A região Centro-Oeste ficou conhecida há 30 anos como a fronteira agrícola do Brasil, onde fazendeiros desbravavam o cerrado para criar gado e plantar soja. Foi um tempo de ousadia que deu resultados. Mato Grosso é hoje o terceiro maior produtor do grão no País, com 2,8 milhões de hectares plantados, atrás apenas do Paraná e do Rio Grande do Sul. Grandes agricultores, como Blairo Maggi, o maior plantador de soja do mundo, fizeram seu nome em terras mato-grossenses. E justamente este Estado se tornou o principal foco de resistência à entrada no Brasil dos produtos transgênicos, conhecidos também como Organismos Geneticamente Modificados (OGM). São sementes de soja, algodão ou milho, transformadas em laboratórios para serem mais produtivas. No comando desse processo estão grandes multinacionais da indústria de biotecnologia, como a Monsanto e Novartis, que enfrentam resistências de ambientalistas e de políticos diante das dúvidas sobre a existência ou não de efeitos colaterais nocivos à saúde humana e ao meio ambiente. Em Mato Grosso, a entrada da nova tecnologia não será nada simples porque coloca em xeque negócios de grandes agricultores na distribuição de sementes. Eles acusam as multinacionais de querer monopolizar o mercado. É a guerra da soja.

O cultivo dos transgênicos foi liberado pelo governo desde setembro de 1998 e sua comercialização só depende do registro das sementes no Ministério da Agricultura. Segundo estimativas da Monsanto, isso deve ocorrer por volta de julho. A partir daí, o Brasil pode ser invadido por esses artefatos sofisticados da biotecnologia. Duas ações cautelares contra as sementes modificadas estão em curso na 6ª Vara da Justiça em Brasília, de autoria do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e do Greenpace. Isso, no entanto, não impede a comercialização até a decisão final. No Rio Grande do Sul, o governo do Estado criou outro foco de resistência ao tentar barrar as sementes com uma nova legislação que exige relatórios de impacto ambiental. Mas a entrada ilegal pela Argentina tem complicado o trabalho. Em Mato Grosso, na região de Rondonópolis, a briga pode ser ainda mais feroz porque mexe diretamente com os interesses comerciais dos gigantes da soja. "As multinacionais estão comprando empresas brasileiras de sementes para obrigar os agricultores a adquirir o tipo de insumo que melhor interessa a elas", acusa Itamar Locks, administrador dos 40 mil hectares de plantações da família Maggi. Locks é membro da Fundação MT Visionário, uma organização de fazendeiros que estuda o plantio da soja e responde por 80% das 150 mil toneladas de sementes comercializadas no Estado. Os outros 20% são de responsabilidade da Monsoy, um braço da Monsanto. Há também o problema da aceitação da soja modificada no Exterior. "A maioria dos países europeus e o Japão não compram produtos transgênicos. Para quem vou vender as 132 mil toneladas de grãos que produzo?", pergunta Locks.

Entre as empresas brasileiras de sementes adquiridas por multinacionais estão a Agroceres e a divisão de soja da FT, compradas pela Monsanto, a Sementes Dois Marcos, que passou para a Dupont, e a Hatã Dinamilho, hoje da Dow Química. A Monsanto admite abertamente que quer mais do mercado brasileiro. "Estamos em uma democracia e o agricultor escolhe de quem vai comprar as sementes", declara Rodrigo Lopes Almeida, diretor de assuntos corporativos da multinacional americana. Ele pretende iniciar, paralelamente a partir de julho, a venda das sementes transgênicas para a próxima safra. A Monsoy cultivou inclusive quatro hectares de soja modificada na Fazenda Farroupilha, do fazendeiro Carlos Augustin, também na região de Rondonópolis. O campo fazia parte dos 628 centros experimentais de transgênicos das empresas espalhados pelo País, mas foi fechado no mês passado. "A Monsanto acabou com o cultivo depois de denúncias de que agricultores estavam roubando parte das plantas para experimentá-las", afirma Breno Hinnah, administrador da fazenda. O agrônomo é 100% favorável à nova tecnologia e lembra que o custo por hectare cai de US$ 40 para US$ 20 com o herbicida Roundup (também fabricado pela Monsanto). "O agricultor só não aumenta o faturamento com os transgênicos porque as sementes custam mais", diz. Hoje uma saca de 50 quilos de sementes modificadas sairia por R$ 50, contra os R$ 25 de sementes comuns. Por defender os interesses da Monsanto, Hinnah deixou de ter direito a voto no Instituto MT Visionário, apesar de permanecer como cotista.

Polêmica no Sul Nessa briga toda, quem pode sair perdendo é o pequeno agricultor, que pode ser obrigado a pagar royalties para as multinacionais das sementes, em vez de reproduzir livremente seus insumos. É com essa justificativa que o governo do Rio Grande do Sul mandou interditar há 20 dias cerca de 430 hectares cultivados com soja modificada na Fazenda Palmeirinha, no município de Palmeiras das Missões. O local era controlado também pela Monsanto. "O plantio era totalmente ilegal", acusa o secretário da Agricultura, José Hoffmann. A Monsanto alega que o cultivo de soja modificada é legal desde sua aprovação pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e que foi o atual governo gaúcho que mudou as regras do jogo. Mas a Secretaria Estadual de Agricultura mandou inclusive o Ministério Público investigar outras sete áreas onde estaria ocorrendo o plantio de soja alterada. Como o Brasil é o segundo maior produtor de soja do mundo, com 30 milhões de toneladas anuais, ninguém quer abrir mão dessa mina de ouro. Tudo indica que o jogo está a favor das multinacionais, que têm livre acesso a países como Estados Unidos, Canadá, Austrália, França e Argentina. No nosso vizinho de fronteira, elas estão dando goleada: dominam 75% da produção.

Colaboraram: Isabela Abdala (DF) e Maurício Dantas (RJ)

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Genes que valem ouro

Produtos transgênicos são aqueles cujos genes foram modificados em laboratórios para serem resistentes a pesticidas e pragas. No caso da soja, a polêmica principal hoje no Brasil diz respeito à variedade Roundup Ready, que resiste ao forte herbicida Roundup, ambos da Monsanto. A empresa, que pesquisa transgênicos desde 1979, passou anos estudando uma forma de criar esta semente. A multinacional atua também nos setores de agrodefensivos, farmacêuticos e de nutrição, investiu um total de US$ 600 milhões no País desde 1995 e pretende injetar mais US$ 800 milhões nos próximos anos. A revista científica Nature alertou, na semana passada, que os efeitos à longo prazo para a saúde humana ainda precisam ser melhor estudados.


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