos entre empresários do setor e governantes.  A PEC 37 era um projeto nascido na Câmara, reduto de incontáveis réus potenciais das investidas do Ministério Público. A licença para prender o larápio Natan Donadon se deu quase 20 anos depois do crime! E, cereja do bolo, foi o primeiro castigo do gênero que o bravo STF aplicou em toda sua existência mais que secular. Quem estiver satisfeito comemore. Nesse contexto, aliás, é preocupante constatar o entusiasmo das manchetes diante da nova tentativa de classificar corrupção como crime hediondo. A questão da corrupção no Brasil, como bem mostra o caso acima, não é de classificação penal, mas do não cumprimento, pela Justiça, de suas mais elementares obrigações.

O resto do prato oferecido ao monstro é a tal reforma política e o plesbicito que a pariria. Não merece ser analisado. É pouco, é distante, e acordo deles com eles mesmos. Devem estar rezando, todos os dias, para o sono do monstro ser profundo. Se possível, eterno.

Foto:Silvia Izquierdo/AP/Glow Images