Será provavelmente a véspera de ano novo mais eletrizante da história da humanidade. Quando o ponteiro dos minutos se aproximar da meia-noite de 31 de dezembro em cada um dos 24 fusos horários do planeta, a tradicional expectativa do estouro do champanhe terá dado lugar a uma certa tensão geral. Os olhos de boa parte da população mundial estarão voltados para alguma edição extra dos telejornais. E a pergunta corrente será: houve algum desastre? Faltando ainda – ou apenas, dependendo do ponto de vista – oito meses para o início do ano 2000, já existem comunidades inteiras nos EUA armazenando em casa alimentos e utensílios. Elas temem que algum tipo de catástrofe venha a acontecer na passagem do ano. Não por causa de qualquer teoria apocalíptica, mas sim por uma falha em um número incerto de computadores que, apesar de poderosos, não entendem que os dois últimos zeros de 2000 são maiores que os dois noves de 1999 – o que no jargão da informática é chamado de "bug do milênio". Além do que, 2000 será um ano bissexto, com um dia a mais em fevereiro, detalhe desconhecido pelos computadores. Alguns tecnofóbicos imaginam que o mau funcionamento dessas máquinas vai provocar um verdadeiro caos nos sistemas de abastecimento de produtos de primeira necessidade. O mais provável, porém, é que o estrago seja menor do que tem sido propalado. Especialistas respeitados, como o Gartner Group, considerado um dos maiores consultores independentes em tecnologia da informação, acreditam que as pessoas devem se preparar, sim, mas como se estivessem esperando uma tormenta que durará menos de uma semana, e não o fim do mundo. Enquanto isso, o trabalho que os governos e a maioria das empresas privadas têm de fazer para evitar maiores estragos com seus próprios computadores continua atrasado – inclusive no Brasil. Dizem os especialistas que boa parte dessa expectativa tormentosa poderia ter sido minimizada se os órgãos federais dos países mais ricos tivessem "acordado" mais cedo para o problema – o que dirá dos países com organização precária. Como o relógio não pára, a corrida contra o tempo é cada vez mais urgente.

Causa banal Esse é um problema absolutamente peculiar. Embora não se conheçam com precisão quais as consequências que trará, há uma certeza sobre ele: tem hora marcada para acontecer – no primeiro segundo do primeiro dia do ano 2000. Sua causa é banal, para não dizer ridícula. Quando o computador passou a ser uma ferramenta comercial nos anos 50, faltando, portanto, outro meio século para a virada do milênio, sua memória eletrônica ainda era muito cara. Para se ter uma idéia, em 1965 um megabyte de espaço de memória magnética (suficiente para gravar um texto de 300 páginas) custava US$ 761. Hoje, o mesmo espaço custa a pechincha de US$ 0,75. No ano que vem poderá cair para mero US$ 0,34. Então, para economizar o que era muito caro, os engenheiros da época adotaram a prática de cortar e abreviar tudo o que fosse possível, inclusive os dois primeiros dígitos comuns a todos os anos do século XX – 1958 era registrado apenas como 58 para efeito de processamento das informações contidas no então chamado cérebro eletrônico. Ninguém, aparentemente, se deu conta de que, 40 anos depois, quando houvesse a passagem de 1999 para 2000, o computador não entenderia por que 00 tem que ser maior que 99. Como os computadores – e os chips embutidos em vários outros equipamentos – funcionam amparados em datas, a conclusão do raciocínio absolutamente lógico da máquina será a de que 00 significa 1900 e não 2000. Resultado: ou ele trava ou remete o trabalho para o início do século XX, com consequências desastrosas como, por exemplo, uma conta de cartão de crédito computar 99 anos de juros. Bom, no final das contas aquela economia ficou caríssima. Para reparar essa falha (do inglês, bug) em todos os computadores do mundo estimam-se gastos estratosféricos, que vão dos US$ 50 bilhões aos US$ 600 bilhões. Sem contar o custo dos processos legais por perdas e danos causados por computadores que escaparão ao conserto e devem movimentar nos próximos anos perto de US$ 1 trilhão em indenizações nos tribunais de todo o planeta. É realmente muito estrago por nada.

O grande perigo dessa falha banal é sua incerteza. Como nunca aconteceu antes e provavelmente não se repetirá, não há como prever suas consequências. Essa perspectiva, que pode tomar as piores cores dependendo de quem a vê, está levando muita gente a tomar atitudes drásticas, particularmente nos EUA, onde historicamente o pânico coletivo dispara facilmente. E não são apenas iniciativas pessoais ou de grupos místicos que temem o fim do mundo. As autoridades de várias cidades pequenas estão incentivando seus habitantes a estocar alimentos em casa. Mesmo o Congresso americano, no seu último relatório de investigação sobre o bug, diz: "As pessoas devem preparar-se para falhas localizadas, tanto nos serviços quanto na infra-estrutura pública. O tipo e o número de problemas irão variar geograficamente e não podem ser realmente previstos. Assim, os indivíduos devem ter em casa o equivalente a duas semanas de salário em dinheiro vivo e suprimentos suficientes para cinco dias de dificuldades" – leia-se estocar algum alimento, água e combustível (para o gerador de aquecimento, imprescindível no inverno do Hemisfério Norte).

E no Brasil? Talvez por ignorância ou mesmo por uma índole coletiva mais tranquila, não há notícia de ninguém que esteja planejando armazenar víveres para enfrentar os prováveis, mas ainda muito incertos desastres que o bug pode criar aqui. Marcos de Almeida, funcionário da Secretaria da Administração Federal encarregado de supervisionar o conserto dessa falha em todos os computadores do governo, confirma que o trabalho está atrasado, mas garante que ainda pode ser concluído a tempo. "Principalmente nas áreas mais sensíveis como energia elétrica, abastecimento de água, telecomunicações e saneamento básico." Toda essa gigantesca tarefa é coordenada pelo Comitê Gestor do Programa Ano 2000, criado ano passado por representantes da Casa Civil, do Ministério Extraordinário de Projetos Especiais e da Secretaria de Estado de Administração e Patrimônio. E pode ser acompanhada passo a passo e com algum detalhe em uma página da Internet (www.a2000.gov.br). Mas o fato é que essa meticulosa e demorada tarefa braçal de checar todas as linhas, de todos os programas, em todos os computadores começou muito tarde. Embora uma ou outra repartição tenha iniciado o trabalho ainda em 1997, a maior parte só fez isso no segundo semestre do ano passado. Mesmo o pedido de informações enviado a todos os órgãos federais por uma circular do ministro-chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho, precisou de uma segunda chamada para surtir efeito. Uma parcela da administração brasileira se justifica com o argumento de que os setores sensíveis, como as teles, ficaram imobilizados em função das privatizações. Como que para compensar isso, as novas agências reguladoras, Anatel (telecomunicações) e Aneel (energia elétrica), estão emitindo somente agora portarias exigindo certificados de garantia dos novos controladores privados. Na área de energia os testes começaram ano passado – um deles, feito na hidrelétrica de Xingó (Nordeste), provocou um pânico geral nos sistemas de fornecimento. "A partir daí o setor acordou", admite Almeida. O apagão de fevereiro, mesmo sem ter ainda uma causa conhecida, acrescentou uma cor mais negra à perspectiva do que pode acontecer.

 

O Brasil no mundo A peça-chave no quebra-cabeça governamental é o Serpro, o serviço federal de processamento de dados, responsável por todas as aquisições de computadores e periféricos do governo. O órgão garante que já consertou mais de 97% dos quase 20 milhões de linhas de código de seus softwares. Mas, por via das dúvidas, armou um plano de contingência que, na passagem do ano, contará com geradores de energia extras, caixa-d’água de reserva e sistema de transporte exclusivo para seus funcionários, entre outras vantagens. A medida se justifica. O Serpro é responsável pelo processamento do Orçamento da União e de toda a arrecadação tributária feita pela Receita Federal. "Essas duas áreas estratégicas já estão completamente prontas", garante o presidente do órgão, Sérgio Ribeiro. Um teste de certificação de que nada irá falhar deve ser executado até julho. Mas, para que o sistema funcione inteiramente sem problemas o Serpro depende do empenho de terceiros, como as companhias telefônicas privatizadas, por onde trafegam as informações que vêm dos Estados. "Espero que essas empresas possam me fornecer certificados de que irão estar com suas centrais aptas para a virada do milênio", alerta Ribeiro. E ele tem razão de estar preocupado. Embora a Anatel tenha enviado questionários para as novas teles, requisitando dados sobre o trabalho de adequação ao ano 2000, as respostas ainda não garantem que não haverá problemas.

Para os consultores internacionais que se dedicam a monitorar a situação do problema em todo o mundo, o Brasil não está tão mal quanto a maioria. O Gartner Group fez uma extensa pesquisa em 87 países, dividindo os principais em quatro grupos de risco crescente. O Brasil está no segundo, ao lado da França e na frente da Alemanha, da Argentina e do Japão, que estão no terceiro grupo. Isso não significa que a eficiência brasileira seja maior que a destes países. A explicação é que o Brasil ainda não depende tanto da tecnologia da informação quanto os mais desenvolvidos. Vastas regiões do interior ainda vivem na Idade Média em termos de tecnologia. Além da dificuldade governamental, os brasileiros teriam hoje, segundo o Gartner, 33% de suas empresas privadas com grande risco de serem atingidas pelo bug. A avaliação de outra especialista, a Microsoft, é a de que entre as pequenas e médias 65% estariam com seus consertos em atraso. O que não significa que não poderão resolver o problema a tempo. "A verdade é que depois de cinco planos econômicos em curto espaço de tempo, nós adquirimos uma capacidade incomum de lidar com este tipo de problema", explica Cassio Dreyfuss, diretor de pesquisa do Gartner no Brasil. Ele conta que foi esse o argumento que usou nos EUA para convencer seus colegas de que o Brasil deveria ficar no segundo grupo de risco e não no terceiro como inicialmente queriam. "Mas pode ter certeza de que o resultado desse ‘jeitinho’ brasileiro, de deixar para amanhã o que deveria ter sido feito ontem, será uma queda brutal na qualidade dos serviços públicos no ano que vem", diz ele. Há dúvidas, por exemplo, se o Dataprev terá condições de processar o pagamento dos aposentados na data certa a partir de janeiro.

Nos tribunais Mas se há um setor da economia que está esfregando as mãos de entusiasmo este é o jurídico. O que é absolutamente compreensível diante daquela soma de US$ 1 trilhão avaliada em indenizações pelos prejuízos causados pelo bug. Mesmo no Brasil, já há quem tenha começado a se mexer nesse sentido. Recentemente, o São Paulo Futebol Clube entrou com uma liminar na Justiça contra a Siemens, fabricante da central telefônica usada pelo clube. "Consultamos por carta a empresa para saber se nosso PABX estava apto à passagem do milênio e eles confirmaram que não estava", conta Renato Blum, advogado do clube. "Pior: eles nos apresentaram uma planilha de custos de R$ 22 mil para consertar o problema." Pela central, modelo Hicon 300, o clube pagou R$ 100 mil há quase três anos. O caso só não foi aos tribunais porque as partes entraram em acordo e o equipamento foi atualizado pela Siemens, que se nega a divulgar detalhes do que foi acertado. "Por força do código de ética da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também não posso revelar o teor do acordo", diz Blum, que garante que seu cliente ficou satisfeito. A opinião de alguns juristas que se especializaram no assunto é a de que esse caso é apenas a ponta de um iceberg do que pode vir pela frente. O que acontece nos Estados Unidos novamente é exemplar. Lá, alguns Estados aprovaram leis imputando desde já aos fabricantes dos computadores toda a responsabilidade por qualquer prejuízo que o cidadão venha a sofrer com eventuais bugs nos órgãos públicos. Renato Blum conta que já tem uma prefeitura brasileira interessada em seu trabalho.

O que se percebe estudando a situação em quase todo o mundo é que, sem a pressão de algum órgão ou instituição reguladora, pouco se faz. Nos Estados Unidos esse papel coube ao Congresso, que criou uma comissão parlamentar incumbida exclusivamente do assunto. É ela que está pressionando tanto os setores do governo federal quanto a iniciativa privada. No Brasil, caberia em princípio à comissão de ciência e tecnologia da Câmara Federal cuidar disso. Mas, em função da recente renovação do legislativo, os novos membros dessa comissão ainda nem começaram a tomar pé do problema. As lideranças políticas estão mais interessadas em outros casos que consideram, com certa razão, mais urgentes. Mas nas conversas com funcionários do governo encarregados do problema percebe-se uma certa fragilidade na aparente convicção de que tudo será resolvido a tempo. É como se dissessem: faço minha parte, se alguma coisa der errado, não serei eu o culpado. Como não há nenhuma instância superior e independente, fica a impressão de que alguém está mentindo. "Faltou liderança, sem dúvida", avalia Cassio Dreyfuss em um recado velado ao presidente da República. Não é por acaso que os países onde esse conserto está mais adiantado são aqueles em que o chefe do governo assumiu essa liderança pessoalmente, como o americano Bill Clinton, o britânico Tony Blair e o mexicano Ernesto Zedillo.

Russos O trabalho do Congresso americano já produziu seu primeiro relatório, que aponta as dificuldades em vários países. "Como líder mundial, os EUA têm responsabilidades políticas e econômicas para estimular a troca de informações sobre esse problema", diz o relatório. O que pode ser interpretado como: não podemos correr o risco de sofrer consequências desastrosas pela irresponsabilidade de terceiros. Os congressistas americanos se valeram até mesmo do trabalho da CIA (a agência central de inteligência) para levantar a situação em vários países, inclusive na Rússia. O sistema de mísseis nucleares russos, por exemplo, é motivo de grande preocupação. Tanto que o governo em Moscou tomou uma decisão que deve ter feito o falecido premiê Nikita Krushev se virar em sua tumba na Praça Vermelha: concordou que seus antigos inimigos americanos monitorem seu arsenal nuclear – mesmo com a perspectiva de uma guerra em seu antigo quintal iugoslavo. Assim, os russos admitem não ter condições de garantir, sozinhos, que algum míssil não será disparado por falha eletrônica. Se não houve um holocausto nuclear durante a guerra fria, não será por causa de dois meros e banais dígitos que a humanidade desaparecerá. É torcer para que nada de errado aconteça nessas proporções.