Na última semana, duas mulheres sensibilizaram os senadores da CPI do Judiciário. Maria Aparecida Salles e Cristiane Lopes fazem parte das Mães da Praça do Fórum de Jundiaí (SP), grupo que acusa o juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira de retirar seus filhos de forma arbitrária para remetê-los ao Exterior. No Senado, acompanhadas do advogado Marco Antônio Colagrossi, Maria Aparecida contou como três de seus filhos foram parar na Itália. Cristiane revelou ter tido contato com Leonardo por cerca de seis horas. "Arrancaram o bebê no hospital, quando ele estava começando a mamar", disse emocionada. Indignados com o que ouviram, os senadores resolveram acelerar as investigações. Na quarta-feira 12, decidiram quebrar o sigilo bancário, telefônico e fiscal de Beethoven e, na próxima semana, a CPI deverá estar em Jundiaí para ouvir outras mães e buscar documentos. Certamente, voltarão a Brasília ainda mais chocados.

Novos casos descobertos por ISTOÉ mostram como Beethoven nem sempre trabalhou afinado com os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente. Um desses princípios diz que, na impossibilidade de uma criança ser mantida junto aos pais biológicos, se devem fazer todos os esforços para que ela fique com alguém da família. Não foi isso o que aconteceu com Égon, um garoto de nove anos. Em 1996, seus pais – ele alcoólatra e ela prostituta – perderam os direitos sobre o filho. No início de 1997, Márcia e Nilson Santana, tios do menino, pediram a guarda da criança. O casal vive em uma casa própria de quatro cômodos e tem três filhas. Márcia é dona de casa e Nilson é vigilante. Beethoven negou o pedido. "Foi um choque. Desde que o menino nasceu sempre esteve conosco. De repente fomos impedidos até de visitá-lo", lembra Nilson.

Durante quase três anos Égon ficou internado em uma instituição de Jundiaí sem receber visitas. "Só o juiz ia lá. Ele dizia que eu iria para a Itália e que meu novo pai seria o Rodolfo", afirmou o garoto a ISTOÉ na presença dos advogados Nivaldo Bonassi e Maria Roseli Orrutia. Em 29 de dezembro do ano passado, Nilson e Márcia pediram para que o garoto passasse as festas de fim de ano com eles. Beethoven encaminhou o pedido ao Ministério Público e a promotora Silvia Pestana despachou imediatamente: "Não me oponho que o menor passe ao convívio dos familiares", escreveu. Mesmo assim, o juiz negou o pedido com base em uma informação da assistente social Vitória Delfino, datada de 11 de dezembro. O documento diz o seguinte: "Não pudemos ir pessoalmente à entidade onde se encontra o menor por falta de condução….. soubemos que o menor pede para ser adotado e diz que os tios moram em um cortiço." Em sua decisão, Beethoven afirma: "A entidade confirmou-me o fato… …indefiro a medida."

 

De volta ao lar A sorte de Égon mudou em fevereiro, quando o juiz Alberto Anderson Filho assumiu o lugar de Beethoven. Ao contrário do antecessor, que sempre se utilizou da assistente social Vitória Delfino – ex-funcionária da Prefeitura de Jundiaí –, o novo juiz se valeu de um estudo elaborado por funcionárias do próprio Poder Judiciário. O laudo de dez páginas revela que Márcia, Nilson e as filhas vivem em harmonia e mantêm por Égon uma relação bastante carinhosa. "Aqui estou muito feliz. Vou para a escola e sou bem tratado", diz Égon. "Sou o primeiro aluno da classe e não quero sair dessa casa de jeito nenhum." Ele está na terceira série, estuda violino e não desgruda do tio. No final deste mês, é bem provável que Márcia e o marido consigam a guarda definitiva do garoto. "Isso é o que mais quero", comemora Égon.

Tão feliz quanto Égon está o pequeno Thales, de dois anos. Ele foi retirado de sua mãe, Helen da Silva, quando tinha um ano. Ela morava com Simone Travalin, stripper em uma boate no Rio. Em novembro de 1997, ela autorizou Simone a levar a criança para Jundiaí, onde ficariam na casa de Mariza Travalin, mãe da stripper. Em 18 de fevereiro, Beethoven determinou a apreensão do bebê argumentando que ele estava sofrendo maus-tratos. Na ocasião, Beethoven, acatando a solicitação da então promotora da Infância de Jundiaí, Inês Bicudo, afirmou que "uma criança não pode estar bem vivendo na mesma casa em que mora uma stripper." Com base nisso, tirou a criança da família biológica e da família de Mariza, que tinha, de fato, a guarda de Thales. Mariza só voltou a ter contato com o menino em fevereiro deste ano, depois de Beethoven ser transferido de Jundiaí. Em 28 de janeiro último, o juiz Anderson Filho restituiu o pátrio poder de Helen e permitiu que Thales ficasse sob a guarda de Mariza. Em sua sentença, Anderson Filho afirma: "A prova dos autos é por demais precária para se afirmar que a criança estivesse sendo maltratada… …A atividade profissional exercida por Simone por si só não pode levar à presunção de que estaria tratando de forma inadequada a criança."

Rumo ao Exterior Em Jundiaí, os senadores irão encontrar documentos que mostram a rapidez com que as crianças carentes da cidade eram adotadas por casais estrangeiros. O caso da garota Deliara, hoje com cinco anos, é emblemático. Em setembro de 1997, ela e o menino Michael, na época com um ano, foram apreendidos sob a alegação de que estavam abandonados, expostos a maus tratos e a situação vexatória. Em novembro, a promotora Inês Bicudo pediu a quebra do pátrio poder dos pais de ambos, que, por serem ciganos, não tinham endereço fixo. Em 24 de fevereiro de 1998, Beethoven julgou procedente o pedido da promotora, apesar de a avó das crianças, Iracema Alves, insistir em ficar com a guarda dos netos. O inquérito criminal para investigar os tais maus-tratos acabou arquivado. "Conforme apurado, não houve qualquer comprovação de que as crianças fossem submetidas a maus-tratos", escreveu o promotor João de Deus, 18 dias antes da decisão do juiz.

Michael foi devolvido à família, pois não teria se adaptado à instituição em que estava internado. Deliara engrossa a lista das 204 crianças que o juiz Beethoven encaminhou para a adoção internacional. Ela está na Itália. Juridicamente, apesar de o inquérito criminal terminar arquivado, tudo pode estar correto. O que os senadores da CPI irão perceber ao visitar o cartório de Jundiaí é que Deliara foi para a Itália em 26 de fevereiro de 1998, apenas dois dias depois da decisão de Beethoven. "Como é que em 48 horas o juiz conseguiu realizar todos os ritos que exige a adoção internacional?", pergunta o deputado Renato Simões, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo.

Beethoven tem afirmado que apenas cometeu "uma falha". Trata-se do caso de uma menina chamada Evelyn que ele encaminhou à Alemanha, antes de o Tribunal de Justiça julgar o recurso feito pela mãe da garota. A decisão dos desembargadores foi de retornar o pátrio poder para a mãe, mas a garota já está na Europa. Em Jundiaí, os senadores vão descobrir que há pelo menos mais um caso parecido. Em 26 de agosto de 1998, depois de vários estudos sociais, Beethoven tirou o pátrio poder de Maria do Amparo Teixeira sobre os menores Benjamim, Jussara, Alex e Janaína. Em setembro, a mãe recorreu ao Tribunal de Justiça pedindo a anulação da decisão de Beethoven, pedido ainda não julgado pelo Tribunal. Mesmo assim, documentos no cartório de Jundiaí indicam que em 17 de novembro do ano passado Janaína foi adotada e hoje vive nos Estados Unidos. Os senadores da CPI terão muito o que perguntar ao juiz Beethoven.

 

 Um ano depois

Em maio do ano passado, ISTOÉ revelou a existência das Mães da Praça do Fórum de Jundiaí, no interior de São Paulo. Os dramas vividos por Cristiane Lopes e por Maria Aparecida Salles, que na última semana emocionaram os senadores da CPI do Judiciário, estavam registrados naquela reportagem. Em novembro, ISTOÉ voltou ao assunto. A revista reuniu documentos que comprovam as denúncias de muitas das mães de Jundiaí e publicou reportagem de capa mostrando como a cidade se transformou em um dos maiores pólos de exportação de crianças do País. A reação foi imediata. O Ministério Público de São Paulo começou a investigar, removeu da cidade a promotora da Infância, Inês Bicudo, e está às vésperas de completar um dossiê que poderá dar início a processos criminais contra a promotora, o juiz e os ex-funcionários do cartório. A corregedoria do Tribunal de Justiça também tem investigado os casos e promete uma decisão para breve. A pedido do ministro da Justiça, Renan Calheiros, a Polícia Federal entrou no caso. Em janeiro, Beethoven foi transferido para uma Vara Cível da Capital e o juiz Alberto Anderson Filho assumiu o posto. Agora, as Mães da Praça do Fórum apostam na CPI a possibilidade de terem os filhos de volta.