07/06/2013 - 21:11
Assista à entrevista:
Martinho se diz feliz com o resultado de “Sambabook”, projeto que homenageia a obra do sambista e juntou gente como Elza Soares, Paulinho da Viola, João Bosco, Zeca Baleiro e Pitty
BALANÇO
“Eu era visto como comunista pela direita.
Para a esquerda, que não me conhecia,
eu era um agente da ditadura militar"
Os 75 anos de idade – e 45 de carreira – não são um empecilho para que o cantor e compositor fluminense Martinho da Vila continue levando o seu samba para vários palcos no Brasil e no Exterior. Atualmente, ele até acelerou o ritmo, empenhado que está na divulgação do mais recente trabalho dedicado à sua obra. Trata-se de “Sambabook”, projeto que reúne biografia, site, partituras, DVD e CDs, nos quais artistas dos mais variados estilos e épocas releem seu repertório. Outro motivo de celebração para o cantor são os 20 anos de casamento com Cléo Ferreira, uma gaúcha de 42 anos com quem teve os filhos Preto e Alegria. Entre tanta festa, Martinho repassa a sua história e lembra do tempo em que, no final dos anos 1960, tinha de ser militar de dia e artista, que transitava pela esquerda, à noite.
"O Flávio Cavalcanti, que depois virou meu chapa, liderou
uma campanha que ajudou a censurar uma música minha"
"(Simonal) era militar como eu, mas não deu baixa.
E essa era uma maneira que os militares
usavam para recrutar informantes do SNI"
Fotos: MASAO GOTO FILHO/AG. ISTOé; Renata Falzoni
Sua primeira aparição nacional foi no Festival da Record em 1967, defendendo o partido alto “Menina Moça”. Num festival que teve “Alegria, Alegria”, “Domingo no Parque” e Sérgio Ricardo quebrando violão, como o público recebeu você?
Na época, o samba era tocado só no meio de gente do samba. Naquele festival, que reunia vários estilos, o samba era uma novidade, por incrível que pareça. A produção do festival gravava um disco com as músicas que seriam apresentadas. Pela dificuldade de conseguir licença no quartel, fui o último a chegar para a gravação. Foi tarde demais. A música acabou sendo gravada por um grupo musical muito bom, O Quarteto, de São Paulo. Mas parecia outra composição. Eles não conheciam a batida do partido alto. Quando apresentei a música no festival, a plateia reagiu muito bem.
O pessoal no quartel sabia que o sargento Martinho iria cantar na televisão?
Não. Eu servia no Ministério do Exército, no Rio. A Record era a TV número 1 e passava em todo o País. Todo mundo via. Lá no quartel ninguém sabia de nada. Aí o pessoal ficava naquela: “É ele? Não é ele…” Depois que tiveram a certeza de que era eu, começou a se formar uma romaria para me ver na repartição em que eu trabalhava. Todo mundo ia lá me ver. E isso chegava a atrapalhar o expediente.
Como era ser militar e cantor no final dos anos 1960 no Brasil?
Eu sofria pressão de ambos os lados. Era difícil. Minhas primeiras participações artísticas fora da favela e da quadra da escola de samba foram no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro. O grupo era liderado por intelectuais de esquerda. Ferreira Gullar, Teresa Aragão e muitos outros produziam aquelas peças de teatro. O lugar era até considerado um aparelho comunista. Às segundas, acontecia ali o projeto “A Fina Flor do Samba”, que mostrava para o pessoal da zona sul os compositores formados nas favelas e escolas de samba. Fiz boa parte dos meus amigos ali. Por isso, eu era visto como comunista pela direita. Para a esquerda, que não me conhecia, eu era um agente da ditadura militar. Afinal, eu era sargento e havia militares infiltrados nas mais diversas organizações.
O fato de ser militar não adiantou muito. “Menina Moça” não pôde entrar no seu primeiro disco porque foi censurada, por falar de desquite.
O apresentador Flávio Cavalcanti, que depois virou meu chapa, liderou uma campanha que ajudou na proibição da música. Ele ficou quase um programa inteiro falando que a canção era um absurdo, que ela era contra a instituição da família. Para dificultar ainda mais as coisas, naquela época estava em discussão o divórcio. E a briga era bem mais acirrada do que a que temos hoje quando o assunto é o casamento gay. Nesse cenário, a música foi proibida e eu só pude gravá-la no meu terceiro disco, “Memórias de um Sargento de Milícias”.
Em algum momento você contou com a possibilidade de, como outros artistas, ser preso ou expulso do País?
Os militares sabiam que a maioria dos meus amigos era comunista. Não fui preso logo de cara porque eu era muito popular. Além disso, meu sogro, na época, era general do Exército. Dei sorte de não ser preso e, principalmente, exilado. Eu não era filiado ao partidão, não era comunista. Quem era ligado tinha apoio lá fora, arrumava emprego, etc. Para alguns, a situação ficou até melhor. Para outros, piorou. Por que o Geraldo Vandré se ferrou? Porque ele não tinha essa rede de apoio lá fora. Não tinha costas quentes.
Chegou a se sentir perseguido ou vigiado pela polícia?
Tinha gente atrás de mim. Mas, como eu era do meio militar, sabia identificar. De repente, chegava um cara e dizia: “E aí, Martinho, beleza?” Eu respondia que sim, mas cochichava para os músicos: “Xi, esse cara aí deve ser da polícia.” E era mesmo. Aonde eu ia, o sujeito vinha atrás. Ia à casa de uma mulher, lá estava ele. Saía do apartamento de um amigo, o cara aparecia. Fui vigiado, mas não tive problemas.
Chegou a testemunhar violência no local onde trabalhava?
Vi gente sendo presa do meu lado. Lá no prédio do batalhão mesmo. O militar chegava, falava com o chefe de gabinete e dizia que iria levar o sujeito tal. Aí, falava para o fulano pegar as coisas e “vir com a gente”. Depois disso, eu nunca mais via o meu colega de trabalho.
E por que esses seus colegas do Exército eram presos?
Tem gente que fala demais. Hoje eu até falo muito, mas na época eu não falava quase nada. Então, tinha muito colega que nem era envolvido com atividades subversivas, mas falava muito. E os policiais estavam ouvindo.
Um artista que sempre falou muito foi Wilson Simonal. Como você, ele era de origem pobre, foi militar e cantor de enorme sucesso. Vocês mantinham contato?
Tinha um jornalista chamado Luís Carlos de Assis, da Manchete. Ele era responsável por cobrir cantores como Roberto Carlos, Simonal e eu. Ele nos apresentou. Na ocasião, o Simonal até falou que iria gravar uma música minha, mas não deu tempo, pois ele estava justamente passando por aquele problema.
Aquele problema que o tornou suspeito de ser dedo-duro de colegas de profissão. No seu modo de ver, ele era ou não era?
Não. O problema é que ele era militar como eu, mas não deu baixa. Eu dei. Os oficiais no batalhão até falaram para que eu continuasse no Exército, que seguisse minha carreira e passasse pela repartição uma vez por mês. E o negócio era atraente. Quem não quer ganhar um salário sem ter de trabalhar? Mas essa era uma maneira que eles usavam para arregimentar informantes do SNI. Tinha gente que recebia o dinheiro, mas não era informante. O Simonal fazia parte desse grupo. Quando aconteceu aquela coisa com ele, de que teria sido roubado e mandado a polícia dar uma prensa nos caras, isso tudo veio à tona.
Não ter dado baixa teria sido então a principal razão da derrocada meteórica da carreira do Simonal?
Ele também recebeu e aceitou uma medalha, a maior honraria do Exército. É a medalha do Mérito Militar. Me ofereceram uma também. Eu não podia me negar a receber, sabia dos riscos e já estava fazendo aquele sucesso. Aí, fui lá na Segunda Seção do Exército, cheguei e disse: “Eu queria falar com o chefe.” Quando ele veio, falei: “É uma honra, mas eu não posso receber essa medalha. Se eu pegar, o senhor vai ter de me arrumar um jeito de voltar para o Exército, pois a minha carreira vai acabar. Eu vou ser visto como informante do SNI. E eu não sou isso.” Fui sincero e franco com eles. Fizeram uma reunião e depois me chamaram. Um deles me disse: “Olha, Martinho, entendemos a sua situação, mas agora você vai ter de fazer o seguinte: não vai falar em lugar nenhum que nós lhe oferecemos a medalha. Nem na imprensa, nem pra amigo, nem pra ninguém.” Nunca tinha falado sobre isso. Até agora. Cumpri a minha parte do acordo. Foi meu jeito de driblar a ditadura.
Com oito filhos, dez netos, 45 anos de carreira, 75 de vida e participando de uma maratona de shows, como anda a sua saúde?
Muito bem, graças a Deus. Não tomo remédio nenhum. Quase todo mundo da minha idade tem aqueles medicamentos permanentes. Um de manhã, outro de tarde, outro para dormir. Eu nunca tomei Rivotril, que tá todo mundo tomando hoje.
Você ainda fuma?
Fumo, mas não muito. Só um pouquinho. Quando estou num lugar mais agitado, acendo um cigarrinho. Durante os meus shows, eu gosto de dar um traguinho.
Nas casas de show de São Paulo, isso é muito complicado.
Às vezes eu fumo assim mesmo. Sei que tá proibido, mas vou ali atrás do palco e acendo. Como dou um traguinho ou dois, quando o cara vem falar que não pode, eu já fumei. No Auditório Ibirapuera, em São Paulo (onde o cantor se apresentou no começo deste mês), tinha uma moça muito educada do Corpo de Bombeiros. Ela me pediu para não fumar de um jeito tão maneiro que eu obedeci. Antigamente, fumar era chique. Hoje, o hábito é malvisto. O fumante de hoje é como o comunista do passado.
A sua recém-lançada biografia informa que você ouve criticamente todos os seus discos. O que achou do “Sambabook”, em que gente como Elza Soares, Ney Matogrosso e João Bosco canta o seu repertório?
Eu fiquei bem feliz com o resultado. Alguns aproveitaram a chance para recriar as músicas. Outros cantaram mais do meu jeito. Todo mundo foi perfeito. As pessoas deram muito de si e mandaram bem, com muita categoria.
Alguém em especial surpreendeu você?
Quando me falaram que a Pitty iria cantar, achei ótimo, mas pensei que ela iria mais falar do que cantar. No rap e no rock, o canto não é o mais forte. O importante é o impacto sonoro. Quando falaram que a música que ela iria cantar era “Roda Ciranda”, pensei: “Ih, pegou!” Ali é preciso ser cantor de verdade. Começa com um som miúdo, só voz e violão, para depois engrenar. A Pitty deu um banho. Todos os músicos ficaram espantados.
Agora você está na estrada para divulgar esse trabalho. Depois de tanto tempo, isso não cansa?
De maneira nenhuma. Até porque levo a coisa do meu jeito: devagar e sempre.