Depois de passar nove anos na cadeia pelo sequestro de Abílio Diniz, o brasileiro Raimundo Roselio desabafa e critica a guerrilha de El Salvador

Maguila" para os chilenos, "cipitio" para os salvadorenhos, "lelé" para a mãe e os irmãos. Mas no Sistema Penitenciário Carandiru, em São Paulo, ele teve apenas o número como identificação – 68859. O cearense Raimundo Roselio Freire, 34 anos, único brasileiro a participar do sequestro do empresário Abílio Diniz em 1989, tem no currículo, além de muitos codinomes, a história de uma operação mirabolante para levantar fundos para a guerrilha salvadorenha, de um calvário jurídico e penitenciário que durou quase dez anos e de uma greve de fome de 46 dias, a maior já realizada no País e a terceira maior do mundo. No último dia 30 de abril ele ganhou a condicional, mas a liberdade está ainda impregnada por cenas e medos do passado. Mesmo depois de quatro meses do fim da greve, o antigo soldado das Forças Populares de Libertação (FPL) de El Salvador ainda não consegue comer direito.

Militante de esquerda no Ceará, Roselio deu uma guinada de 360 graus aos 23 anos de idade. Vendeu o carro, largou o emprego, o apartamento, a namorada, a faculdade e foi para a Nicarágua lutar contra as ditaduras latinas. Tornou-se um guerrilheiro da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, de El Salvador, da qual as FPL faziam parte. No ano em que o Brasil vivia a ebulição da sua primeira eleição direta para Presidência, Roselio se viu em uma nova encruzilhada, participar de uma missão em São Paulo que poderia render US$ 32 milhões para a guerrilha. O suficiente para uma ofensiva final em El Salvador. Mas uma sequência de erros primários teve um efeito dominó e transformou a operação em desgraça para os dez militantes condenados e presos no Brasil. Foi o adeus às armas.

Roselio levou tempo na prisão para juntar as peças que faltavam do quebra-cabeça que se chamou Operação Carmelo. Por participarem do sequestro de Abílio Diniz, eles atraíram o ódio de um país. Para a imprensa, eram bandidos, delinquentes, doidos de pedra. Para a Justiça, merecedores de uma pena de 28 anos de prisão. Hoje, salvo-conduto na mão, ele está em sua terra natal, o Ceará, acostumando-se novamente a atravessar a rua, a dominar as dificuldades dos comandos de um micro ou de um simples telefone sem fio. Nos últimos dez anos, no Carandiru, ele fez faxina e trabalhou na cozinha, agora vai ter que arranjar emprego, livrar-se dos pesadelos à noite e encontrar um sentido para a liberdade. Nos próximos sete anos ele também vai ter que levar uma vida de monge, ou quase, com as normas da condicional. Mas, para um ex-guerrilheiro ateu, talvez seja mais difícil atender a um pedido da mãe, dona Maria Eulíria: subir a pé o horto de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, um dos maiores centros romeiros do País, para uma oração de agradecimento. Por enquanto, ele prefere esperar.

ISTOÉ – Depois de quase dez anos na prisão, o que o sr. pretende fazer?
Raimundo Roselio Freire

 Eu acho que vou voltar a viver. Fui tentar mudar o mundo e acabei participando de um processo equivocado. Hoje eu tenho algumas prioridades. Uma delas é voltar à universidade na qual fui um bom militante, mas um péssimo estudante. O papel de militante que quero desempenhar diz respeito aos argentinos que permanecem no Carandiru, Humberto e Horácio Paz.
 

ISTOÉ – Como estão as negociações no caso deles?
Raimundo Roselio Freire

Falta vontade política do governo FHC. Foi estabelecido um protocolo de intenções e hoje a Justiça não se dispõe a cumprir. Convém lembrar que os dois canadenses saíram no sexto dia de greve de fome. Uma semana depois, eu vim para Fortaleza e agora estou em liberdade condicional. Os chilenos, foram embora, mesmo com atraso. Foi firmado um protocolo de intenções entre Brasil e Argentina. Agora os companheiros já pensam em uma nova greve de fome se não for cumprido o acordo.
 

ISTOÉ – Se eles decidirem por uma nova greve, como será o apoio do sr.?
Raimundo Roselio Freire

 Só posso dar apoio político e denunciar o não-cumprimento desse acordo. Eu não posso quebrar a minha condicional, tomar uma atitude burra.
 

ISTOÉ – O sequestro prejudicou Lula na eleição de 1989?
Raimundo Roselio Freire

 Evidente que sim, porque a própria Anistia Internacional não engloba na sua luta os delitos cometidos por armas.
 

ISTOÉ – Qual o papel do secretário de Direitos Humanos, José Gregori, nos acordos de libertação?
Raimundo Roselio Freire

 O sr. José Gregori fez um papel, acima de tudo, vergonhoso. Nós tínhamos conhecimento que todas as vezes que havia uma pretensão de Fernando Henrique de expulsar os estrangeiros e conceder indulto ao brasileiro, o José Gregori era o primeiro a ceder às pressões do sr. Abílio Diniz. Sabíamos que essa pressão era feita porque Abílio Diniz tinha um amigo leal no poder, o Bresser Pereira, hoje ministro da Ciência e Tecnologia.

ISTOÉ – Na hora da operação, as FPL não pensaram na esquerda brasileira, que estava às vésperas de uma eleição. O sr. concorda?
Raimundo Roselio Freire

 É muito fácil dizer que foi só um equívoco. Os comandantes de El Salvador sabiam que havia um processo em curso, analisaram a situação errada e não tiveram a obrigação moral de defender seus combatentes. E aí eu questiono isso porque quando fui combater em El Salvador a primeira coisa que aprendi dos meus comandantes foi que não se abandona um combatente em uma frente de batalha.
 

ISTOÉ – O sr. se sente traído?
Raimundo Roselio Freire

Eu me sinto, em nome de uma lógica política, da legalidade política da Frente Farabundo, eu me sinto… abandonado nessa história toda. Nós sabíamos que o governo Fernando Henrique se sentiria mais aliviado por tomar a decisão de expulsar os estrangeiros e conceder indulto ao brasileiro se os companheiros da Frente Farabundo Martí reconhecessem a participação. O PT no Brasil, que foi prejudicado no processo eleitoral em 1989, teve uma postura digna. Porque tomou a posição de apoiar o processo pela nossa libertação. As organizações foram poupadas em nome dessa legalidade na América Latina e nós permanecemos presos.

ISTOÉ – O sr. preservaria mais uma vez essas organizações?
Raimundo Roselio Freire

 Seria burrice defender uma luta equivocada do passado. Em determinada conjuntura tivemos que recorrer às armas, a métodos de luta, como foi o sequestro naquele momento. No entanto, devemos lembrar que hoje temos uma democracia porque companheiros como Lamarca e Marighella ousaram com essa forma de luta.

ISTOÉ – E a sua trajetória política?
Raimundo Roselio Freire

 Eu comecei minha militância aos 15 anos e aos 16 fui centralizado numa organização trotskista chamada Convergência Socialista, ligada à Quarta Internacional.
 

ISTOÉ – Mas como aconteceu a ligação com as organizações internacionais?
Raimundo Roselio Freire

 Eu achava que podia ser útil como militante internacionalista na América Central, uma vez que a democracia começava no Brasil. Aí, eu vendi o meu carro, os amigos fizeram uma cota e eu comprei a passagem até a Nicarágua. Deixei a companheira, a faculdade de História, o meu trabalho como chefe de recepção de um hotel quatro estrelas, o apartamento classe média e fui embora. Na Nicarágua, não era só discurso. Lá tínhamos uma guerra. Integrei-me às atividades armadas. Hoje, ainda pago um preço emocional e pessoal por esse sofrimento de guerra.
 

ISTOÉ – Quais eram suas funções como militante na Nicarágua?
Raimundo Roselio Freire

 Eu estive por um ano nas estruturas políticas e militares da Frente Farabundo Martí, dividido nesse espaço entre Nicarágua e El Salvador. No começo em estruturas legalizadas. Posteriormente eu tive formação militar de guerrilha em Manágua e fui transferido para El Salvador. Dentro das estruturas compartimentadas de uma organização guerrilheira você cumpre ordem, é mandado e obedece sem questionar. Assim eu fiz. Em 1989, contra a minha vontade, fui enviado de volta ao Brasil para cumprir uma operação. Mas em hipótese nenhuma eu sabia do que se tratava. Era uma tarefa de apoio à revolução. Eu não queria voltar porque sabia que naquele ano a Frente Farabundo Martí desfecharia uma ofensiva final contra a ditadura de El Salvador. Vim contra a vontade, pois eu queria participar da ofensiva.
 

ISTOÉ – O que fazia logo que retornou ao Brasil?
Raimundo Roselio Freire

 Vim com um superior militar. Em São Paulo, fiquei aguardando instruções, sendo remanejado de hotel a hotel. Fui orientado a elaborar relatórios sócio-econômico-políticos do Brasil. Eu imaginava, ingenuamente, que havia uma ligação com a ofensiva final, talvez abrir escritórios de apoio ao governo revolucionário de El Salvador no Brasil. Essa primeira fase durou quatro meses. Recebi instrução para vir a Fortaleza despedir-me de minha família e isso me pareceu algo assustador. Mas, como guerrilheiro, imaginei que ia voltar para a frente de combate. Nunca se falou em sequestro.
 

ISTOÉ – Em que momento, o sr. passou a saber?
Raimundo Roselio Freire

 Já no segundo semestre de 1989, fui transferido para um bairro chamado Bosque da Saúde. Eu ficaria nessa casa até um dia antes do sequestro. O que eu fazia? Primeiro, as condutas eram bem estabelecidas. Aguardávamos instruções. Lá eu só veria companheiros que eu já havia conhecido entre Manágua, Equador e Brasil. Esses eu podia ver o rosto. Quando outros chegavam, eu era instruído a ficar de capuz ou retirar-me em determinadas horas. Aí passei a fazer relatórios sobre o serviço de segurança no Brasil, como funcionavam as polícias Militar e Civil. Eu passei a rastrear a polícia com rádios de frequência. No domingo, às vésperas do sequestro, soube do que se tratava. Não havia retrocesso. O comando era vertical. Para ser transferido para a casa onde Abílio Diniz ficaria, fui sedado e parti apenas com uma pequena valise. Não me coloco na posição de vítima, eu não fui usado. Era consciente. Não saber das coisas fazia parte de um esquema de segurança. A casa estava vazia, era um sobrado. Lá, a única pessoa de quem eu ia ver o rosto seria o Humberto, comandante da operação no Brasil. Eram duas escolas de guerrilha bastante distintas envolvidas na operação: El Salvador e Chile. O MIR diria que em toda a sua história nunca falhou em um sequestro, só no de Abílio Diniz.
 

ISTOÉ – Qual foi a falha do sequestro?
Raimundo Roselio Freire

 O carro que eu havia preparado para ser ambulância teve um problema no câmbio. Levaram para o conserto. A oficina exigiu um telefone e os caras deram o número do flat onde estavam os chilenos e que iria ser abandonado. O mecânico jogou um cartão com telefone da oficina, uma propaganda, no carro e esse papel caiu em uma parte qualquer, ficou escondido. O grupo anti-sequestro encontrou esse carro, desmontou tudo atrás de pista e achou o fio da meada. Quando a polícia chegou no flat encontrou Ulisses Gallardo pagando a conta. De um papel no bolso de Ulisses eles chegaram a outra casa do esquema. Ulisses foi o primeiro a ser torturado. Os próximos presos foram Pedro Lembach e Sergio Urtubia. Nós não sabíamos de nada. Depois prenderam Humberto e a Maria Emília.
 

ISTOÉ – Como a polícia chegou até o cativeiro?
Raimundo Roselio Freire

 Cinco pessoas foram presas, mas só uma sabia da casa onde o Carmelo estava: Humberto Paz, que foi torturado a noite toda. Aliás, sob tortura estava todo o comando da operação. Eles então decidem entregar a casa, não havia saída. De manhã, acordo com uma gritaria. A porta do meu quarto estava aberta e os companheiros embaixo gritavam "la policia, traga el chancho" (o porco, em espanhol). Eu pensei que era uma simulação de guerra, já que no meio da semana havia tido uma. Desci com uma pistola na mão e uma metralhadora na outra. Quando eu olho para a porta me surpreendo: várias pistolas apontadas para mim e o Abílio saindo do quarto subterrâneo. A casa estava cercada e Humberto Paz algemado e ferido. A polícia achou que ia nos surpreender, mas a nossa reação foi rápida. Tomamos Humberto e o controle relativo da situação. Era alto risco. Esse bafafá começou no sábado pela manhã e a polícia ficou com a casa cercada até o domingo. A polícia ainda não sabia que havia um brasileiro. Então, como Humberto estava mal, o irmão dele, Horácio, começou a se passar por ele nas negociações. Queríamos ganhar tempo para que algum companheiro fugisse, para queimar os documentos.
 

ISTOÉ – O sr. foi torturado?
Raimundo Roselio Freire

 Fui bastante. Quando chegamos, houve espancamento brutal até que chegou o homem que garantiria nossas vidas a partir daí: dom Paulo Evaristo Arns. A Justiça nos deu uma pena severa demais. Nós cometemos um erro que tinha uma motivação política. Para a polícia, explicamos que éramos militantes e estávamos criando uma nova organização. Não podíamos falar que éramos do MIR chileno nem de El Salvador. Esperamos dez anos a compreensão e ajuda desses companheiros de organização.
 

ISTOÉ – O sr. se arrepende?
Raimundo Roselio Freire

 Eu acho que eu não poderia me furtar. Estava envolvido em meus princípios, em minha ideologia e na minha luta. Eu não renego a luta armada.

ISTOÉ – Como foi a história do caixão para o caso de o sequestrado ser morto?
Raimundo Roselio Freire

Essa história é descabida. O que na verdade havia era uma estrutura de madeira e não um caixão. Essa estrutura deveria ficar no chão da perua Kombi, uma espécie de fundo falso, mas foi retirada e estava dentro da casa quando a polícia chegou. Era uma idéia para transportar armas ou o próprio Abílio na hora de devolvê-lo ou ainda parte do montante do pagamento de US$ 32 milhões. Se você analisar a situação operativa do sequestro, era inconsequência nossa ter que assassinar a pessoa e depois ter o trabalho de carregar e enterrar. Essa peça de madeira, inclusive, nunca foi mostrada à imprensa. Houve um intuito de passar para a população que aquilo era um caixão e que íamos matar Abílio Diniz.
 

ISTOÉ – Qual seria sua reação se um filho seu ou parente mais próximo fosse sequestrado?
Raimundo Roselio Freire

De profunda dor e incerteza. É uma coisa feia. No caso da Operação Carmelo foi uma forma de luta política, mas eu sentiria muita dor.
 

ISTOÉ – O sr. pretende ter atuação política, se filiar a algum partido, disputar cargos públicos?
Raimundo Roselio Freire

 A militância política continua. Quanto a partidos, a cargos isso são coisas em que não penso. Quero sentir que estou livre, reorganizar minha vida. Aos 16 anos me engajei numa luta política, com seu romantismo, com seus métodos equivocados. Agora, eu tenho que tirar a experiência de seguir lutando sem recorrer a métodos do passado. Quero voltar à faculdade e arranjar um emprego. Retomar minha vida.