Na segunda-feira 26, os supermercados Pão de Açúcar encerraram as inscrições para vagas abertas em sua rede para profissionais que jamais sonharam ter carteira assinada e, sobretudo, há décadas só declaravam sua atividade envergonhadamente. Ao convocar donas de casa para trabalhar como pesquisadoras de preços e oportunidades em lojas da rede em São Paulo, a empresa abriu uma comporta: foram mais de 80 mil inscrições para 150 vagas, e as escolhidas serão anunciadas em junho. A resposta explosiva se deve sobretudo à crise e ao desemprego, mas a convocação foi um raro afago numa categoria geralmente ignorada. A função das futuras contratadas será ajudar os clientes a fazer compras boas e rentáveis. Como alardearam anúncios em programas de grande audiência, ninguém melhor do que elas para tal empreitada. "A dona de casa só tem que fazer o que ela fez a vida inteira: fazer render o dinheiro. Só que ela prestará esse serviço para o cliente, orientando-o", explica José Roberto Tambasco, diretor da rede.

Só na unidade da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, bairro de classe média, foram três mil inscrições. Todas tinham como principais motivações o salário de R$ 320 e a possibilidade de ter alguma atividade profissional. A vaga prevê um expediente de seis horas diárias, seis dias por semana, o que permite conciliar o trabalho de casa. Segura e extrovertida, Amália Câmera, 59 anos, estava na loja na semana passada entregando a sua ficha. "A proposta é interessante. Entendo bem de produtos e preços e adoro falar com as pessoas. Se me contratarem, vai ser muito divertido", metralha ela, que faz todo o serviço da casa. "Me senti importante. Acho que de uns anos para cá o status de dona de casa melhorou muito", opina. O que chamou a atenção de Maria de Lourdes Mendes, 48 anos, viúva e mãe de três adolescentes, foi o salário. Ela trabalha esporadicamente como faxineira em casas de família e já foi copeira. "Lá em casa tudo funciona na base da economia. Tenho certeza de que posso dar boas indicações aos clientes", diz ela.

 

A iniciativa tem tudo para ser um grande negócio para todos. A empresa contará com um contingente desvalorizado socialmente e ávido pela possibilidade de ingressar no que se convencionou chamar de "mão-de-obra economicamente ativa", os clientes vão ter uma assessoria competente e as donas de casa poderão finalmente exibir o valor de sua experiência. O fato é que com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, nos anos 60, o rótulo de dona de casa tornou-se progressivamente incômodo. As perspectivas femininas tornaram-se mais ousadas do que organizar a casa, administrar o orçamento doméstico e cuidar dos filhos. O clichê da mulher de avental, servindo a família, foi banido até dos livros escolares para não reforçar estereótipos. No entanto, quando é necessário controlar os preços, costuma-se lembrar que são as mulheres que abastecem as geladeiras e louva-se o seu poder de pressão como consumidoras. Costumam surgir, nessas horas, entidades de classe e até apelidos cívicos, como "fiscais do Sarney", usado no Plano Cruzado.

 

Unidas e assumidas As donas de casa militantes também enfrentam preconceito, até por parte de suas semelhantes. Selma Magnavita, secretária da Confederação Nacional das Donas de Casa e Consumidoras, teve de acrescentar o estratégico "e consumidoras" como uma forma de dobrar os narizes torcidos. "No início, tive dificuldades de conseguir que as mulheres se associassem. De profissionais liberais a socialites, elas diziam que não eram donas de casa", conta Selma. Foram necessários alguns anos para firmar o caráter de entidade de defesa do consumidor para que, assim, a discriminação diminuísse. "Tivemos que conscientizá-las de que dona de casa é a ministra, a advogada, a executiva e que mesmo as que não trabalham fora contribuem com seus países. Não é o que fazem quando lutam contra a inflação?, questiona Selma, que compôs a comissão recebida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em fevereiro. Entre os itens da pauta, o custo da cesta básica e a redução dos juros. A agente administrativa aposentada Maria de Lourdes Gamboa, 46 anos, solteira, outra candidata às vagas do Pão de Açúcar, está sintonizada com esses conceitos. "Todas somos donas de casa e neste momento somos imprescindíveis para economizar. Sou muito exigente em relação aos preços e à qualidade", diz.

O fim da "rainha do lar" As donas de casa tradicionais também mudaram. Uma olhadinha nas revistas femininas e um pouco mais de atenção às propagandas são suficientes para se ter a dimensão da transformação. "O mercado editorial feminino hoje é marcado pela mulher produtiva: a que trabalha fora ou a que, mesmo em casa, produz por conta própria. São cada vez mais raras as matérias para a rainha do lar porque essa é uma figura em extinção", opina Laís Tapajós, diretora de redação da revista Mais Vida, da Editora Três. "Muita gente compra revista de artesanato não para ser prendada, mas para aperfeiçoar seus produtos."

Na propaganda, a mudança de perfil é ainda mais visível. Atualmente, seria uma gafe publicitária caracterizar a dona de casa como uma mulher cuja maior ambição é lavar mais branco do que a vizinha. Hoje elas aparecem em cenas mais realistas, dirigindo, fazendo compras ou em situações de lazer. E, às vezes, elas próprias se transformam em estrelas do comercial, como é o caso de Maria Cristina, a terceira dona de casa a protagonizar a campanha de testemunhos do Omo Multi Ação, veiculada nacionalmente desde novembro. Nesse formato de comercial, criado pela agência Ammirate Puris Lintas, a consumidora envia uma carta explicando a importância do produto no seu dia-a-dia. Ao ser selecionada, a dona de casa recebe uma câmera VHS e filma, ela própria, a lavagem da roupa, os resultados e alguns momentos do cotidiano doméstico. "Partimos de um pressuposto simples: hoje a mulher é múltipla, mesmo a que fica em casa atua em várias frentes. Então resolvemos colocá-la dirigindo, atuando, falando, enfim fazendo o comercial", informa o publicitário Rogério Corrêa, que trabalhou na concepção da campanha.

A maior parte das brasileiras tem jornada dupla ou tripla, trabalhando dentro e fora de casa, como aponta Francesc Petit, sócio e diretor de criação da agência DPZ, que faz a publicidade da Sadia desde a década de 60. "Há 30 anos, a família era mais homogênea. Hoje, a vida é agitada e as diferenças entre as classes sociais se aprofundaram", diz o publicitário. Para ele, além da modernidade, é preciso delicadeza para atingir a mulher. "Ela ainda carece de respeito dentro e fora de casa." A iniciativa do Pão de Açúcar não vai fazer ninguém largar a carreira para cuidar do lar. Mas pode ajudar a tornar visível um trabalho que a sociedade ainda trata como se fosse uma pequena mágica e não o esforço e o know-how de alguém.

Colaborou Gisele Vitória