Uma temporada de trabalho duro, R$ 74,50 de faturamento e cerca de R$ 45 de lucro. Foi o saldo dos oito dias em que me transformei num dos milhares de camelôs de São Paulo sem revelar a identidade. Tive a certeza da minha absoluta falta de talento para as vendas. Esses dias provaram que o melhor, no meu caso, é continuar procurando boas histórias a partir da redação de ISTOÉ. Apesar do fracasso na pele de ambulante, foi uma experiência rica, orientada de longe por Marcos Maldonado, um dos camelôs que depuseram na CPI aberta pela Câmara paulistana para apurar a rede de propina chefiada por alguns vereadores. As vendas foram ridículas e, por incrível que possa parecer, não houve fiscal disposto a me pedir uma propina. Mas a convivência com os marreteiros produziu episódios curiosos, num mundo onde só os fortes sobrevivem. Abaixo, o relato da experiência.

 

Primeiro dia – A rua Domingos de Moraes, parte da administração regional de Vila Mariana, até então controlada pelo vereador Bruno Feder (sem partido), é a escolhida para os primeiros dias. Depois de ter sido expulso de dois pontos pelos "antigos", consigo alguma tranquilidade para iniciar os trabalhos em frente ao caixa eletrônico de uma agência bancária. No lado esquerdo, os irmãos Carlos* e José cuidam de uma barraca de cigarro. Em frente, Arthur vende seus quadros. Colocava as primeiras mercadorias sobre o cobertor surrado que cobria minha barraca quando um taxista pára na rua e dá o aviso salvador: "O caminhão do rapa tá na esquina." Só houve tempo para fechar o cobertor sobre as mercadorias, passar a mão no carrinho com o resto das bugigangas e procurar abrigo no estacionamento do banco.

Voltamos ao trabalho. Vinte minutos de barraca montada e um funcionário do banco, amigo de Arthur, vem com outro alerta. "Os caras estão lá embaixo de novo." Hora de correr novamente para o estacionamento. Desta vez, três marreteiros perdem tudo. Revoltados, ameaçam bater nos dois fiscais, mas dois PMs acabam com a confusão. O clima é de tensão ininterrupta. Arthur e Carlos observam a rua durante todo o tempo. Depois de montar a barraca pela terceira vez, faço minha primeira venda – uma sombrinha para uma simpática senhora chamada dona Ambrosina, por R$ 5. Os fiscais resolvem dar um tempo e eu completo o trabalho do dia. Mais dois bonecos teletubbies (R$ 3 cada um), quatro pilhas (R$ 1) e um fone de ouvido (R$ 3). Faturamento total: R$ 15. A hora de ir embora é sempre um risco. Não quero encontrar com os parceiros de ponto a bordo de um Fiat Tipo. O carro não é lá grande coisa, mas os meus novos colegas certamente iriam estranhar o conforto mantido por aquele "chefe de família desempregado há mais de um ano".

Segundo dia – Dia calmo e lento. Seu Sebastião, policial reformado e vendedor ambulante de espanador, pára ao lado da barraca, me olha de cima a baixo e pergunta: "Você não é marreteiro não, tá só desempregado, não e?" Admito que sim, sem dar maiores detalhes. Seu irmão, cego, fabrica os espanadores. Pergunto por que o rapa só incomoda os camelôs novatos. "É porque tem muita jogada no meio. Parte das barracas foi autorizada para deficientes, mas, na maioria dos casos, nem deficiente tem. Existe a indústria do deficiente. Muitos deles passam a barraca para outras pessoas, terceirizam a deficiência", conta o velho tira.

A chuva bate forte e fujo para a marquise ao lado do ponto. Marcos, um vendedor de óculos com ponto "conquistado" há muito tempo no início da marquise, avisa que a fiscalização está "jogando pesado" com os novatos. Em seguida, olha para mim e faz um comentário. "Esse aí estava desempregado e a mulher mandou ele pra rua." No fim do dia, o gravador que levava no bolso para pegar algum diálogo comprometedor é notado por José. "Está com defeito. Vou mandar arrumar." A desculpa é aceita e eu me despeço aliviado. Faturei R$ 18,50 e gastei R$ 14 no estacionamento.

 

Terceiro dia – Começo a sentir cansaço. "O cara é esperto. Vem depois do rapa", comenta Arthur, numa referência à batida dos fiscais que derrubou mais dois marreteiros no início da manhã. Depois de um gorduroso macarrão com frango em um boteco próximo, junto com Arthur e Carlos, montei a barraca e fui ao trabalho. Os dois estavam revoltados com a CPI dos camelôs. "Agora, o Pitta e o Maluf vão mandá os camelô para a p.q.p.", acredita Arthur.

O rapa não voltou, mas passei por dois momentos curiosos. No meio da tarde, o senhor Josino, porteiro do prédio onde morei na Vila Mariana, passou ao lado da barraca. Olhou no meu rosto, franziu a testa como se quisesse dizer: "Conheço esse sujeito de algum lugar", mas seguiu em frente. Meia hora depois, Neire, minha ex-faxineira, chega ao banco com a filha Camila, de nove anos. Ela não me vê, mas a menina fica intrigada por longos segundos, me olhando fixamente. Episódios parecidos se repetiriam na rua Xavier de Toledo com o meu ex-pedreiro e com o jornalista e amigo Helton Ribeiro, que passou em frente à barraca sem me notar.

Começa a chover. Sobra espaço para duas barracas na marquise. José ocupa metade do pedaço com seus cigarros e estende o carrinho na outra parte. "Aí meu, não vai dá pra tirar o carrinho, não. Novato tem que sofrer um pouco." Muitas vezes, não há espaço para gestos grandiosos no dia-a-dia dos marreteiros. O jeito é ir para a chuva vender guarda-chuva. Marcos tenta me ensinar o ofício: "Pega dois na mão, abre outro e grita: ‘Guarda-chuva barato, madame.’" Dou uns três berros, vendo um único guarda-chuva e desisto.

Quarto dia – Meu primeiro dia na rua Xavier de Toledo, no centro, é também horroroso para os negócios. Uma única sombrinha, vendida por R$ 4, tira o faturamento do zero. Íris, 36 anos, mulher de um professor de Música, vende peças de acrílico ao meu lado. Ela me recebe com educação. A CPI dos camelôs funciona a pleno vapor e os fiscais atuam com força total sem espaço para propinas. "Sempre trabalhei aqui com acerto", conta Íris. "A gente dava R$ 15, R$ 20 ou R$ 30 por semana e trabalhava tranquilo. Olha, pode não ser correto, mas eu preferia trabalhar com acerto. Agora, os caras estão sendo pressionados e descarregam tudo na gente."

 

Quinto dia – Volto disposto a levar um rapa. Era a chance de receber um pedido de propina. E ele passa perto. Ao lado, na rua 7 de Abril, dois vendedores de relógio se desesperam com os fiscais que apreendem mais de R$ 1 mil em mercadorias. Um deles parte para a briga e acaba preso. Um pano preto dado de presente por Íris melhora o aspecto da minha banca. Faturamento: R$ 21,50.

 

Sexto dia – Outro dia calmo e fraco: uma sombrinha (R$ 4) e duas canetas (R$ 2). Rodrigo, 27 anos, pai de uma menina de oito e vendedor de fones e cadeados, parece disposto a me ajudar na nova profissão. Ficamos amigos. No final da tarde, ele toma uma atitude que me comove. Decido comprar um de seus cadeados, com o preço – R$ 2 – marcado a caneta no papelão. "Toma aí, é R$ 1." Protesto: "O que é isso, rapaz? Se você não me vender pelo preço certo, não compro." Rodrigo bate no meu ombro e diz em voz baixa. "Pega aí, meu. Não vou ganhar dinheiro seu que está aqui comigo, no mesmo barco, com um moleque em casa pra criar. Deus vai me ajudar. Vou vender muito cadeado para quem pode pagar. Pra você, é R$ 1, preço de custo." Entreguei o dinheiro com um nó na garganta e lhe dei um abraço forte, demorado. Foi a primeira vez, nesta empreitada, que senti um certo desconforto por estar mentindo. Apesar da gentileza, Rodrigo não entendeu muito o porquê de tanta emoção.

Sétimo dia – Retomo os trabalhos na rua Barão de Itapetininga, também no centro, após um intervalo. Pressionados pela CPI, os fiscais cortaram os pedidos de propina na área e liberaram os camelôs a partir das cinco da tarde. Não fiz amigos. Era um salve-se-quem-puder danado.

 

Oitavo dia – Os fiscais liberam a área ao meio-dia. As três horas de trabalho em ambiente calmo marcam minha despedida. Gasto os R$ 4,50 (duas canetas de R$ 1 e um boneco teletubbies de R$ 2,50) em jornais e volto para casa. Na cabeça, a promessa de pensar muito antes de reclamar das agruras do jornalismo.

* A identidade das personagens foi trocada