Admitindo-se que Ele existe, dificilmente Deus assinaria embaixo. E quem levar o assunto muito a sério pode se irritar com algumas liberdades tomadas ao longo do texto nada ortodoxo. Talvez a melhor maneira de se aproveitar a leitura de A história de Deus (contada pelo próprio) (Imago, 262 págs., R$ 27), de Franco Ferrucci, seja considerar o livro um divertimento ou um romance filosófico. Afinal de contas, longe de esgotar um tema inesgotável, o crítico italiano foge ao debate teológico e cria um demiurgo mais que falível, que inventa o mundo e os homens para escapar da solidão, mas logo perde o controle sobre sua própria criação. De certa forma, Ferrucci fabrica um Deus à imagem e semelhança dos homens, ou seja, capaz de demonstrar fraqueza, de se surpreender e se desapontar, de alimentar esperanças e mágoas. Por exemplo, logo nas primeiras linhas desta autobiografia imaginária, Deus admite que a memória não é seu forte.

Num mar de heresias, é por acaso que Ele se torna o pai de Jesus Cristo, após ter um caso com uma jovem hebréia. E, à medida que reconstitui sua vida, adota o ponto de vista de um espectador perplexo, mais do que diretor onipotente e onisciente da evolução da humanidade. Não sem razão, o livro foi elogiado por Umberto Eco. Autor de A poética do disfarce, curioso ensaio sobre os aspectos autobiográficos das obras de Homero, Dante e Shakespeare, inédito no Brasil, Ferrucci demonstra competência ao sintetizar em pouco mais de 200 páginas uma narrativa potencialmente infinita. Mas, superado o efeito de estranhamento inicial, quando o autor narra poeticamente o envolvimento amoroso de Deus com a Terra – que o faz mergulhar em seus oceanos e adotar a forma de plantas e animais para sentir como vivem –, o livro perde um pouco de seu impacto. Ao fazer seu personagem/narrador dialogar em pé de igualdade com santo Agostinho e Freud, Ferrucci o torna humano, demasiado humano.