Na manhã da segunda-feira 4, o ministro da Defesa, Élcio Álvares, iria cumprir um compromisso agendado um mês antes: visitar, em companhia de almirantes, o Arsenal da Marinha no Rio de Janeiro, com direito a continências e tudo o mais. O ministro não foi. Permaneceu em Brasília para explicar ao presidente Fernando Henrique Cardoso, no Palácio do Planalto, que a inclusão de seu nome em um organograma sobre o crime organizado no Espírito Santo não passava de uma versão fantasiosa do delegado de polícia Francisco Vicente Badenes Júnior, que ganhou o prêmio nacional de direitos humanos em 1996. Élcio resolveu mudar a agenda na tarde da sexta-feira 1º, logo depois de redigir uma carta a ISTOÉ na qual faz uma defesa prévia do que supunha que seria publicado naquela edição da revista. “Desde que me elegi senador da República, em 1990, renunciei a qualquer atividade de advocacia, com comunicação formal ao Judiciário do meu Estado, à Ordem dos Advogados do Espírito Santo, bem como ao Conselho Federal da OAB”, escreveu o ministro no item “a” de sua contestação. Não é o que mostram documentos obtidos por ISTOÉ. Ele se elegeu senador em 15 de novembro de 1990. Cinquenta e seis dias depois da eleição, Élcio e sua sócia, Solange Antunes Resende – hoje uma poderosa assessora especial do Ministério da Defesa –, ainda advogavam. Assinaram em 10 de janeiro de 1991 a defesa prévia de Alberto Dariva e Adelino Nunes Ferreira. Os dois foram indiciados como integrantes de uma quadrilha comandada pelo delegado Cláudio Guerra, que roubava carros no Brasil para trocá-los por cocaína na Bolívia. O grupo foi desbaratado pela Polícia Federal na chamada Operação Marselha, citada no mesmo organograma de Badenes em que Élcio aparece. Não parou aí. ISTOÉ também teve acesso a uma outra ação judicial assinada quase três anos depois, em novembro de 1993, por Élcio e Solange, juntamente com Dório Antunes de Souza. Dório é irmão e parceiro de Solange em muitas causas, além de especialista na defesa de acusados de pertencerem ao crime organizado capixaba, como o próprio Cláudio Guerra e os mandantes do assassinato do prefeito de Serra, Feu Rosa.

Nova sócia – Nessa parceria que, como senador, teve com os irmãos Antunes, Élcio Álvares quase entrou numa fria. A ação apresentada pelo trio continha um documento considerado falso por uma perícia policial que rendeu um processo contra o atual ministro da Defesa no Supremo Tribunal Federal. Dório assumiu, em juízo, a responsabilidade solitária pela coleta de documentos. “O fato de o atual ministro de Estado ter ajuizado, conjuntamente com o advogado Dório Antunes, ação judicial que supostamente foi instruída com documento falso, é insuficiente para indicar que o senador Élcio Álvares participou da falsificação ou do uso do documento falso, principalmente – frise-se – quando existe nos autos declaração do próprio advogado Dório Antunes afirmando que foi ele quem cuidou pessoalmente da coleta de subsídios para instruir a ação e mais ninguém”, foi o parecer do então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, acatado pelo STF. Dório Antunes é um jornalista que recebeu uma ajuda de Élcio para se tornar um requisitado advogado criminal.

Não foi o único Antunes a subir na vida com a ajuda do ministro. A irmã Solange era secretária de Élcio em seu escritório de advocacia no Palácio do Café em Vitória e, incentivada pelo chefe, estudou Direito. Depois de formada, virou sua sócia na banca. Em 1991, Élcio assumiu seu mandato no Senado e levou Solange para assessorá-lo em Brasília. “Eu não tenho nenhuma participação em nenhum processo criminal desde 1989”, assegurou Solange a ISTOÉ no começo da tarde da sexta-feira 2. ISTOÉ dispõe de cópia de uma petição ao juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da comarca capixaba de Vila Velha subscrita por Solange e Dório no dia 14 de abril de 1994.

Solange, na prática, é mais do que assessora especial no Ministério da Defesa. Atua como uma verdadeira vice-ministra. Chega a comandar reuniões com oficiais generais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e supervisiona a comunicação social do Ministério. Ela está coordenando, por exemplo, as reuniões para a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que substituirá o Departamento de Aviação Civil. Também costuma participar de audiências do ministro e os comandantes das três Forças com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Quando foi criado o Ministério, essa desenvoltura da advogada causou estranheza nos generais, almirantes e brigadeiros escalados para o staff do ministro da Defesa. Mas Solange logo impôs o seu estilo forte. Um dos que sentiram isso na pele foi o comandante da Força Aérea, brigadeiro Werner Brauer. Eles têm se desentendido na discussão sobre a regulamentação da Anac, o que está atrasando a conclusão do projeto. Por causa dessas divergências, Brauer chegou a tomar um chá-de-cadeira de mais de uma hora quando foi ao Ministério para tentar falar com Élcio numa audiência não agendada. Saiu irritado. Élcio nega o incidente.

Contrabando – A advogada Solange não foi a única sócia de Élcio Álvares a subir na vida. Em 1975, Élcio assumiu o governo do Espírito Santo por escolha do general Ernesto Geisel, enquanto seu colega de escritório Geraldo Correia Lima era contemplado com uma vaga de desembargador no Tribunal de Justiça capixaba. A exemplo de Élcio, Correia Lima também é citado em dois dos seis organogramas do delegado Badenes sobre o crime organizado no Espírito Santo. No Tribunal de Justiça, Correia Lima foi pródigo em decisões que beneficiaram acusados de participação no crime organizado. Uma delas foi o habeas-corpus que assinou, na Semana Santa do ano passado, para tirar da cadeia o prefeito de Cariacica, Cabo Camata, preso em flagrante com armas contrabandeadas e de uso privativo das Forças Armadas. Há muitas outras. Em 28 de agosto de 1986, por exemplo, ele concedeu habeas-corpus ao traficante de drogas Roberto Tisi, acusado de fazer parte da máfia italiana, sob a alegação de que havia falhas na instrução criminal. Um ano depois, o desembargador acatou liminar a favor do empresário Carlos Guilherme Lima sustando a denúncia do promotor Haeckel Vivas Ferreira e todas as medidas determinadas pelo juiz Amim Abiguenem. Carlos Lima havia sido indiciado por estelionato e pela prática de um golpe de Cr$ 335 bilhões (valores da época) contra o Banco do Estado do Espírito Santo no período em que foi diretor-presidente daquela instituição financeira. Segundo a coluna Plenário, do jornal A Tribuna, Carlos Guilherme tomou conhecimento da decisão judicial do arresto de seus bens quando estava no restaurante Ferrinho, em companhia do próprio Correia Lima. O desembargador, então, saiu do restaurante e revogou a medida. A Procuradoria-Geral da Justiça recorreu da decisão e o STF cassou a liminar. O processo voltou ao Tribunal de Justiça para que fosse remetido à Segunda Vara Criminal de Vitória, mas simplesmente desapareceu.

Em família – No currículo do ex-sócio de Élcio Álvares, há também coisas curiosas. O Diário de Justiça do Estado do Espírito Santo, que circulou na segunda-feira 8 de abril de 1996, mostra em dois atos uma delas. No ato nº 424/96 do então presidente do TJ, Ewerly Grandi Ribeiro, são concedidas com efeito retroativo a 28 de março férias de 60 dias a Correia Lima, relativas aos períodos de janeiro e julho de 1987. Em outro ato, o de nº 425/96, é convocada a juíza Rachel Durão Correia Lima para substituir no tribunal o próprio pai durante suas férias.

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O desembargador Correia Lima também teve seu nome envolvido em uma história escabrosa – o assassinato da colunista social e proprietária do Jornal da Cidade, Maria Nilse Magalhães, em 5 de julho de 1989. Investigação da PF indiciou como mandante do crime o empresário José Alayr Andreatta. Ele foi preso com dois revólveres, um deles de propriedade do desembargador. “A minha arma estava com defeito e ele (Andreatta) a levou para a Polícia Civil para consertá-la no Serviço de Armas e Munição. Eu tenho muitos amigos na Polícia Civil e ele foi apenas um portador da arma, entendeu? Ela não foi objeto do crime”, contou Correia Lima em entrevista à Polícia Hoje, publicada na edição maio/junho de 1999. Numa conversa telefônica grampeada pela PF, o desembargador também é citado. Um dos interlocutores conta que Andreatta usou o nome de Correia Lima para contratar o avião que deu fuga ao pistoleiro José Sasso. “Estando evidenciada a ligação dessa autoridade judiciária com elementos do crime, conforme demonstrado, pondero a V.S, sugerir ao ínclito presidente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça para que impeça ao eminente desembargador Geraldo Correia Lima proferir qualquer decisão em processos policiais tidos como do crime organizado”, solicitou à época o promotor Gilberto Fabiano Toscano à Procuradoria-Geral da República. “Determino a devolução dos autos à autoridade policial, considerando-se que as investigações ainda prosseguem diante da suspeita da existência de “outros mandantes associados” e porque vários implicados continuam em liberdade. Caso surjam, no curso de novas investigações, indícios incriminando o desembargador, a questão deverá ser novamente suscitada perante essa corte”, escreveu o ministro Hélio Gueiros, em voto aprovado pelo Superior Tribunal de Justiça. Com base nessa decisão do STJ, Correia Lima resolveu virar o jogo e processar o promotor Toscano no Tribunal de Justiça, tendo como advogado quem? Dório Antunes! O promotor recorreu ao Supremo que, em decisão unânime, decidiu trancar o processo. “O Geraldo trabalhou comigo e é meu amigo”, diz Élcio.

Diploma – Confirma-se a amizade com o desembargador, o ministro da Defesa mostra-se incomodado ao falar de seu relacionamento com o presidente da Assembléia Legislativa do Espírito Santo, deputado José Carlos Gratz (PFL), dono de um império de jogatina. “Numa campanha eleitoral, você é abraçado por todo mundo”, justificou Élcio ao ser indagado pela Folha de S. Paulo sobre a foto publicada por ISTOÉ em que aparece abraçado a Gratz.

Dez meses depois das eleições, o ministro da Defesa novamente aparece abraçado a Gratz numa solenidade em Brasília, em uma foto publicada no dia 30 de agosto na coluna Hélio Dórea, da Gazeta de Vitória. Élcio foi fotografado dias antes entregando a Gratz um diploma e a medalha do Mérito do Transporte Urbano Brasileiro. Gratz fez questão de comemorar a condecoração em grande estilo, promovendo um concorrido jantar no restaurante Piantella com a presença de políticos e da cúpula do Poder Judiciário capixaba. Dá até para entender a preocupação do ministro da Defesa em desqualificar sua relação com uma pessoa com a folha corrida de Gratz. O que ainda não está claro é por que o ministro tenta esconder que exerceu a advocacia depois de eleito senador, inclusive na defesa de acusados de integrarem o crime organizado.
 


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