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REVIGORADO Com uma mudança de casa dom Paulo ganhou qualidade de vida

A música clássica costuma ­ecoar pela casa de dom Paulo Evaristo Arns, sempre de noite, durante cerca de uma hora e meia. Antes, enquanto o sol ainda brilha, caminhadas e mais caminhadas, orações, celebrações e muita leitura ocupam o dia do franciscano de origem catarinense, que acorda às 7h e vai se deitar às 22h. Nessa simples e prazerosa rotina, o arcebispo emérito de São Paulo (1970-1998), uma das figuras mais importantes da Igreja Católica do Brasil, completou 88 anos em setembro. Dom Paulo está antenado com o que acontece no mundo – lê revistas em inglês, francês, italiano e alemão, a “Bíblia” em grego e dois jornais diariamente –, com a saúde em ordem e a memória, segundo amigos, bem acesa.

A atividade intelectual se mantém tão vibrante que ele acaba de lançar seu 58º livro, “Ano Sacerdotal: Reminiscências e Testemunhos” (Ed. Paulinas), um misto de memórias, registros e avaliações sobre a atividade religiosa masculina. Figura importante no passado político brasileiro, dom Paulo conta na obra que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, responsável pela tortura de militantes políticos e estudantes durante a ditadura militar, chegou a lhe perguntar se havia perdão para ele e narra o diálogo que teve em uma paróquia com a mãe de Fleury. “O senhor conhece meu filho. Ele é bom, né?”, perguntou-lhe ela. “A senhora reza por ele? Hoje em dia é um perigo ser delegado como ele”, respondeu o religioso.

“Antigamente, eu vivia para o povo de Deus. Agora, vivo só para Deus”
dom Paulo Evaristo Arns

“Muitos têm a impressão de que dom Paulo está no fim, de cadeira de rodas. Que nada! Vira-se sozinho, caminha, reza, lê, escreve e recebe visitas”, conta o frei Paulo Back, 66 anos, que esteve com o cardeal, seu primo, na quarta-feira 9. A verdade é que dom Paulo optou por uma vida mais reclusa, o que deu margem a rumores sobre seu real estado. “Antigamente, eu vivia para o povo de Deus. Agora, vivo só para Deus”, explica ele a amigos, uma vez que está avesso a entrevistas. Pode-se dizer, porém, que suas atividades são até agitadas para alguém da sua idade.

Desde que se mudou, há dois anos, para uma ala reservada do convento das irmãs franciscanas, em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, dom Paulo experimenta um ânimo que lhe faltava quando ainda morava em uma casa da arquidiocese de São Paulo, no bairro do Jaçanã. “Ano Sacerdotal: Reminiscências e Testemunhos”, livro que escreveu “para dar apoio ao papa”, como costuma dizer, ao qual ISTOÉ teve acesso com exclusividade, foi escrito nesse período. Convocado por Bento XVI em junho, por ocasião do aniversário da morte de João Maria Vianney (o patrono dos sacerdotes), o Ano Sacerdotal será celebrado pela Igreja Católica até meados de 2010 – por conta disso, o cardeal insistiu para que a Editora Paulinas o finalizasse até o Natal.

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DIA DE VISITA Reunido com amigos e um primo em uma casa: papo animado

A obra tem três partes. Na primeira, dom Paulo se dedica às lembranças da igreja de São Paulo e dos padres que ajudaram a construí-la. Na sequência, enfileira os símbolos e os textos fundamentais dos sacerdotes e relembra os religiosos mais importantes da história da Igreja Católica, desde o século I. Na terceira, mostra uma relação dos 294 padres ordenados pelo arcebispo emérito, desde 1967. E, entremeando o livro, reminiscências da história política e de uma postura crítica no meio eclesiástico, o que lhe rendeu retaliações por parte do Vaticano (leia trechos na pág. 54).

Além do ar renovado pela cidadezinha nas cercanias de São Paulo, algumas efemérides também tornam especial o atual momento do cardeal. Na quarta-feira 9, ele completou 70 anos de posse do hábito de São Francisco de Assis. Comemora, ainda neste ano, 65 anos de ordenação, ocorrida em Petrópolis, no Rio de Janeiro. E da primeira missa feita em sua cidade natal, Forquilhinha (SC). Mais: em 2010 fará 40 anos que ele foi nomeado pelo papa Paulo VI arcebispo de São Paulo.

Na terça-feira 8, dom Paulo matou a saudade de sua Forquilhinha. Uma de suas primas, Ilma Arns, 64 anos, o visitou e levou um vídeo do aniversário de 90 anos da mãe dela, celebrado na cidade catarinense. Sentado no sofá com as pernas sobre um pufe, recomendação médica para facilitar a circulação, o arcebispo emérito se divertiu relembrando várias passagens de sua vida. Ele havia sido convidado para a festa, mas preferiu ficar em São Paulo. Como agradecimento, redigiu de próprio punho uma carta à aniversariante. “Nossa! Ele escreveu?”, surpreenderam-se alguns parentes ao ver o bilhete. “Mas ele não estava mal de saúde?” Talvez pela distância, seus familiares se esqueceram que dom Paulo protege sua saúde com força semelhante à que usou para abrir a Catedral da Sé, em 1975, para um culto ecumênico em protesto contra a tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog. “Ele é metódico e regrado com os remédios que toma para o coração e a circulação”, diz Ilma. O cardeal já venceu um linfoma no olho esquerdo e uma trombose na perna direita.

Além da mudança de casa, o implante de um marcapasso no coração de dom Paulo, há dois anos e meio, foi fundamental para a melhora de sua qualidade de vida. Desde então, o religioso deixou de se exercitar na esteira e na piscina, por precaução, e passou a sair menos de casa. Por outro lado, apesar de a bengala e as irmãs da ordem franciscana serem suas companhias constantes, ele anda esbanjando energia, realizando diariamente quase uma dezena de sessões de caminhadas. “Ele conversou uma hora e meia ininterruptamente com a gente”, conta dom Bernardo Johannes Bahlmann, 49 anos. “E está por dentro de atualidades. Conta mais coisas para nós do que o contrário.” Bispo de Óbidos, no Pará, Bahlmann o visitou há duas semanas, acompanhado de dois frades ex-alunos do cardeal. “Frei Juvenal, craque do basquete!”, saudou dom Paulo o amigo de 83 anos. “Frei Antonio, como anda ‘Sarrrrto’?”, brincou ele com o outro, de 84, natural da cidade de Salto, interior de São Paulo, onde a pronúncia com o erre puxado é corriqueira.

Recentemente, uma tremedeira na mão direita que o acompanhava desde a juventude – e surgiu, em suas palavras, como sequela de um tratamento inadequado realizado em seu ombro, deslocado em uma partida de handebol –, deixou de existir. “Alguns diziam que ele sofria de Parkinson. Mas não percebi tremedeira alguma dessa vez”, conta dom Bahlmann. “Antigamente dom Paulo escondia um pouco a mão, talvez envergonhado com os tremores. Mas, já há algum tempo, não faz mais isso e conversa gesticulando bastante”, confirma frei Paulo, seu primo. Assim, uma das grandes personalidades brasileiras segue sua luta – caminhando de dia e cantando de noite do alto de Taboão da Serra e de sua rica história. “Dom Paulo é um expoente da brasilidade que defendeu, mais do que a religião católica, a pátria, o povo em nome de Jesus Cristo”, afirma o cônego Celso Pedro da Silva, professor emérito da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção.

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