O câncer é uma doença democrática. Não escolhe raça, opção sexual ou religião para atacar. E ele agride com ferocidade assustadora, impondo um sofrimento raramente visto em outras doenças. Felizmente, no entanto, quem está assumindo o comando de uma guerra cada vez mais vitoriosa é a medicina. "Hoje, todos os tipos de câncer, desde que diagnosticados logo no início, podem ser curados", afirma Sérgio Simon, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Mas o melhor de tudo é que a ciência não tem vencido as batalhas sozinhas. As vitórias também se devem ao fato de que os pacientes estão aprendendo a reagir contra o diagnóstico aterrador e começam a escrever outro final para uma história que poderia ter um desfecho doloroso. É uma virada de importância fundamental na luta contra o câncer. Afinal, já se sabe que não é apenas com química e tecnologia que o organismo se recupera. É preciso acreditar na cura, como revelam os depoimentos de quem venceu o câncer destacados ao longo desta reportagem.

Os prognósticos mais favoráveis começam com a detecção rápida do problema. Isso é possível graças aos sofisticados equipamentos que desvendam o corpo humano e ao preparo cada vez maior dos especialistas. Foi o que aconteceu com a menina Louise Ginaid, 11 anos, moradora de Vitória, no Espírito Santo. Em janeiro de 1995, sua mãe, Lolita da Rocha Pimenta, 37 anos, correu para o médico assim que notou um pequeno aumento no lado esquerdo do peito de sua filha. O médico, ao examinar a garota, não hesitou.

"O pediatra olhou a costela dela, abriu um livro com fotos sobre tumores malignos e disse: ‘É para ontem! Tem que começar o tratamento já.’ Fomos na mesma hora para São Paulo, onde diagnosticaram o neuroblastoma (tumor no sistema nervoso simpático, responsável por reações de alerta no organismo). O tumor estava do tamanho de uma bola de futebol de salão e já tinha se espalhado para a perna. A chance de ela continuar vivendo era mínima. Se a quimioterapia não conseguisse reduzir o tumor, não daria para operar e nada mais poderia ser feito. A notícia nos abalou, mas seguimos em frente. As sessões duraram quatro meses e o tumor foi reduzido à metade (cerca de 8 centímetros de diâmetro). A operação para retirá-lo aumentou as chances de cura para 20%. Mas era um tipo de tumor tão agressivo que para evitar uma reincidência era preciso um novo ataque bem mais potente de quimioterapia. Por isso, foi feito o autotransplante ambulatorial de medula óssea. A Louise é uma criança abençoada e cooperava muito. Mantínhamos ela na ativa, pois cruzar os braços e ficar com dó não adianta nada. O tratamento durou seis meses. Voltamos para casa com Louise curada." Na época do diagnóstico Louise estava aprendendo a velejar. Hoje, depois de interromper os treinamentos por causa do tratamento, ela já participou de dois campeonatos brasileiros na classe Optimist e acabou de disputar, em Vitória, uma seletiva para o mundial. Bons ventos para Louise. "Adorei quando voltei para casa e pude ver a praia. Adoro velejar. Parece que estou voando. Nem parece que tem o mar", diz.

 

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O autotransplante ambulatorial – um dos benefícios da ciência recebido por Louise – é uma técnica que permite ao paciente receber altas doses de quimioterapia (drogas que matam o tumor) e ter a medula óssea preservada. É um procedimento importante porque é ela que produz as células de defesa do corpo, que devem ser resguardadas de um ataque químico. Antes do bombardeio das drogas, células da medula são retiradas e ficam como uma reserva estratégica. Depois do tratamento, essas mesmas células são reinjetadas e passam a produzir novas células de medula. Na modalidade ambulatorial, o procedimento é feito sem a necessidade de internação. "Além de diminuir os custos e os riscos de infecção, o transplante ambulatorial ajuda na recuperação da criança", diz o oncologista Vicente Odone Filho, do Instituto da Criança, em São Paulo, e médico que cuidou da velejadora mirim.

Na verdade, manter o doente o mais próximo possível do seu mundo é apenas parte de uma nova abordagem no tratamento da doença. Hoje, o que já se começa a fazer é tratar o paciente – criança ou adulto – levando em conta sua história de vida. É aí que entra a ajuda da terapia e outros recursos, como até mesmo aulas de canto para diminuir o sofrimento. A própria doença também recebe uma visão multidisciplinar. O cronograma de tratamento, por exemplo, é estabelecido por vários especialistas envolvidos no caso, como patologista e radioterapeuta. "Esse tipo de abordagem é muito importante para a humanização do tratamento", explica o oncologista Antonio Petrilli, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Quem teve de vencer o câncer há alguns anos atrás não contava com esse apoio. O estudante e auxiliar administrativo Jackson Carlos Joaquim, 25 anos, submeteu-se ao tratamento de um linfoma de Hodgkin – um tipo de tumor que ataca os gânglios linfáticos, que fazem parte do sistema de defesa do corpo – em um tempo no qual a importância da psicologia não era muito valorizada no tratamento da doença. Os traumas foram tantos que um belo dia ele próprio resolveu se dar alta.

"Tinha oito anos quando começaram a aparecer gânglios no meu pescoço. Passei por vários médicos antes de descobrirem que eu tinha câncer. Senti muito medo quando disseram que iam operar a minha barriga para fazer uma biópsia do fígado e baço para saber se o tumor tinha se espalhado pelo corpo. O tempo em que fiquei internado foi muito duro, mas foi quando fiz as melhores amizades da minha vida. No quarto onde eu estava havia mais cinco garotos como eu. Nossa diversão predileta era jogar futebol no corredor do hospital com uma bola de papel. Passado algum tempo da operação voltei para o quarto. Fiquei abalado. Meus amigos não estavam mais lá. Só mais tarde descobri que tinham morrido. Saí do hospital, mas continuei a quimioterapia até os dez anos. Já não aguentava mais. Numa das sessões a enfermeira falou que teria que tomar uma injeção na coluna. Fugi. Desci as escadas correndo com o meu pai atrás de mim. Disse para ele que não queria fazer mais tratamento algum. Parei e meu pai aceitou, mas só porque já estava no final. Só reencontrei o médico que cuidou de mim nove anos depois, no mesmo hospital, onde consegui um emprego e trabalho há seis anos. Hoje, casado e com uma filha de quase dois anos, sei que estou curado."

 

Nessas histórias de sucesso contra o câncer, muitas vezes a doença desenha um novo caminho na vida do doente. Fábio Batista, 28 anos, médico residente em ortopedia na Unifesp escolheu a carreira por causa do drama que viveu. Em 1987 ele soube que estava com um tumor maligno no joelho esquerdo. Fábio tinha 16 anos e não fazia idéia de que carreira iria seguir.

"Tenho certeza de que se não tivesse passado pelo câncer não teria me tornado médico. E muito menos especialista em ortopedia. Já peguei pacientes com casos parecidos com o meu e faço questão de contar a eles a minha história. A doença me despertou para um mundo que não conhecia. Quando recebi o diagnóstico achei que era o fim da vida. Só me tranquilizei depois que o médico me explicou o que era. Passei a encarar a situação de frente. Assim que começou a cair o cabelo, não senti vergonha e raspei tudo. A quimioterapia é muito ruim. Mas passa. O importante é pensar positivo. Mantinha um astral ótimo e isso me ajudava a lutar. Sempre fui muito ativo. Praticava mil esportes. Tive que colocar uma prótese no joelho. Não posso correr, jogar futebol, pular. Em contrapartida, ando de bicicleta, nado e danço normalmente."

A lição de alto-astral de Fábio encoraja e dá uma idéia da importância de se acreditar na vitória sobre a doença. Essa esperança também foi o que alimentou a geógrafa Stela Goldenstein, 46 anos, secretária estadual adjunta do Meio Ambiente de São Paulo. Há nove anos, ela teve diagnosticado um tumor nos ovários. Os dois ovários e o útero foram retirados. Depois de seis meses de quimioterapia, uma segunda cirurgia para investigação e verificação constatou que o câncer ainda estava no organismo. Foi preciso mais seis meses de quimioterapia para debelá-lo.


"Fazia a quimioterapia no sábado, vomitava domingo e segunda e ia para o trabalho na terça. Meu marido me auxiliou muito. Busquei outros tratamentos, como a acupuntura e a antroposofia, que ajudaram a melhorar a minha condição geral. Tinha gente que ficava com pena de mim, mas não podemos nos sentir como coitados. Ficar bem era uma tarefa só minha. Apesar de já ter dois filhos, não queria perder os ovários, pois sempre gostei da possibilidade de ter filhos. Isso é um patrimônio muito especial da mulher. No entanto, não me senti menos feminina. O câncer me deu consciência de que era mortal, que é uma noção muito importante e que a todo tempo tentamos negar. Essa experiência fez com que eu passasse a ter menos medo da morte. E perder o medo da morte é fundamental para aproveitar melhor a vida.

Stela tem mesmo todos os motivos para comemorar. O câncer de ovário é um dos mais difíceis de ser detectado no estágio inicial e o seu índice de cura no Brasil não ultrapassava os 15% até o início dos anos 80. Foi apenas daí em diante que a taxa de cura duplicou, com o surgimento de uma droga quimioterápica chamada cisplatina. Seu uso, aliado a outros quimioterápicos, elevou para 80% a chance de cura de câncer de testículo. "A taxa de sucesso é tão alta que, se o tratamento der errado, não nos perdoamos", diz o oncologista paulista Antonio Carlos Buzaid. A cisplatina também é uma arma importante contra o tumor de bexiga. O governador de São Paulo, Mário Covas, se beneficia de sua eficácia. Hoje, quatro meses depois de ter sido submetido a uma cirurgia para retirada de um câncer na bexiga, Covas está bem e prepara-se parar fazer a última sessão de quimioterapia com a cisplatina e outros dois remédios.

O câncer de mama é outro tipo de tumor que tem perdido com os conhecimentos que a medicina lapida ano a ano. Somente durante o encontro anual da Associação Americana para a Pesquisa do Câncer, ocorrido na Filadélfia há duas semanas, foram divulgados três novos estudos a respeito do tema. Dois se referiam à identificação de genes relacionados ao desenvolvimento da doença. E o outro confirmava a eficácia da herceptina – quimioterápico mais moderno – no bloqueio de um gene que pode estimular mutações ligadas ao crescimento de tumores em até 30% das pacientes de câncer de mama. Os recursos para o tratamento, no entanto, não param aí. Umas das grandes aliadas da mulher nessa batalha é a cirurgia de reconstrução da mama, indicada para os casos em que é preciso retirar total ou parcialmente o seio. A reconstrução é um sinal de que, às portas do ano 2000, o combate ao câncer não procura só destruir os tumores, mas também está preocupado em dar qualidade de vida ao paciente que supera a doença. "Com a reconstrução, a mulher não fica mutilada e se sente com mais força para se dedicar ao tratamento", diz João Carlos Sampaio Góes, diretor do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer (IBCC). No ano passado a secretária paulista Marlene Souza Silva, 38 anos, passou por uma mastectomia (retirada total da mama) no seio direito e fez a reconstrução mamária. Sua história mostra como se pode ir do fundo do poço à alegria na briga contra a doença, com a ajuda da ciência.

"Estava tomando banho quando senti uma pontada no seio direito. Passei a mão e percebi um caroço. Fiquei dois anos sem ter um diagnóstico exato. A mamografia não registrava o tumor e o médico que procurei achava que era uma displasia mamária (desenvolvimento anormal do tecido). O tumor só foi descoberto no ano passado e já estava com quase cinco centímetros. O médico me disse que eu teria que fazer radioterapia, quimioterapia e que talvez tivesse que tirar a mama. Sempre fui expansiva e brincalhona, mas naquele momento me senti morta. O aspecto emocional pesou. Sou muito feminina e vaidosa e a possibilidade de ficar mutilada me afetou demais. Minha primeira reação após a cirurgia foi olhar o seio reconstruído. Fiquei aliviada. A sensibilidade da mama não foi afetada. Uso decotes e continuo bonita."

O estímulo para tanta dedicação ao câncer de mama deve-se em grande parte aos números. A incidência dele na população é a segunda maior entre todos os tipos de tumor. Para este ano, a estimativa, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), é de que 31 mil novos casos surjam no País. O câncer que terá maior incidência é o de pele do tipo não-melanoma. Ou seja, é o mais inofensivo, ao contrário do melanoma, altamente letal. O câncer de colo de útero vem em terceiro lugar no ranking, com 20,6 mil novos casos, e o de estômago ocupa o quarto posto, com uma incidência estimada em 20,3 mil novos casos. A atriz Dercy Gonçalves, 92 anos, foi uma das pessoas que superaram esse tipo de câncer. O diagnóstico foi dado há oito anos e Dercy, com a força que sempre a caracterizou, nunca deixou de acreditar.

"Tô ferrada. Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça quando descobri que estava com câncer. Mas sou privilegiada e não me aprofundo na tristeza. Só penso no amanhã. No dia seguinte ao diagnóstico saí para comprar um carro e comecei a pensar no que ia fazer depois que me curasse. Sempre acreditei que ia sair daquela. Fiquei boa porque fui logo fazer os exames assim que me senti mal. O câncer só estava em uma das paredes do estômago, mas tiveram que tirar quase metade dele. Estou ótima. Posso comer de tudo."

Um dos maiores desafios que ainda restam é conseguir a cura para o câncer de pulmão. Comum em homens – as estimativas do Inca para 1999 mostram que 14,8 mil novos casos devem surgir entre a população masculina – é também um dos mais perigosos. "É difícil diagnosticá-lo no início", explica o pneumologista paulista Wlademir Pereira Junior. "Normalmente, quando é detectado, ele está em um estágio que não dá para operar", completa. Por isso, nesses casos, quando a vitória acontece, ela tem um sabor ainda mais especial. Foi o que aconteceu com o jornalista carioca Victor Abramo, 46 anos, que durante a luta contra a doença esteve bem perto da morte.

"Sentia fortes dores de cabeça que chegavam a turvar a minha visão. Como a dor não passava, procurei um neurologista. A tomografia pedida por ele acusou um tumor no cérebro. Fui operado no dia seguinte. A cirurgia foi um sucesso. Mas quando estava me recuperando recebi a notícia de que o tumor no cérebro era uma metástase (quando o câncer se espalha pelo organismo) de um tumor no pulmão. Teria de ser operado de novo. Mas em nenhum momento pensei que fosse morrer. Não fiquei deprimido e minha família e amigos me deram muitas demonstrações de carinho. Minha atual esposa estava grávida de sete meses. Não podia abandoná-la. Fui operado dez dias após a primeira cirurgia. Um terço do meu pulmão direito foi retirado. Poucos dias depois, minha mulher foi me ver na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e falou no meu ouvido: ‘É menino!’ Ela havia acabado de receber o resultado do ultra-som. Pensei comigo: ‘Tenho que viver para conhecer esse filho.’ Hoje, além das cicatrizes, não tenho nenhuma sequela e, em outubro, comemoro cinco anos de batalha vencida. Fumei por 25 anos. Hoje não toco mais no cigarro. Até superei o meu problema de gagueira depois de passar por tudo isso. Falo normalmente."

São os desafios que fazem a medicina evoluir e o ser humano se superar. Prova disso é a história da guerra travada entre o analista de sistemas Maurício Andreta dos Santos, 30 anos, e o câncer. A razão de um linfoepitelioma na rinofaringe (tumor no sistema linfático localizado na parte da faringe situada atrás do nariz) tê-lo atacado não se sabe. Maurício praticou natação dos oito aos 21 anos de idade. Sempre dormiu e acordou cedo. Nunca bebeu, fumou ou usou drogas. Em 1994, recebeu a notícia do câncer. Maurício morava em Santos, no litoral de São Paulo, e durante o tratamento teve de se afastar do banco em que trabalha, em São Paulo. Depois de um ano de quimioterapia e radioterapia, exames de tomografia e ressonância magnética não acusaram mais a presença do tumor. Em outubro de 1995 o analista de sistemas passou por novos exames de controle. Os resultados assustaram: o câncer havia se espalhado para o pulmão. "Por quê?", pensou ele. "Queria fugir, mas não sabia para onde", relembra. Maurício retomou a quimioterapia. Fazia o tratamento em Santos e subia a serra para ir ao trabalho. Em fevereiro de 1996 não aguentou o ritmo e pediu nova licença no emprego.

"Descobri um novo tipo de quimioterapia que estava sendo testada no Hospital das Clínicas em São Paulo. Atacava mais o tumor e produzia menos efeitos colaterais. Passei dois anos me tratando lá, até a médica me dizer que o tratamento não estava mais surtindo efeito. ‘Maurício, não temos mais remédios para te dar’, ela me disse. Fui encaminhado para outro médico. Ele explicou que somente um caso no mundo como o meu, tão resistente à quimioterapia, tinha sido tratado com sucesso. Minha única chance era o transplante de medula óssea. Se não tentasse, talvez não sobrevivesse mais do que seis meses. Fui internado em 4 de março de 1998. Recebi uma quimioterapia 30 vezes mais forte do que a normal. Minha boca, esôfago e intestino ficaram destruídos. Não conseguia comer, beber nem dormir. Minha imunidade caiu a zero e fui para a ala de isolamento do hospital. Tive alta em maio, mas sofri uma recaída forte. Passei cinco dias na UTI com infecção generalizada. Meus pais e Flávia, minha namorada, rezavam muito. Saí da UTI e fizeram uma biópsia no meu pulmão. Voltei para casa no dia 8 de junho. Depois de uma semana fui pegar o resultado do exame. Chorei de emoção quando soube que estava livre da doença."


Maurício retomou o trabalho no banco, de quem contou com o apoio durante todo o tratamento. Transferiu-se para São Paulo e na semana passada completou um mês de casamento com Flávia. "Não se pode abaixar a cabeça", diz o hematologista Celso Massumoto, que realizou o transplante de medula óssea no analista de sistemas. Maurício também voltou a nadar. No primeiro mergulho, experimentou uma indescritível sensação de ter nascido de novo. "Quando caí na piscina parecia que nunca havia nadado antes."

Colaborou Clarisse Meireles (RJ)


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